O boi bebeu

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24 Julho 2017

Chafurdamos no extrativismo mais primário, marcado por uma matriz socioprodutiva pouco diversificada e altamente dependente da exploração intensiva de recursos naturais, despachados para bem longe, escreve Fernanda Regaldo, jornalista e editora da revista PISEAGRAMA, em artigo publicado por PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 10, página 42 - 51, 2017. Segundo ela, a política de investimento em campeões de commodities relaciona-se com o enorme volume de água que o país exporta diariamente em grãos e bifes.

Eis o artigo.

Com quantos bois se enche uma piscina? O conceito de água virtual, cunhado pelo inglês Tony Allan, da Universidade de Londres, se refere à quantidade de água que carregam os produtos que consumimos. Esse valor não se refere à água de fato presente em cada mercadoria no momento do consumo, mas ao acúmulo de toda a água gasta em seu ciclo de produção. Um boi carrega, a partir dessa perspectiva, toda a água que bebeu ao longo da vida, bem como toda a água embutida nos alimentos que comeu e toda a água usada na limpeza da fazenda em que viveu. Se o boi em questão já estiver no açougue, acrescente-se a isso a água gasta no matadouro. São, em média, 7,75 milhões de litros de água por bicho, o que equivale a 2.325 litros por bife. Apesar de lembrar a velha piada dos elefantes no Fusca, a relação entre bois e água, como se vê, não é nada engraçada.

Segundo relatórios recentes da Organização das Nações Unidas, o uso da água tem crescido a uma taxa duas vezes maior do que o crescimento da população ao longo do último século. O mundo tem só 3% de água potável e, sob a lógica da água virtual, estaríamos exportando uma enorme riqueza. Assim como é possível imaginar o bife do almoço enchendo sua caixa d’água, é possível imaginar rios fluindo entre nações.

O conceito de água virtual tem ajudado a construir o entendimento de que a água é um bem finito e não contabilizado nos fluxos desiguais entre países. Um conceito similar, o de pegada hídrica”, leva a ideia de água virtual um pouco mais adiante. Esse indicador oferece uma visão mais ampla dos tipos de impacto hídrico de cada produto calculando suas pegadas de água verde, azul e cinza. A primeira se refere à água das chuvas, necessária ao crescimento das plantas, evaporada ou incorporada ao produto. A segunda diz respeito a águas de rios, lagos e lençóis freáticos, usualmente utilizadas na irrigação, em processamentos diversos, lavagem e refrigeração. Já a pegada hídrica cinza mede o volume de água necessário para diluir um determinado poluente.

Segundo Arjen Hoekstra, um dos criadores do conceito de pegada hídrica, a agricultura seria responsável por 92% do consumo mundial de água. Um terço desse volume seria destinado à criação de animais. Como a pegada hídrica mede todo o processo de produção, os cálculos incluem a água (verde) gasta no pasto e a água usada (azul) no cultivo dos ingredientes que compõem a ração (entre eles, milho e soja). A pegada dos grãos comidos por bois ou humanos é a mesma. Só que, pra produzir um bife, o boi come toneladas deles. As estimativas da Embrapa são de que cerca de 70% da soja e 80% do milho produzidos no Brasil (incluindo a parte exportada) são usados na produção de ração animal.

As pegadas do boi, assim como as do frango, da soja, do milho, e de quase toda a produção agrícola, no entanto, podem estar sendo subestimadas. Isso porque, segundo o próprio Hoekstra, é difícil calcular a extensão da contaminação das águas por agrotóxicos durante o cultivo e, no caso da criação de animais, por antibióticos.

Há, além disso, outros aspectos ambientais que devem ser levados em conta, ligados à escala industrial de produção das commodities agrícolas do País. Tanto as grandes extensões de pasto quanto as monoculturas tendem a ter índices de evaporação muito maiores do que a vegetação nativa que destruíram; seu alastramento desordenado e voraz acaba por desequilibrar, em longo prazo, índices pluviométricos e meteorológicos, contribuindo em mais um aspecto para a escassez crescente de recursos hídricos.

As grandes extensões de terras sem irrigação, além disso, levam à erosão do solo e à desertificação. Já a agricultura irrigada desperdiça uma enormidade de água. Apesar de a agricultura irrigada ser responsável por algo em torno de 70% do consumo da água retirada de rios e lençóis – ou seja, água azul – apenas 10% do território cultivado é irrigado. Trocando em miúdos, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Ou bebe, o que dá mais ou menos no mesmo.

Pequenas fazendas, por sua vez, em que o gado é criado solto, sem pastos extensivos, têm um impacto por bife consideravelmente menor. Estudos conduzidos por Hoekstra mostram que culturas orgânicas e em menor escala reduzem drasticamente a evaporação. Se nossas pegadas hídricas apontam para a necessidade de repensar os produtos de uso cotidiano, elas sugerem também modelos produtivos mais viáveis do ponto de vista ecológico, que no Brasil têm sido sistematicamente negligenciados. Em uma audiência pública recente na Assembleia Legislativa de Minas Gerais que discutia os impactos da mineração sobre o abastecimento humano, um cartaz empunhado por uma mulher lembrava que “o povo não bebe minério”. A pegada hídrica do minério, mais ainda que a da agropecuária, é uma questão nebulosa.

Pesquisadores da Universidade do Estado do Pará calculam que em 2014 teriam sido exportados 64.978.088,86 m3 de água virtual daquele estado, o segundo maior produtor de minério do País. Os números, no entanto, se baseiam em informações fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Mineração, o IBRAM, e podem ser bem mais graves, já que não há muita transparência na mensuração da água gasta nas etapas do processo de mineração. Há impactos invisíveis e imprevisíveis e faltam informações confiáveis sobre o consumo, o impacto, a origem e o descarte. Os dados são ainda mais opacos no que diz respeito ao volume de água poluída e à natureza dos poluentes, bem como a possíveis danos a mananciais subterrâneos.

A recusa das mineradoras em admitir a presença de metais pesados na lama que sepultou recentemente as sedes urbanas de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Barra Longa e os rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce, apesar da evidência de destruição, é emblemática da complexidade na obtenção de dados.

O ambiente é propício para cismas e suposições. Cálculos realizados por pesquisadores argentinos, por exemplo, apontam que a pegada hídrica da mineração naquele país (que inclui grandes quantidades de ouro, prata, cobre e lítio), quando calculada a partir de dados fornecidos pelas empresas, pode ser 316,1% menor do que quando advém de fontes independentes. Em termos relativos, o estudo conclui, a pegada hídrica da mineração na Argentina poderia ser até 25 vezes maior que a da soja.

A extração do minério inclui várias operações com demanda hídrica, como a eliminação da poeira, lavagem e flotação (método de separação de diversos compostos a partir de um reagente químico misturado à água). Recentemente, a implantação de minerodutos passou a retirar água de rios para transportar o minério por quilômetros sob a terra. Há, ainda, outros impactos: no processo de abertura da cava, geralmente é necessário um rebaixamento das águas subterrâneas, que são bombeadas, alterando o lençol freático. Podem ocorrer acidentes de contaminação desses lençóis e, com certa frequência, há relatos de desaparecimento de nascentes e lagoas, o que compromete o abastecimento de água do local. As alterações e os danos causados aos mananciais subterrâneos, que não costumam entrar nos cálculos, elevariam consideravelmente a pegada hídrica.

As mineradoras são beneficiadas de várias maneiras em suas operações de extração e comércio. Além de vigorarem no Brasil royalties minerais que estão entre os menores do mundo, as empresas não pagam ICMS sobre o produto exportado e contam com outras isenções de várias naturezas. Na Amazônia, por exemplo, a Superintendência do Desenvolvimento da AmazôniaSUDAM concede há mais de 30 anos uma redução de 75% no Imposto de Renda de Pessoa Jurídica. Além disso, apenas recentemente a cobrança pelo uso da água de rios, nascentes e lagoas começou a ser efetivada. O uso é concedido através de outorgas estaduais ou, na maioria dos casos, federais (concedidas pela Agência Nacional de Águas), mas a lei da tarifação não foi implementada em todas as bacias e entidades ambientais denunciam que o sistema de cobrança seria ineficiente e a fiscalização, mínima, beneficiando tanto a mineração quanto o setor agrícola.

A forma mascarada como a água é comercializada, sem que sejam levadas em conta sua utilidade pública e uma perspectiva ambiental de longo prazo, é simbólica de um velho esquema de privilégios. O modelo de extração do minério, assim como o das monoculturas, carrega ainda elementos arraigados da lógica extrativista, como a mão de obra barata e não especializada, os impactos devastadores sobre a natureza, a invasão de terras alheias e a destruição de outras construções de mundo. Tudo com a bênção (e um empurrãozinho) do Estado, que coordena acordões entre empresários, magistrados e órgãos de licenciamento ambiental e garante os privilégios de alguns poucos sem hesitar em usar a força para garantir a desordem das coisas.

Juntas, mineração e agricultura já destruíram dois rios de grande vazão, o São Francisco e o Doce, além de sistematicamente pressionarem pela eliminação de biomas e povos. E há quem veja a vizinha que lava a calçada com a mangueira como o maior de todos os contrassensos. O Brasil produziu, na safra 2015/2016, 95,631 milhões de toneladas de soja. Em 2016, 67,175 milhões de toneladas foram exportadas. A soja lidera o ranking dos produtos de exportação brasileiros, seguida pelo minério de ferro. Naquele mesmo ano, mais de 20% das exportações do País se restringiram a soja e minério. Em seguida vêm os óleos brutos de petróleo, o açúcar bruto de cana, e a carne de frango. Na lista dos top ten encontramos também a celulose, a carne bovina e, mais uma vez, a soja, que entra de novo na lista em forma de farelo e resíduos da extração do óleo.

A suposta vocação do Brasil como exportador de commodities vem de longa data. Desde os tempos de colônia a exportação de produtos primários acerta os ponteiros da balança comercial e o tom das relações políticas e sociais em jogo no País.

O cientista político e atual secretário de educação do Rio de Janeiro, César Benjamin, faz uma genealogia precisa da nossa condição como protótipo de país periférico, apontando para um Brasil-empresa originário em que a cana de açúcar era cultivada, “com administração portuguesa, capitais holandeses e venezianos, mão de obra indígena e africana, tecnologia mediterrânea e matéria-prima trazida dos Açores”. Esses elementos, segundo ele, teriam sido articulados em uma “holding multinacional […] que transformou o açúcar na primeira mercadoria de consumo de massas do mundo e, com ele, formou o moderno mercado mundial”. Assim teria nascido o Brasil, “retaguarda territorial desse grande negócio”.

Não deixa de ser angustiante que o Brasil gabe-se hoje de ser de novo o maior exportador de açúcar do mundo. Apesar de o etanol ter sido negligenciado pelo governo federal após a descoberta do pré-sal, ainda somos também o segundo maior produtor de biocombustível. Com isso, conseguimos a proeza de nos autodenominarmos uma “economia sustentável” produzindo e despejando nas cidades brasileiras milhões de carros Flex por ano. Graças ao cultivo avassalador da cana, que inclui como método corriqueiro de colheita as queimadas (e uma pegada hídrica de 1.285 m3 por tonelada), as exportações do açúcar em 2016 trouxeram um acréscimo de 10,44 bilhões de dólares à balança comercial. O dado poderia ser de 1567, corrigidos os valores em dólares – ou talvez em florins holandeses.

Mais ou menos como naquela época, chafurdamos no extrativismo mais primário, marcado por uma matriz socioprodutiva pouco diversificada e altamente dependente da exploração intensiva de recursos naturais, despachados para bem longe. As exportações de café e de minerais, que também tiveram seus ciclos nos mais remotos períodos de formação do Brasil, também seguem de vento em popa (o café ocupa o 11o lugar no ranking citado acima).

Nesse caminho circular, perdemos a chance de ensejar modelos próprios de país para reafirmarmos um papel de colhedores de bananas. Talvez tenhamos perdido uma vez mais, nas últimas décadas, a chance de construir uma nação que fizesse algum sentido para a maioria das pessoas que a constituem. Para evocar de novo as palavras de Benjamin, “nunca ousamos contrariar o lugar que o sistema-mundo nos atribuiu. Preferimos buscar estratégias oportunistas para extrair da condição periférica algumas vantagens residuais”. Recentemente só readequamos a rota dos navios.

As exportações para a China aumentaram mais de 500% entre 2005 e 2011. Esse novo mercado, voraz por matérias-primas, sustentou o crescimento do PIB brasileiro no período, mesmo com a crise mundial de 2008. Fala-se muito da “fome” chinesa por commodities em geral. Mas, além de faminta, a China é uma nação sedenta. Maior compradora mundial de soja (são dezenas de milhões de toneladas métricas por ano), ela é também, de forma indireta, a maior compradora de água estrangeira. Cada tonelada de soja carrega mais de 2.000 metros cúbicos de água virtual. Apesar de essa água nunca chegar de fato à China, vale o fato de que o país deixa de gastar as próprias (e escassas) reservas hídricas.

Nesse comércio de gigantes, resgatamos com certa indolência aquilo que histórica e fatalmente parecia nos caber. Sob o comando de uma elite mesquinha e preguiçosa, somos assolados pelo modelo cultural do hiperconsumismo chinês e pela feiura absoluta das bugigangas industrializadas que invadem nossas vidas, enquanto vamos nos desfazendo, navio após navio, de enormes montanhas de terra e piscinas de água.

A propaganda do agronegócio produzida e veiculada pela TV Globo dura 50 segundos. Durante essa breve e escancarada catequese, a maior rede nacional de TV enaltece o agronegócio em peças sobre o feijão, o milho, a soja, o frango, a banana, o peixe, o café, a madeira e até mesmo, a “gente”. Fala-se em números, costura-se um pequeno acervo de cenas rurais repletas de alegria e abundância, salpicadas por imagens de tratores e colheitadeiras que atravessam campos cultivados formando sugestivos Vs (imagem-símbolo, aliás, muito cara à casta do agribusiness), e celebram-se agricultores e profissionais da pecuária, chamando-os pelo nome: dona Keiko, Fábio Júnior, Geniceu, seu Fernando, Maria Rita, Zé Francisco. O agro, insiste uma voz em off, é pop, é tech, é tudo.

Mas o agro não é tanto assim. O pesquisador Arilson Favareto mostra dados da Fundação Seade que indicam que são necessários, em média, aproximadamente 100 hectares de cana-de-açúcar para gerar um emprego. Na cultura da soja, a estimativa é de um emprego para cada 200 hectares. Na pecuária extensiva, de um emprego para cada 350 hectares. A commoditização da economia promove concentração de riquezas e emprega cada vez menos, com a mão de obra sendo substituída por maquinário pesado. A bancada ruralista, não satisfeita, pressiona por reformas que minam direitos dos trabalhadores rurais.

Na lógica do comercial da TV Globo, há um fora-de-campo silenciado. Não importa se os antepassados de Geniceu conheciam mais de 20 tipos de mandioca e se tiveram seus territórios invadidos por pulverizadores gigantes; não muda nada se o irmão de dona Keiko tem câncer, provavelmente relacionado ao uso de agrotóxicos no plantio de feijão; e é absolutamente irrelevante se o primo de Fábio Júnior não come mais pequi porque o cerrado onde morava deu lugar a eucaliptais. Não há espaço, nos 50 segundos, para discutir a tragédia do agro. Se o agro é pop, o agro não poupa ninguém.

O Brasil está em franca desindustrialização. A participação atual da indústria no PIB, de 14%, é próxima à da primeira metade da década de 1940, quando o País passou a empreender esforços para fortalecer esse setor, incentivando a produção nacional para substituir importações. Os ramos mais afetados são justamente aqueles intensivos em capital e tecnologia.

O setor manufatureiro deixou de ser predominante nas exportações do País em 2008. Em 2015, as exportações de manufaturados haviam caído para 38,1% do total. Quase todos os manufaturados que têm algum peso na balança comercial são, na verdade, semimanufaturados, ou seja, produtos com baixo grau de tecnologia. De acordo com dados da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP, entre 2006 e 2014, setores intensivos em recursos naturais e que usam pouca tecnologia responderam por quase 70% de todo o aumento de recursos provenientes das exportações da indústria. Entre eles estão o abate e a fabricação de produtos de carne, a produção e o refino de açúcar, a produção de óleos e gorduras vegetais.

Em 2016, apenas dois produtos de alta densidade tecnológica entraram no ranking das dez mais importantes exportações brasileiras, dominadas pelo agronegócio: os aviões da Embraer e os automóveis. Com relação a esses últimos, não custa lembrar que as linhas de montagem empregam, notoriamente, mão de obra barata, já que a transferência dos parques industriais de montadoras multinacionais para o Brasil se deu, como em tantos outros setores, sem transferência de tecnologia.

Levantamentos do Ministério do Trabalho e Previdência Social apontam que 85% dos empregos gerados pela economia brasileira durante a última década pagam até 1,5 salário mínimo, e praticamente 100% pagam até dois salários mínimos. A criação líquida de empregos acima de três salários mínimos tem sido negativa há tempos. Nesse contexto, só prospera o setor de serviços que, em geral, não sofre concorrência externa – e que pouco sofisticado se mantém, já que também não sofre competição do setor produtivo e nenhuma demanda por qualificação. Até nas zonas rurais os serviços prevalecem sobre os setores produtivos. Enquanto uma nova oligarquia desponta entre as gramas do Planalto e os campos verdejantes do agribusiness, um contingente de motoboys, vigias, balconistas e atendentes de telemarketing forma a grande expressão da força de trabalho brasileira atual.

A política do BNDES entre 2007 e 2013 foi baseada na aposta em campeãs nacionais”, empresas que teriam o potencial, a partir da avaliação do Banco, de se tornarem líderes globais. Luciano Coutinho, presidente da instituição à época, não escondia a orientação dessa política bilionária. Citando os segmentos de petroquímica, celulose, frigoríficos, siderurgia, suco de laranja e cimento, o economista afirmava que “o número de setores em que o Brasil tem competitividade para projetar empresas eficientes no cenário internacional é relativamente limitado a commodities e algumas pseudocommodities”.

Empresas desses setores receberam empréstimos em condições generosas. No percurso destrambelhado rumo à dita liderança global, algumas campeãs quebraram (incluindo a OGX de Eike Batista, que chegou a receber mais de seis bilhões de reais do Banco) e tantas outras tiveram seus executivos acusados de corrupção ou sofrem processos judiciais (incluindo a Odebrecht, que levou quase 85% do crédito concedido para negócios internacionais). O mais surpreendente, no entanto, é que não houve impactos positivos na economia, e a taxa de investimento do País, durante todo o período, não cresceu.

Os contratos de empréstimo do BNDES com as empresas são sigilosos, mas sabe-se que os repasses do Tesouro ao Banco no período foram da ordem de 450 bilhões de reais. É do Tesouro, afinal, que saía o dinheiro destinado às empresas, e na falta de dinheiro em caixa, ele emitiu e vendeu títulos, pagando sobre eles os juros praticados no mercado nacional, os mais altos do mundo (neste caso, algo em torno de 14,25%). O BNDES, por sua vez, repassou o dinheiro aos campeões por juros muito mais baixos, em torno de 6%.

Um levantamento do economista Mansueto Almeida, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA, indica que só o custo anual da diferença na taxa de juros pago pelo Tesouro é de cerca de Complexo do Açu e a exportação de commodities: ''Continuaremos vivendo como se nunca tivéssemos saído do século XVI''. Entrevista especial com Marcos Pedlowski

No livro Never Out of Season: How Having the Food We Want When We Want It Threatens Our Food Supply and Our Future (em português, algo como Nunca fora de época: como ter a comida que queremos no momento em que queremos ameaça nosso abastecimento e nosso futuro), o biólogo Rob Dunn fala da presença continuada da banana e de outros alimentos exóticos às mesas do hemisfério norte. Essa presença se deve a dois elementos centrais: a especialização genética e a monocultura. Ambos estão relacionados com a diminuição da diversidade de espécies cultivadas e, portanto, com o risco crescente de que pragas, doenças e mudanças climáticas acabem com inteiros sistemas agrícolas e de abastecimento.

As probabilidades de uma praga acabar com toda a produção de soja do Brasil (como aliás aconteceu com o cacau no anos 1980, atingido pela vassoura-de-bruxa) são baixas, mas não descartáveis. Neste ano, por exemplo, o município de Chapadão do Sul, no Mato Grosso do Sul, registrou 36 casos de ferrugem asiática, a grande vilã das plantações. Suponhamos então que uma doença como a ferrugem asiática se alastre sem controle. Suponhamos, melhor ainda, que uma doença muito pior que a ferrugem asiática destrua os campos de monoculturas, um a um.

Na atual dependência da exportação de commodities, a hipótese significaria uma economia em frangalhos, já que, além da soja em si, a produção de bois e frangos, sem ração, também ficaria comprometida. Mas o que à primeira vista pode parecer puro mau augúrio é na verdade um convite à livre imaginação. Perderíamos, afinal, relativamente poucos empregos, e deixaríamos de verter torrentes de água em terras distantes. Teríamos, é claro, menos bifes no almoço. Mas um outro mundo poderia renascer das ruínas, com campos retomados por indígenas e pequenos produtores, comunidades agrícolas autogeridas, a vegetação nativa crescendo sobre uma boa parte das plantadeiras, colheitadeiras e tratores, e animais voltando aos seus hábitats. Poderíamos até voltar a ouvir aquelas duas palavras, misteriosamente extintas do léxico político: reforma agrária.

Muito provavelmente, no entanto, haveria, pronto para o plantio, algum novo tipo de grão, desenvolvido em laboratórios multinacionais, mais resistente e eficiente e resguardado por políticas agressivas de incentivo. Afinal, o que faz uma república de bananas não são as bananas em si, mas as forças sociopolíticas que definem sua posição na divisão internacional do trabalho. No Brasil de hoje, parece não haver mais lugar para a imaginação, a menos que ela seja distópica. Seguimos, por enquanto, moendo pedras e bebendo bois. 

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