''Uma coisa é perdoar, outra é desfigurar a verdade.'' Entrevista com Carlo Caffarra

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

24 Março 2014

Duas semanas depois do consistório sobre a família, o cardeal arcebispo de Bolonha, Carlo Caffarra, aborda com o jornal Il Foglio os temas na ordem do dia do Sínodo Extraordinário de outubro próximo e o ordinário de 2015: matrimônio, família, doutrina da Humanae vitae, penitência.

Desde 15 fevereiro de 2004, Caffarra é arcebispo de Bolonha, onde substituiu o cardeal Giacomo Biffi, que se retirou por ter alcançado o limite de idade. Dois anos depois, Bento XVI o criou cardeal. Ele obteve o doutorado em Direito Canônico na Pontifícia Universidade Gregoriana com uma tese sobre a finalidade do matrimônio e, depois, obteve um diploma de especialização em Teologia Moral pela Pontifícia Academia Alfonsina.

Em 1980, João Paulo II o nomeou perito no Sínodo dos Bispos sobre o matrimônio e a família e, no ano seguinte, conferiu-lhe o mandato de fundir e presidir o Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família. Em 1995, foi eleito arcebispo de Ferrara-Comacchio, cátedra que manteria por oito anos. Em junho passado, o Papa Francisco o confirmou como arcebispo de Bolonha, até completar os 75 anos de idade, em 2015. Ele também participou do conclave do ano passado.

A reportagem é de Matteo Matzuzzi, publicada no jornal Il Foglio, 15-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

A Familiaris consortio de João Paulo II está no centro de um fogo cruzado. Por um lado, diz-se que ela é o fundamento do Evangelho da família; por outro, que é um texto superado. É pensável uma atualização?

Se falarmos do gênero e do chamado casamento homossexual, é verdade que, no tempo da Familiaris consortio, não se falava sobre isso. Mas de todos os outros problemas, especialmente dos divorciados em segunda união, falou-se a respeito longamente. Disso eu sou uma testemunha direta, porque eu era um dos consultores do Sínodo de 1980. Dizer que Familiaris consortio nasceu em um contexto histórico completamente diferente do de hoje não é verdade.

Feito esse esclarecimento, eu digo que, acima de tudo, a Familiaris consortio nos ensinou um método com o qual se deve abordar as questões do matrimônio e da família. Usando esse método, chegou-se a uma doutrina que continua sendo um ponto de referência inevitável. Qual método? Quando Jesus foi perguntado sobre em quais condições o divórcio era lícito – não se discutia sobre a liceidade como tal naquele tempo –, Jesus não entra na problemática casuística da qual nascia a pergunta, mas indica em qual direção se devia olhar para entender o que é o matrimônio e, consequentemente, qual é a verdade da indissolubilidade matrimonial.

Era como se Jesus dissesse: "Vejam, vocês precisam sair dessa lógica casuística e olhar para outra direção, a do 'Princípio'. Ou seja, vocês têm que olhar lá para onde o homem e a mulher vêm à existência na verdade plena do seu ser homem e mulher, chamados a se tornarem uma só carne". Na catequese, João Paulo II diz: "Surge, então – isto é, quando o homem foi posto pela primeira vez diante da mulher –, a pessoa humana na dimensão do dom recíproco, cuja expressão (que também é a expressão da sua existência como pessoa) é o corpo humano em toda a verdade original da sua masculinidade e feminilidade". Esse é o método da Familiaris consortio.

Qual é o significado mais profundo e atual da Familiaris consortio?

Por ter olhos capazes de olhar para dentro da luz do "Princípio", a Familiaris consortio afirma que a Igreja tem um sentido sobrenatural da fé, que "não consiste somente ou necessariamente no consenso dos fiéis. A Igreja, seguindo a Cristo, procura a verdade, que nem sempre coincide com a opinião da maioria. Escuta a consciência e não o poder, e nisso defende os pobres e desprezados. A Igreja pode apreciar também a pesquisa sociológica e estatística, quando se revelar útil para a captar o contexto histórico. Tal investigação, porém, não pode ser considerada por si só como expressão do sentido da fé" (FC 5).

Eu falei de verdade do matrimônio. Eu gostaria de esclarecer que essa expressão não denota uma norma ideal do matrimônio. Denota o que Deus, com o seu ato criativo, inscreveu na pessoa do homem e da mulher. Cristo diz que, antes de considerar os casos, é preciso saber do que estamos falando. Não estamos falando de uma norma que admite ou não exceções, de um ideal pelo qual devemos tender. Estamos falando do que são o matrimônio e a família. Através desse método, a Familiaris consortio identifica o que é o matrimônio e a família, e qual é o seu genoma – uso a expressão do sociólogo Donati –, que não é um genoma natural, mas sim social e comunal.

É dentro dessa perspectiva que a Exortação identifica o sentido mais profundo da indissolubilidade matrimonial (cf. FC 20). A Familiaris consortio, portanto, representou um desenvolvimento doutrinal grandioso, possibilitado também pelo ciclo de catequeses de João Paulo II sobre o amor humano. Na primeira dessas catequeses, no dia 3 de setembro de 1979, João Paulo II diz que pretende acompanhar de longe os trabalhos preparatórios do Sínodo, que seria realizado no ano seguinte. Ele não fez isso abordando diretamente temas da cúpula sinodal, mas sim dirigindo a atenção às raízes profundas. É como se ele tivesse dito: "Eu, João Paulo II, quero ajudar os Padres sinodais. Como posso ajudá-los? Levando-os à raiz das questões".

É a partir desse retorno às raízes que nasce a grande doutrina sobre o matrimônio e a família dada à Igreja pela Familiaris consortio. E ele não ignorou os problemas concretos. Ele também falou do divórcio, das coabitações livres, do problema da admissão dos divorciados em segunda união à Eucaristia. Portanto, a imagem de uma Familiaris consortio que pertence ao passado, que não tem mais nada a dizer ao presente é caricatural. Ou é uma consideração feita por pessoas que não a leram.

Muitas Conferências Episcopais enfatizaram que, das respostas aos questionários em preparação para os próximos dois Sínodos, vem à tona que a doutrina da Humanae vitae quase só cria confusão. É assim ou foi um texto profético?

No dia 28 de junho 1978, pouco mais de um mês antes de morrer, Paulo VI dizia: "Pela Humanae vitae, vocês vão agradecer a Deus e a mim". Depois de quase 46 anos, vemos sinteticamente o que aconteceu com a instituição matrimonial e nos damos conta de como esse documento foi profético. Negando a conexão inseparável entre a sexualidade conjugal e a procriação, isto é, negando o ensinamento da Humanae vitae, abriu-se o caminho para a desconexão recíproca entre a procriação e a sexualidade conjugal: from sex without babies to babies without sex [de sexo sem bebês para bebês sem sexo].

Foi-se escurecendo progressivamente o fundamento da procriação humana no campo do amor conjugal e se construiu gradualmente a ideologia de que qualquer pessoa pode ter um filho. O homem ou a mulher solteiros, o homossexual, talvez alugando a maternidade. Portanto, coerentemente, passou-se da ideia do filho esperado como um dom ao filho programado como um direito: diz-se que existe o direito a ter um filho.

Pense-se na recente sentença do Tribunal de Milão, que afirmou o direito à genitorialidade, como se afirmasse o direito a ter uma pessoa. Isso é incrível. Eu tenho o direito de ter coisas, não pessoas. Foi-se construindo progressivamente um código simbólico, tanto ético quanto jurídico, que já relega a família e o matrimônio à pura afetividade privada, indiferente aos efeitos sobre a vida social. Não há dúvida de que, quando a Humanae vitae foi publicada, a antropologia que a sustentava era muito frágil, e não estava ausente uma certo biologismo na argumentação. O magistério de João Paulo II teve o grande mérito de construir uma antropologia adequada com base na Humanae vitae. A pergunta que deve ser feita não é se a Humanae vitae é aplicável hoje e em que medida, ou se é fonte de confusão. A meu ver, a verdadeira pergunta a se fazer é outra.

Qual?

A Humanae vitae diz a verdade acerca do bem inerente à relação conjugal? Diz a verdade acerca do bem que está presente na união das pessoas dos dois cônjuges no ato sexual? De fato, a essência das proposições normativas da moral e do direito se encontra na verdade do bem que nelas é objetivada. Se não nos colocamos nessa perspectiva, cai-se na casuística dos fariseus. E não saímos mais, porque nos enfiamos em um impasse no qual somos forçados a escolher entre a norma moral e a pessoa. Se salvamos uma, não salvamos a outra.

A pergunta do pastor, portanto, é a seguinte: como posso guiar os cônjuges para viver o seu amor conjugal na verdade? O problema não é verificar se os cônjuges se encontram em uma situação que os exima de uma norma, mas sim verificar qual é o bem da relação conjugal. Qual é a sua verdade mais íntima. Espanta-me que alguns digam que a Humanae vitae cria confusão. O que isso significa? Mas eu conheço a fundação que João Paulo II fez da Humanae vitae?

Acrescento uma consideração. Admira-me profundamente o fato de que, nesse debate, até mesmo eminentíssimos cardeais não levam em conta as 134 catequeses sobre o amor humano. Mas nenhum papa tinha falado tanto disso. Esse Magistério é desconsiderado, como se não existisse. Cria confusão? Mas quem afirma isso está a par do que foi feito no plano científico com base em uma regulação natural das concepções? Está a par dos inúmeros casais que vivem no mundo, com alegria, a verdade da Humanae vitae?

O cardeal Kasper também destaca que há grandes expectativas na Igreja em vista do Sínodo e que se corre o risco de "uma péssima decepção" se elas forem desatendidas. É um risco concreto, na sua opinião?

Eu não sou profeta, nem filho de profeta. Acontece um evento admirável. Quando o pastor não prega opiniões suas ou do mundo, mas sim o Evangelho do matrimônio, as suas palavras tocam os ouvidos dos ouvintes, mas no seu coração é o Espírito Santo que entra em ação, abrindo às palavras do pastor. Eu me pergunto, além disso, de que expectativas estamos falando.

Uma grande rede de televisão dos EUA fez uma pesquisa nas comunidades católicas espalhadas em todo o mundo. Ela fotografa uma realidade muito diferente das respostas ao questionário registradas na Alemanha, Suíça e Áustria. Apenas um exemplo. Cerca de 75% da maior parte dos países africanos são contrários à admissão dos divorciados em segunda união à Eucaristia. Repito mais uma vez: de que expectativas estamos falando? Das do Ocidente? Portanto, o Ocidente é o paradigma fundamental com base no qual a Igreja deve anunciar? Estamos ainda nesse ponto? Vamos ouvir um pouco também os pobres.

Fico muito perplexo e pensativo quando se diz que ou vamos em uma determinada direção, caso contrário seria melhor não fazer o Sínodo. Que direção? A direção que, diz-se, as comunidades da Europa Central indicaram? E por que não a direção indicada pelas comunidades africanas?

O cardeal Müller disse que é lamentável que os católicos não conheçam a doutrina da Igreja e que essa falha não pode justificar a exigência de adequar o ensinamento católico ao espírito do tempo. Falta uma pastoral familiar?

Faltou. É uma gravíssima responsabilidade nossa, dos pastores, reduzir tudo aos cursos pré-matrimoniais. E a educação à afetividade dos adolescentes, dos jovens? Qual pastor de almas ainda fala de castidade? Um silêncio quase total, há anos, pelo que eu vejo. Olhemos para o acompanhamento dos jovens casais: perguntemo-nos se anunciamos realmente o Evangelho do matrimônio, se anunciamos como Jesus pediu.

Além disso, por que não nos perguntamos por que os jovens não se casam mais? Nem sempre é por razões econômicas, como geralmente se diz. Eu falo da situação do Ocidente. Se fizermos uma comparação entre os jovens que se casavam até 30 anos atrás e hoje, as dificuldades que eles tinham 30 ou 40 anos atrás não eram menores do que hoje. Mas eles construíam um projeto, tinham uma esperança. Hoje, têm medo, e o futuro dá medo. Mas se há uma escolha que exige esperança no futuro é a escolha de se casar. São essas as interrogações fundamentais hoje.

Tenho a impressão de que, se Jesus se apresentasse de repente em um congresso de padres, bispos e cardeais que estão discutindo todos os graves problemas do matrimônio e da família, e lhe perguntassem, como fizeram os fariseus, "Mestre, o matrimônio é dissolúvel ou indissolúvel? Ou há casos depois de uma devida penitência...?", o que Jesus responderia? Eu acho que a mesma resposta dada aos fariseus: "Olhem para o 'Princípio'". O fato é que agora querem se curar dos sintomas sem enfrentar seriamente a doença.

O Sínodo, portanto, não poderá evitar tomar posição diante desse dilema: o modo pelo qual foi evoluindo a morfogênese do matrimônio e da família é positivo para as pessoas, para os seus relacionamentos e para a sociedade, ou, ao invés, constitui uma decadência das pessoas, dos seus relacionamentos, que pode ter efeitos devastadores para a civilização inteira? O Sínodo não pode evitar essa pergunta. A Igreja não pode considerar que esses fatos (jovens que não se casam, coabitações livres em aumento exponencial, introdução do chamado casamento homossexual nos ordenamentos jurídicos e muito mais) são desvios históricos, processos históricos que ela deve reconhecer e, portanto, substancialmente se adequar. Não.

João Paulo II escrevia em A loja do ourives que "criar algo que reflita o ser e o amor absoluto é talvez a coisa mais extraordinária que existe. Mas ela se salva sem se dar conta". A Igreja também, portanto, deve deixar de nos fazer sentir o sopro da eternidade dentro do amor humano? Deus avertat!

Fala-se da possibilidade de readmitir à Eucaristia os divorciados em segunda união. Uma das soluções propostas pelo cardeal Kasper tem a ver com um período de penitência que leve à plena reaproximação. É uma necessidade já inevitável ou é uma adequação do ensinamento cristão de acordo com as circunstâncias?

Quem faz essa hipótese, ao menos até agora, não respondeu a uma pergunta muito simples: e o primeiro matrimônio ratificado e consumado? Se a Igreja admite à Eucaristia, no entanto, deve fazer um juízo sobre a legitimidade da segunda união. É lógico. Mas então – como eu me perguntava – e o primeiro matrimônio? O segundo, diz-se, não pode ser um verdadeiro segundo matrimônio, já que a bigamia é contra a palavra do Senhor. E o primeiro? Dissolveu-se? Mas os papas sempre ensinaram que o poder do papa não chega a isso: sobre o matrimônio ratificado e consumado, o papa não tem nenhum poder.

A solução proposta leva a pensar que o primeiro matrimônio continua, mas há também uma segunda forma de convivência que a Igreja legitima. Portanto, há um exercício da sexualidade humana extraconjugal que a Igreja considera legítima. Mas, com isso, nega-se a espinha dorsal da doutrina da Igreja sobre a sexualidade. Nesse ponto, alguém poderia se perguntar: e por que não se aprovam as coabitações livres? E por que não as relações entre os homossexuais? A pergunta de fundo, portanto, é simples: e o primeiro matrimônio? Mas ninguém responde.

João Paulo II dizia no ano 2000, em um discurso à Rota [Romana] que "emerge com clareza que a não extensão do poder do Romano Pontífice aos matrimônios ratificados e consumados é ensinada pelo Magistério da Igreja como doutrina a ser mantida definitivamente, embora ela não tenha sido declarada de forma solene, mediante ato definitório". A fórmula é técnica: "doutrina a ser mantida definitivamente" significa que não é mais admitida a discussão entre os teólogos e a dúvida entre os fiéis com relação a isso.

Portanto, não é apenas questão de práxis, mas também de doutrina?

Sim, aqui se toca na doutrina. Inevitavelmente. Também se pode dizer que não se faz isso, mas se faz. E não só. Introduz-se um costume que, a longo prazo, determina esta ideia no povo, não só cristão: não existe nenhum matrimônio absolutamente indissolúvel. E isso é certamente contra a vontade do Senhor. Não há dúvida alguma sobre isso.

Mas não há o risco de olhar para o sacramento apenas como uma espécie de barreira disciplinar, e não como um meio de cura?

É verdade que a graça do sacramento também é sanativo, mas é preciso ver em que sentido. A graça do matrimônio cura porque liberta o homem e a mulher da sua incapacidade de se amarem para sempre com toda a plenitude do seu ser. Este é o remédio do matrimônio: a capacidade de se amar para sempre. Curar significa isso. Não que se faça com que esteja um pouco melhor a pessoa que, na realidade, continua doente, isto é, constitutivamente incapaz de definitividade.

A indissolubilidade matrimonial é um dom que é dado por Cristo ao homem e à mulher que se casam n'Ele. É um dom. Não é, acima de tudo, uma norma que é imposta. Não é um ideal ao qual se deve tender. É um dom, e Deus nunca se arrepende dos seus dons. Não por acaso Jesus, respondendo aos fariseus, fundamenta a sua resposta revolucionária em um ato divino. "O que Deus uniu", diz Jesus. É Deus que une, caso contrário, a definitividade continuaria sendo um desejo que é, sim, natural, mas impossível de se realizar. Deus mesmo leva a cumprimento.

O homem também pode decidir não usar essa capacidade de amar definitiva e totalmente. A teologia católica, depois, conceituou essa visão de fé através do conceito de vínculo conjugal. O matrimônio, o sinal sacramental do matrimônio produz imediatamente entre os cônjuges um vínculo que não depende mais da sua vontade, porque é um dom que Deus lhes deu. Essas coisas não são ditas aos jovens que se casam hoje. E, depois, nos admiramos quando certas coisas acontecem.

Um debate muito aceso tem se articulado em torno do sentido da misericórdia. Que valor essa palavra tem?

Tomemos a página de Jesus e da adúltera. Para a mulher encontrada em flagrante adultério, a lei mosaica era clara: devia ser apedrejada. De fato, os fariseus perguntam a Jesus o que ele pensava, com o objetivo de atraí-lo para a sua perspectiva. Se ele tivesse dito "apedrejá-la", eles imediatamente diriam: "Vejam, ele que prega a misericórdia, que vai comer com os pecadores, quando é o momento, também diz para apedrejá-la". Se ele tivesse dito: "Vocês não devem apedrejá-la", eles diriam: "Vejam a que a misericórdia leva, a destruir a lei e a todo vínculo jurídico e moral". Essa é a perspectiva típica da moral casuística, que inevitavelmente leva você a um impasse no fim do qual há o dilema entre a pessoa e a lei.

Os fariseus tentavam levar Jesus para esse impasse. Mas ele sai totalmente dessa perspectiva e diz que o adultério é um grande mal que destrói a verdade da pessoa humana que trai. E, justamente por ser um grande mal, Jesus, para removê-lo, não destrói a pessoa que o cometeu, mas a cura desse mal e recomenda que não incorra nesse grande mal que é o adultério. "Nem eu te condeno, vai e não peques mais". Essa é a misericórdia da qual só o Senhor é capaz. Essa é a misericórdia que a Igreja, de geração em geração, anuncia. A Igreja deve dizer o que é mau. Ela recebeu de Jesus o poder de curar, mas na mesma condição.

É muito verdade que o perdão sempre é possível: é para o assassino, também é para o adúltero. Já era uma dificuldade que os fiéis a Agostinho tinham: perdoa-se o homicídio, mas, mesmo assim, a vítima não ressurge. Por que não perdoar o divórcio, esse estado de vida, um novo matrimônio, mesmo sendo uma "reviviscência" do primeiro não é mais possível? A questão é completamente diferente. No homicídio, perdoa-se uma pessoa que odiou outra pessoa e pede-se o arrependimento por isso.

A Igreja, no fundo, se entristece não porque uma vida física terminou, mas sim porque, no coração humano, houve um tal ódio a ponto de induzir até mesmo suprimir a vida física de uma pessoa. Isso é o mal, diz a Igreja. "Você tem que se arrepender por isso e eu vou te perdoar". No caso de divorciado em segunda união, a Igreja diz: "Isso é o mal: a rejeição do dom de Deus, a vontade de despedaçar o vínculo posto em ação pelo próprio Senhor". A Igreja perdoa, mas com a condição de que haja o arrependimento. Mas o arrependimento, nesse caso, significa voltar ao primeiro matrimônio. Não é sério dizer: "Estou arrependido, mas permaneço no mesmo estado que constitui a ruptura do vínculo, da qual eu me arrependo". Muitas vezes – diz-se – não é possível. Há tantas circunstâncias, é claro, mas então, nessas condições, essa pessoa está em um estado de vida objetivamente contrário ao dom de Deus. A Familiaris consortio diz isso explicitamente.

A razão pela qual a Igreja não admite os divorciados em segunda união à Eucaristia não é porque a Igreja presume que todos aqueles que vivem nessas condições estão em pecado mortal. A condição subjetiva dessas pessoas é conhecida pelo Senhor, que olha na profundidade do coração. São Paulo também diz isso: "Não queiram julgar antes do tempo". Mas sim porque – e está escrito também na Familiaris consortio – "o seu estado e a sua condição de vida contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atuada pela Eucaristia" (FC 84).

A misericórdia da Igreja é a de Jesus, a que diz que foi desfigurada a dignidade de esposo, a recusa do dom de Deus. A misericórdia não diz: "Paciência, vamos ver uma forma de remediar como pudermos". Isso é tolerância, essencialmente diferente da misericórdia. A tolerância deixar as coisas como estão, por razões superiores. A misericórdia é o poder de Deus que tira do estado de injustiça.

Não se trata de acomodação, portanto.

Não é uma acomodação. Seria indigno do Senhor tal coisa. Para fazer acomodações, bastam os homens. Aqui se trata de regenerar uma pessoa humana, e só Deus é capaz disso, e, em seu nome, a Igreja. São Tomás diz que a justificação de um pecador é uma obra maior do que a criação do universo. Quando um pecador é justificado, acontece algo que é maior do que todo o universo. Um ato que, talvez, ocorre em um confessionário, através de um sacerdote humilde, pobre. Mas ali se cumpre um ato maior do que a criação do mundo. Não devemos reduzir a misericórdia a acomodações, ou confundi-la com a tolerância. Isso é injusto para com a obra do Senhor.

Um dos assuntos mais citados por aqueles que desejam uma abertura da Igreja para as pessoas que vivem em situações consideradas irregulares é que a fé é uma, mas os modos de aplicá-la às circunstâncias particulares devem ser adequados aos tempos, como a Igreja sempre fez. O que o senhor pensa?

A Igreja pode se limitar a ir lá onde os processos históricos a levam, como se fossem desvios naturais? Nisso consiste anunciar o Evangelho? Eu não acredito, porque, senão, eu me pergunto como se faz para salvar o homem. Conto-lhe uma história. Uma esposa ainda jovem, abandonada pelo marido, me disse que vive na castidade, mas faz um esforço terrível. Porque, diz, "eu não sou uma freira, mas sim uma mulher normal". Mas ela me disse que não poderia viver sem a Eucaristia. E, portanto, o peso da castidade também se torna leve, porque ela pensa na Eucaristia.

Outro caso. Uma senhora com quatro filhos foi abandonada pelo marido depois de mais de 20 anos de matrimônio. A senhora me disse que, naquele momento, entendeu que devia amar o marido na cruz, "como Jesus fez comigo". Por que não se fala dessas maravilhas da graça de Deus? Essas duas mulheres não se adaptaram aos tempos? Certamente não se adaptaram aos tempos. Eu lhe asseguro que fico muito mal ao reconhecer o silêncio, durante estas semanas de discussão, sobre a grandeza de esposas e esposos que, abandonados, permanecem fiéis.

Tem razão o professor Grygiel quando escreve que não interessa muito a Jesus o que as pessoas pensam dele. Interessa o que pensam os seus apóstolos. Quantos párocos e bispos poderiam testemunhar episódios de fidelidade heroica. Depois de alguns anos que eu estava aqui em Bolonha, eu quis encontrar os divorciados em segunda união. Eram mais de 300 casais. Estivemos juntos um domingo à tarde inteiro. No fim, mais de um me disse que tinha entendido que a Igreja é verdadeiramente mãe quando impede que se receba a Eucaristia. Não podendo receber a Eucaristia, compreendem como o matrimônio cristão é grande e como é belo o Evangelho do matrimônio.

Cada vez mais frequentemente é levantada a questão da relação entre o confessor e o penitente, também como possível solução para ir ao encontro do sofrimento de quem viu o seu próprio projeto de vida fracassar. Qual é o seu pensamento?

A tradição da Igreja sempre distinguiu – distinguiu, não separou – a sua tarefa magisterial do ministério do confessor. Usando uma imagem, poderíamos dizer que ela sempre distinguiu o púlpito do confessionário. Uma distinção que não significa uma duplicidade, mas sim que a Igreja, do púlpito, quando fala do matrimônio, testemunha uma verdade que não é, acima de tudo, uma norma, um ideal ao qual se deve tender.

Nesse momento, entra o confessor com amorosidade, que diz ao penitente: "O que você ouviu do púlpito é a sua verdade, que tem a ver com a sua liberdade, ferida e frágil". O confessor conduz o penitente no caminho rumo à plenitude do seu próprio bem. Não é que a relação entre o púlpito e o confessionário seja a relação entre o universal e o particular. Isso é o que pensam os casuístas, especialmente no século XVII. Diante do drama do homem, a tarefa do confessor não é recorrer à lógica que sabe como passar do universal ao singular. O drama do homem não habita na passagem do universal ao singular. Reside na relação entre a verdade da sua pessoa e a sua liberdade.

Esse é o coração do drama humano, porque, com a minha liberdade, eu posso negar o que recém-afirmei com a minha razão. Eu vejo o bem e o aprovo, e, depois, faço o mal. O drama é esse. O confessor coloca-se dentro desse drama, não ao mecanismo universal-particular. Se o fizesse, inevitavelmente cairia na hipocrisia e seria levado a dizer: "Tudo bem, essa é a lei universal, mas, como você se encontra nessas circunstâncias, você não é obrigado". Inevitavelmente, se elaboraria um caso em que, recorrendo a ele, a lei se torna discutível. Hipocritamente, portanto, o confessor já teria promulgou outra lei ao lado daquela pregada do púlpito. Isso é hipocrisia! Ai do confessor se nunca lembrar à pessoa da qual se encontra na frente que estamos a caminho. Em nome do Evangelho da misericórdia, se correria o risco de esvaziar o Evangelho da misericórdia.

Sobre esse ponto, Pascal estava certo nas suas Provinciais, em outros aspectos profundamente injustas. No fim, o homem poderia se convencer de que não está doente e, portanto, não tem necessidade de Jesus Cristo. Um dos meus mestre, o Servo de Deus Padre Cappello, grande professor de direito canônico, dizia que, quando se entra no confessionário, não é preciso seguir a doutrina dos teólogos, mas sim o exemplo dos santos.

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

''Uma coisa é perdoar, outra é desfigurar a verdade.'' Entrevista com Carlo Caffarra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU