Aniversário da Reforma: oportunidade para aprofundar a pesquisa. Artigo de Angelo Maffeis

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03 Novembro 2017

“O contexto eclesial e cultural em mudança oferece a possibilidade de um olhar novo sobre os eventos da Reforma, que diz respeito a vários aspectos do evento histórico do qual se faz memória. O quinto centenário da Reforma é, acima de tudo, uma oportunidade para reconhecer os resultados que a pesquisa histórica alcançou nos seus estudos sobre a época da Reforma.”

A opinião é do teólogo e padre italiano Angelo Maffeis, professor da Universidade Católica de Milão e da Faculdade Teológica da Itália Setentrional, em artigo publicado no jornal L’Osservatore Romano, 01-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A recorrência do quinto centenário do início da Reforma protestante (1517-2017) provocou um surpreendente interesse até mesmo em ambientes como o italiano, cuja história e cultura não foram marcadas pelo movimento protestante com a mesma intensidade de outros países e onde, apesar dos evidentes processos de secularização, a tradição católica mantém uma posição de destaque na sociedade.

Esse fato pode ser explicado com a intuição de que, nos eventos religiosos e eclesiais, mas também sociais e políticos que marcaram o século XVI, fez-se uma passagem decisiva na história europeia, cujas consequências incidiram profundamente sobre as vicissitudes das Igrejas e dos povos no continente europeu e em todo o mundo.

Compreender o significado histórico, cultural e religioso da Reforma, portanto, é uma passagem imprescindível para entender a história e a civilização europeia na época moderna.

O interesse suscitado em um país católico como a Itália é também um sinal das transformações que o movimento ecumênico determinou no modo pelo qual as diferentes Igrejas e comunidades eclesiais se percebem e entram em relação entre si.

A profundidade da mudança ocorrida é evidente, se considerarmos os modos pelos quais, nos séculos passados, a recorrência centenária da publicação das 95 teses sobre as indulgências (31 de outubro de 1517) foi celebrada pelas Igrejas protestantes. Desde o primeiro jubileu da Reforma, celebrado em 1617, as iniciativas promovidas pelas universidades e pelas autoridades civis nos territórios luteranos foram dominadas pela intenção de afirmar a identidade protestante, contraposta à degeneração da Igreja romana, da qual Lutero fez bem em se separar e da qual é justo permanecer separados.

Com variações temáticas e com uma ênfase cada vez mais marcante dos méritos culturais e sociais da Reforma, além dos estritamente religiosos, o modelo foi reproposto assiduamente nos quatro primeiros centenários.

O contexto eclesial e cultural em mudança, portanto, oferece a possibilidade de um olhar novo sobre os eventos da Reforma, que diz respeito a vários aspectos do evento histórico do qual se faz memória. O quinto centenário da Reforma é, acima de tudo, uma oportunidade para reconhecer os resultados que a pesquisa histórica alcançou nos seus estudos sobre a época da Reforma.

A cultura geral, não raramente, parece estar atrasada em relação às aquisições dos historiadores e, muitas vezes, mostra-se inclinada a repetir estereótipos claramente inadequados, com a consequência de impedir a compreensão dos eventos.

A historiografia contemporânea, por exemplo, mostrou a absoluta inconsistência de um esquema interpretativo baseado na contraposição entre Idade Média e época moderna, da qual a Reforma constituiria a aurora. Na realidade, não se compreende a Reforma sem levar em conta as raízes que ela afunda na época medieval, na teologia cultivada nas universidades, na espiritualidade vivida nos conventos e proposta aos leigos, assim como nas múltiplas formas da prática pastoral.

Isso não significa negar a “novidade” de muitas das posições defendidas pela Reforma protestante, mas sim reconhecer que, muitas vezes, se trata de posições já presentes anteriormente no corpo eclesial, às vezes em tensão com outras posições, mas, mesmo assim, reconhecidas como legítimas no debate entre as escolas teológicas.

A resposta dada entre os séculos XIV a XV à dramática crise determinada pelo cisma do Ocidente mostra, por exemplo, o recurso a elementos que jaziam escondidos na tradição teológica e canonística, e que ganham atualidade em um contexto no qual a Igreja busca um caminho de saída da situação na qual não é possível reconhecer o papa legítimo.

Enquanto, depois do Concílio de Constança, foi possível iniciar gradualmente a recomposição de um quadro unitário, no século XVI, muitos elementos que passaram a definir a estrutura doutrinal e institucional da Reforma, embora não fossem desprovidos de precedentes na tradição medieval, foram, no fim, julgados como inaceitáveis pelas autoridades romanas e pelo Concílio de Trento.

Um processo iniciado com a intenção de reformar a Igreja existente, portanto, teve como resultado a constituição de Igrejas confessionais separadas. Se o quinto centenário da Reforma for uma oportunidade para se deparar com os resultados da pesquisa histórica, ele mostra como a recordação do passado para os indivíduos e para as comunidades não é simplesmente o reconhecimento de série de fatos ocorridos em uma época remota, mas é sempre acompanhada por uma interpretação do sentido dos fatos e pela definição da própria identidade mediante a relação estabelecida com aquilo que aconteceu no passado.

Em outras palavras, eventos históricos como a Reforma protestante inevitavelmente assumem um porte simbólico, e a perspectiva de acordo com a qual eles são reconstruídos pode orientar, em uma direção ou outra, a definição da identidade cristã e eclesial.

No passado, a Reforma foi lugar de confronto entre interpretações simbólicas opostas: para a tradição protestante, foi o início da renovação da Igreja, que, na pregação e no culto, foi levada de volta à pureza das origens cristãs, enquanto, para a tradição católica, foi o início da sua decadência, que continuou de modo irrefreável com um desvio subjetivista do pensamento, que gerou uma filosofia incapaz de aferrar uma verdade sólida e dissolveu a estabilidade do ordenamento social.

Nas genealogias opostas que, em campo protestante e católico, foram construídas para ilustrar as consequências da Reforma, é possível ver como as questões doutrinais e os fatos históricos, na sua concretude, muitas vezes, perdem importância em relação a uma construção da autoimagem que se serve do passado para delinear a própria identidade atual.

Para confirmar isso, pode-se citar o fato de que a força evocativa de 1517 parece inversamente proporcional ao interesse pela questão específica – a doutrina e a prática das indulgências – que se encontra no início do movimento reformador.

A questão que deu início à Reforma logo se encontrou em uma posição bastante marginal em relação a outros temas que se encontraram no centro do debate – a justificação do pecador, a eficácia dos sacramentos, a estrutura da Igreja e a autoridade exercida por ela – e, nas celebrações posteriores, tornou-se cada vez mais incompreensível tanto para os protestantes, quanto para os católicos.

Certamente, não faltam aqueles que continuam se referindo à disputa sobre as indulgências, mas, significativamente, quando falam a respeito, quase sempre ignoram totalmente as complexas questões sobre a relação entre culpa e pena, sobre a natureza e sobre a extensão da autoridade da Igreja ao perdoar as penas dos pecados e sobre a eficácia das indulgências aplicadas aos falecidos por modum suffragii, para concentrar a atenção no aspecto venal do comércio das indulgências ou sobre a indevida pretensão da autoridade eclesiástica de intervir com função “mediadora”no âmbito da salvação.

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