Quem sobreviverá ao pós-capitalismo?

Mais Lidos

  • Elon Musk e o “fardo do nerd branco”

    LER MAIS
  • O Novo Ensino Médio e as novas desigualdades. Artigo de Roberto Rafael Dias da Silva

    LER MAIS
  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

Por: Jonas | 16 Outubro 2014

Adiós al capitalismo” é o livro que Futuro Anterior acaba de publicar. Uma combinação não casual de temporalidades entre o título do texto e da editora: um futuro já efetivado, possível apenas a partir de um imaginário utópico e concreto. O autor é o historiador francês Jérôme Baschet e foi convidado para um seminário, em Buenos Aires, pelo Centro Franco Argentino (CFA). Baschet se dedicava à história medieval europeia até que, em 1995, aproximou-se do então recente levante zapatista e sua vida deu um giro. Viveu em Chiapas por muitos anos. No momento, divide seu tempo entre o México e a França. O título de seu livro, evidentemente, está relacionado ao que aprendeu com a insurreição indígena.

Por outro lado, lembra o livro de André Gorz: ‘Adeus ao proletariado’. Somente o tom é totalmente diferente, pois Baschet acrescenta a esse título outras três noções que completam o título: autonomia, sociedade do bem viver e multiplicidade de mundos. Aí está a diferença nas formas de dizer adeus. A obra de Baschet abre um regime de futuro e não apenas de nostalgia por um sujeito revolucionário em extinção. No entanto, o zapatismo como experiência concreta não é modelado, nem utilizado como fonte de um otimismo metodológico, mas, sim, como perspectiva que sustenta – diante de todos e para todos – uma pergunta tão simples como radical: o que é o anticapitalismo hoje em dia?

 
Fonte: http://goo.gl/ixdgca  

A entrevista é de Verónica Gago, publicada por Ideas, 29-09-2014. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Este livro procura ser uma teoria política do zapatismo?

Não posso ter a pretensão de escrever uma teoria da prática zapatista. Minha posição não é a do cientista social, nem a do teórico. Escrevo por um interesse político. Em suas palavras, nas do zapatismo, há uma nova forma de fazer teoria que tem a ver com romper a abstração. Também não me limito a repetir o que eles dizem. Acredito que se trata de aprender dessa mistura de experiência e de palavra e assumi-la em toda sua profundidade. Em outro sentido, claro que este é o meu livro, não pretende falar em nome deles.

O livro se propõe estabelecer como exercício político. O zapatismo é o início de um ciclo com sua aparição pública em 1994; acompanham-lhe, em 1995, as greves na França, as manifestações de Seatle, em 1999, a crise e os movimentos de 2001 na Argentina e as insurreições do ciclo 2000-2003 na Bolívia, segundo enumera o historiador.

Depois, a discussão a respeito do zapatismo, ao menos no Cone Sul, acontece frente ao brilho que os chamados governos progressistas da região assumem.

Como você percebe esse debate?

Falo a partir do México e da Europa. E acredito que o México é bem diferente dos casos sul-americanos, tanto por sua relação com os Estados Unidos, como porque não teve um governo progressista. Mas, é claro que esta discussão circula em Chiapas.

Entretanto, é uma discussão que no México ocorre com a candidatura de López-Obrador e a La Outra Campaña dos zapatistas, em 2006...

Sim, claro. Contudo, quero dizer que a perspectiva do livro, que é com a qual os zapatistas se identificam, é o anticapitalismo. Discussão que fica fora quando o debate se dá em torno da avaliação centrada nos governos progressistas, sejam de fato ou não. Quando se fala do fim do neoliberalismo, sustento que essa é uma discussão ao redor de certa recuperação do Estado em alguns setores, especialmente a partir da crise de 2008. Os governos progressistas da América do Sul são um exemplo possível disto.

No entanto, a análise que apresento é que é preciso ultrapassar essa ideia do fim do neoliberalismo, porque é possível que esta forma de maior presença do Estado implique em certo reequilíbrio para o próprio funcionamento do neoliberalismo. É preciso enfatizar que o principal ator da implementação de políticas neoliberais foram os Estados, que é um instrumento para a imposição das normas capitalistas ao conjunto social.

Então, talvez o que está começando a se dar é um uso maior do Estado nessa direção, para este momento de crise. A ‘relegitimação’ do Estado tem a ver com as ferramentas que recebe para essa tarefa.

Exatamente, o livro inicia com uma definição do neoliberalismo. E refere-se à crise de 2008 como a primeira crise global do mundo globalizado. Por um lado, endividamento massivo e uma fragilização das finanças e, por outro, exibição da plasticidade do capitalismo para desarmar prognósticos catastróficos de seu fim. Depois de um momento de auge, para certa esquerda o zapatismo se transformou em uma experiência romântica. O argumento é duplo: porque não assume o problema do Estado e, vinculado ao anterior, porque sua escala territorial é circunscrita a uma série de municípios. Qual é a sua opinião sobre essas objeções?

A opção zapatista é a autonomia e a distância em relação ao Estado e entendo que a partir de posições estatais isto possa soar romântico. É parte do debate das esquerdas. Porém, voltemos ao anterior: esta distância em relação ao Estado está na base da reformulação da perspectiva anticapitalista para a qual contribuíram os zapatistas. Por outro lado, parece-me um engano localizar o zapatismo como experiência local. Se assim, não se explicaria seu alcance. Seu impacto para certos setores das esquerdas diminuiu em razão da divisão que se dá a respeito da posição sobre o Estado, e por certa aparente invisibilidade de suas práticas. Entretanto, exatamente quando muitos diziam que o zapatismo estava morto, ocorre a marcha do silêncio, no dia 21 de dezembro de 2012.

A experiência de construir a autonomia, ou seja, outra forma de organização político-social a partir de baixo, a partir da capacidade das pessoas em se governar e criar suas próprias instituições, saindo do marco do Estado, não é uma questão que possamos qualificar como local, já que, como experimento, tem validade e alcance geral.

Colocaria nessa marcha de dezembro de 2012 o início de um novo ciclo na trajetória zapatista?

Acredito que 40.000 zapatistas marchando abrem uma fase diferente, precisamente quando o discurso oficial e de alguns setores da academia era o de que haviam acabado. A partir desta demonstração de força e vitalidade, começaram a anunciar novas iniciativas. Em especial, estão convidando para a escolinha zapatista, onde já estiveram mais 5.000 pessoas para ver e compartilhar como se está construindo uma educação, uma saúde, uma justiça, um governo autônomos. Desta maneira, eles se abrem para divulgar o que estiveram construindo de maneira silenciosa durante mais de 10 anos. É uma nova etapa, na qual é pertinente voltar a debater sobre a experiência zapatista. Na realidade, o debate sobre o zapatismo se deu nos anos 1990 e inícios dos anos 2000, quando ainda não haviam desenvolvido sua contribuição essencial: os municípios autônomos e as juntas de bom governo. Trata-se de uma organização política que é, ao mesmo tempo, muito simples e muito elaborada, de gente humilde, camponesa, que está avançando na difícil tarefa de construir uma vida autodeterminada. Abrem a possibilidade de pensar e atuar para além do Estado.

A crítica ecológica, sempre desprezada como pouco realista, quase infantil, retoma no argumento de Bashet os três aspectos propostos por Félix Guattari: a destruição do meio ambiente, dos vínculos sociais e o chamado imenso vazio da subjetividade (sofrimentos psíquicos, desapropriação, etc.). Enfatizando a incorporação da norma da concorrência como modalidade subjetiva de normalização, enlaça uma crítica tanto ao consumo como ao neodesenvolvimentismo.

A partir de que dimensão faz essa crítica?

Falamos em pensar a possibilidade de outra organização político-social, que não seja capitalista. Isso significa nos lançar em um imaginário alternativo que implique em romper fortemente com as normas de vida nas quais estamos imersos. Esse é o desafio, que parte da avaliação do desastre ao qual o capitalismo nos leva. Claro que o modelo neodesenvolvimentista pode ter suas vantagens e se apresentar como a maravilha do mundo, mas está justamente aí o ponto: abandonamos a avaliação crítica dessa realidade? Acredito que é preciso avaliá-la com toda a negatividade que implica, sem desconhecer as dimensões de atração e sedução que envolve. Também há outra questão urgente: não minimizar a destruição dos territórios e em especial dos territórios indígenas, que este modelo acarreta, e suas múltiplas consequências negativas para os seres humanos e não humanos.

Você insiste, especialmente, no sofrimento psíquico ao qual a normalização competitiva conduz...

O desgaste psíquico em nossas sociedades alcança, hoje, um grau ao qual nunca se havia chegado em toda a história da humanidade. Por isso, acredito que são necessários outros “possíveis”, que não cabem no neodesenvolvimentismo consumista. É claro é muito difícil. O zapatismo é um solo concreto para pensar outra opção para os povos do mundo, rompendo com a ilusão de que não há alternativa. O livro aposta nesse esforço de imaginação, analisando um além da produção pela produção, que é a lógica do capitalismo. Essa premissa produtivista nunca se questiona. E volto à questão antropológica: efetivamente, trata-se de transformar subjetividades, para além de como a modernidade pensou o individual e o coletivo. Isso não implica supor uma natureza humana angelical.

A tentação da mercadoria não é simples porque existem aquelas que podem ser úteis e agradáveis. No entanto, isso também começa a mostrar o seu lado obscuro: por exemplo, o aumento de doenças relacionadas ao que comemos e ao modo como se produz, em especial com o uso massivo de pesticidas.

É preciso aprofundar-se a respeito dos impactos de saúde e ambientas e nos modos de exploração e sofrimento que acarretam os níveis de consumo. Penso isso também em termo de uma ética política. Por exemplo, no México houve, há poucos dias, um enorme acidente em uma mina de cobre de Sonora. Os rios estão contaminados e se descobre que os empresários não tomaram nenhuma providência. E isto se repete incessantemente.

Como se narra uma história pós-capitalista?

A ideia de futuro é fundamental na modernidade. O problema é como reabri-lo para além dela. Isso implica em uma luta a partir de duas frentes. Por um lado, contra o domínio neoliberal do presente perpétuo, como impossibilidade de alternativa, exceto como concorrência como condução de condutas, brigar para ter seu lugar ou desaparecer. A concorrência provém da norma perfeita de adaptação às determinações do sistema. Também não podemos retomar as leis da história, do marxismo clássico, porque essa é uma das bases dos fracassos do século passado. Trata-se de construir uma visão da história mais aberta, não unilinear, capaz de sair dos modelos da modernidade. E nisso os zapatistas têm muito a contribuir: apresentaram uma perspectiva de transformação social que junta passado e futuro. O passado não é arcaísmo, não é algo que retorna sem modificação, mas, sim, esboça um futuro incerto, como possibilidade e sem receita. Ao mesmo tempo, todo o passado está à frente.

Ao que se refere com a ‘desespecialização’ da política?

‘Desespecialização’ da política significa investir a favor de uma multi-atividade e isso se pode fazer apenas a partir da recuperação do tempo disponível. O que permite não depender do mercado como único provedor de serviços e bens. Isso é o que a experiência de autogoverno rebelde também propõe como democracia radical: uma organização coletiva, não estatal, com dois princípios: a ‘desespecialização’ da política e a reapropriação da capacidade de decidir coletivamente.

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Quem sobreviverá ao pós-capitalismo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU