A pobreza e a desigualdade urbana são vendidas como algo “peculiar” e “extravagante”. Entrevista especial com Camila D’Ottaviano

“Sem a presença do Estado, com políticas públicas claras e orçamento compatível, não é possível enfrentar os problemas habitacionais”, afirma a arquiteta e urbanista

Foto: Tomaz Silva | Agência Brasil

25 Fevereiro 2022

 

O crescimento dos despejos e a exposição das condições habitacionais precárias de uma parcela da população durante a pandemia de Covid-19 indicam que o Brasil precisa "voltar a ter uma Política Habitacional. Programas isolados ou linhas de financiamento especiais (como a recentemente lançada pelo governo federal para policiais militares) não são política pública", sublinha a pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Camila D'Ottaviano.

 

Apesar de a pandemia ter evidenciado a situação habitacional em que muitos brasileiros vivem e o déficit em relação à moradia, Camila pontua que "não temos 'pesquisas recentes'" sobre a real situação habitacional no país. "Nosso último Censo Demográfico foi realizado em 2010. Ou seja, nosso último dado público sobre as condições de moradia da população brasileira já tem 12 anos".

 

Embora "programas de urbanização de favela, como o Urbanização de Assentamentos Precários - PAC, melhoraram as condições de moradia nesses locais, levando redes de água e esgoto a vários deles", reitera, "viver numa favela segue sendo uma condição de moradia precária, com adensamento excessivo, falta de infraestrutura, falta de acessibilidade, sem segurança da posse. Nesse sentido, viver numa favela representa a falta de direito à cidade, uma vez que usufruir desse direito significa usufruir de todas as benfeitorias e serviços urbanos, de forma plena e democrática".

 

Segundo ela, enquanto parte das cidades é vendida como um “cardápio para o consumo”, “áreas precárias ou periféricas aparecem apenas quando são vendidas como algo ‘peculiar’ e ‘extravagante’”. E acrescenta: "Para que a população de baixa renda tenha acesso à moradia adequada, são necessárias políticas públicas de acesso à terra urbanizada, fora de áreas de risco (o ocorrido em Petrópolis é um exemplo claro de falta de acesso à terra urbanizada adequada pela população de baixa renda), e de provisão de moradia".

 

Camila D'Ottaviano. (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Camila D'Ottaviano é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP, mestre em Estruturas Ambientais Urbanas e doutora em Habitat/Arquitetura e Urbanismo pela mesma universidade. Atualmente, é docente do Grupo de Metodologia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde preside a Comissão de Cultura e Extensão. É pesquisadora do Observatório das Metrópoles, onde coordena a pesquisa Direito à Cidade e Habitação. Entre suas produções, organizou os seguintes livros: Habitação, Autogestão e Cidade (Rio de Janeiro: Letra Capital Editora, 2021), Self-build Experience. Institutionalisation, Place-Making and City Building (Bristol: Policy Press, 2021) e Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária (São Paulo: FAUUSP, 2019).

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Por que a carência habitacional é um dos maiores problemas sociais do Brasil?

 

Camila D'Ottaviano - A carência habitacional é resultado da nossa extrema desigualdade social. Como diz a professora Erminia Maricato, vivemos uma "urbanização de baixo salários". Sem uma renda adequada, grande parte das famílias brasileiras não tem acesso a uma moradia com condições mínimas - tamanho, ventilação e iluminação adequadas, infraestrutura urbana, transporte etc.

 

 

IHU - Pesquisas recentes indicam que o número de favelas dobrou em dez anos no país. Como a senhora interpreta esse dado e o que a ampliação das favelas significa em termos habitacionais e de direito à cidade?

 

Camila D'Ottaviano - Em primeiro lugar é importante destacar que não temos "pesquisas recentes". Nosso último Censo Demográfico foi realizado em 2010. Ou seja, nosso último dado público sobre as condições de moradia da população brasileira já tem 12 anos.

Outra questão importante é que o Censo de 2010 teve um avanço importante na coleta de dados sobre os chamados aglomerados subnormais, proxy de favelas. O Censo 2010 realizou, pela primeira vez, um levantamento detalhado das condições de moradia e do entorno imediato dos aglomerados subnormais a partir de uma pesquisa morfológica específica, com a identificação georreferenciada e visita de campo preparatória nos aglomerados. O aumento significativo de moradias (95%) e da população (75%) em aglomerados subnormais entre 2000 e 2010 é também, em parte, devido à subenumeração do Censo de 2000 e à melhora na qualidade da informação do Censo de 2010.

 

Programas de urbanização de favela

 

Apesar desse enorme aumento no dado oficial, programas de urbanização de favela, como o Urbanização de Assentamentos Precários - PAC, melhoraram as condições de moradia nesses locais, levando redes de água e esgoto a vários deles. Porém, viver numa favela segue sendo uma condição de moradia precária, com adensamento excessivo, falta de infraestrutura, falta de acessibilidade, sem segurança da posse. Nesse sentido, viver numa favela representa a falta de direito à cidade, uma vez que usufruir desse direito significa usufruir de todas as benfeitorias e serviços urbanos, de forma plena e democrática.

 

IHU - É possível perceber alguma mudança nas cidades brasileiras em relação à habitação e novos projetos habitacionais em decorrência da pandemia de Covid-19?

 

Camila D'Ottaviano - De maneira geral, a pandemia de Covid-19 não gerou nenhuma mudança na forma como nossas cidades são produzidas e apropriadas. O que pudemos ver durante a pandemia foram articulações dos movimentos sociais organizados para atendimento e proteção das famílias em situação de maior vulnerabilidade, como as moradoras em favelas e ocupações.

Uma articulação que merece destaque é a Campanha Nacional Despejo Zero, que conseguiu a aprovação de lei que impedia os despejos durante a pandemia.

 

 

 

 

IHU - Inúmeras famílias foram despejadas durante a pandemia e outras estão ameaçadas de despejo. Como enfrentar essa realidade, especialmente em um contexto em que a pobreza aumenta e a renda dessa população é insuficiente para comprar moradia ou até mesmo pagar o aluguel? Como a moradia social pode ser uma alternativa?

 

Camila D'Ottaviano - O mero respeito à legislação existente, em especial à definição de Função Social da Propriedade (Constituição Federal, Inciso XXIII do Artigo 5º), já garantiria o acesso à moradia a uma grande parcela da população.

O acesso à moradia para a população de baixa renda depende, necessariamente, de políticas públicas. Não existe solução possível que possa partir do mercado ou de ações como parcerias público-privadas.

Citando novamente Erminia Maricato: "a terra é o nó". Para que a população de baixa renda tenha acesso à moradia adequada, são necessárias políticas públicas de acesso à terra urbanizada, fora de áreas de risco (o ocorrido em Petrópolis é um exemplo claro de falta de acesso à terra urbanizada adequada pela população de baixa renda), e de provisão de moradia.

O extinto Programa Minha Casa Minha Vida foi o primeiro a oferecer subsídio a fundo perdido para a população de baixa renda (com renda de até no máximo R$ 1.800,00). Pelo programa, famílias de baixa renda poderiam receber uma moradia pagando no máximo 10% de sua renda. O restante seria subsidiado pelo Estado, com recursos não-onerosos. O programa teve problemas em relação à localização dos empreendimentos em áreas periféricas e em relação à qualidade construtiva das unidades, porém do ponto de vista de oferta de moradia subsidiada para a população de baixa renda, foi paradigmático.

 

IHU – Suas pesquisas tratam sobre a “autogestão” da habitação. Qual é o significado de "autogestão" em relação à habitação e organização das cidades? Quais são os limites e as potencialidades da "autogestão"?

 

Camila D'Ottaviano - Para explicar o que é autogestão, uso a definição do site do projeto de lei "Lei da Autogestão":

Autogestão é:

 

 

Desde os anos 1970, a autogestão é uma pauta dos movimentos de moradia organizados atuantes no Brasil como um todo, mas especialmente em São Paulo, onde as obras para construção de moradias ou urbanização de uma área são organizadas e geridas por movimentos populares, associações e cooperativas, fazendo uso de recursos públicos e, eventualmente, coletivos.

 

Limites e potencialidades

 

O principal limite da autogestão é a ausência de recursos, pois os movimentos organizados dependem de recursos e políticas públicas específicas, como foi o caso do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades (2009-2018).

Já as potencialidades são várias: melhoria das capacidades econômica, social e política dos setores populares; empoderamento das comunidades envolvidas, qualificando sua interlocução e preparando-as para os enfrentamentos com o poder público; descomodificação da produção habitacional, e maior qualidade das moradias produzidas, para citar algumas.

 

 

IHU - Por que as cidades contemporâneas têm sido transformadas em "parques temáticos"? Quais são as características e os elementos centrais que caracterizam essas cidades?

 

Camila D'Ottaviano – Por causa da tentativa de transformar as cidades em produtos passíveis de venda. A ideia é transformar a cidade em algo interessante para consumo, no caso das pessoas, ou rentável, no caso dos investidores.

Possuir edifícios paradigmáticos, como museus e centros culturais (o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, é um bom exemplo), grandes projetos urbanos (a reforma do Cais do Porto em Porto Alegre) ou grandes infraestruturas, como pontes estaiadas, são elementos desse "cardápio" da cidade como parque temático.

 

IHU - De outro lado, o que o marketing urbano esconde ou não revela sobre as cidades contemporâneas?

 

Camila D'Ottaviano - A pobreza e a desigualdade. Áreas precárias ou periféricas aparecem apenas quando são vendidas como algo "peculiar" e "extravagante", como é o caso das visitas guiadas na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, onde além de tudo é possível ter uma linda vista da cidade.

 

IHU - Um dos temas de sua pesquisa sobre o direito à cidade e habitação trata de identificar convergências e divergências nas políticas habitacionais recentes na América Latina, em contextos neoliberais e neodesenvolvimentistas. O que tem evidenciado nesse sentido nas políticas habitacionais desenvolvidas no Brasil e nos países vizinhos?

 

Camila D'Ottaviano - A questão central é que sem a presença do Estado, com políticas públicas claras e orçamento compatível, não é possível enfrentar os problemas habitacionais na região. Problemas esses que não se limitam à construção de novas moradias, mas incluem acesso à terra, implementação de infraestrutura urbana, transporte, educação etc.

 

IHU - Uma das propostas de pesquisa do Observatório das Metrópoles é repensar a política habitacional. O que tem sido desenvolvido nesse sentido? Em que aspectos fundamentais a política habitacional precisa ser repensada, considerando a realidade das famílias e o déficit habitacional?

 

Camila D'Ottaviano - Os pesquisadores do Observatório das Metrópoles, desde a sua criação, há pouco mais de duas décadas, produzem análises sistemáticas das políticas e programas habitacionais vigentes, que incluem análises de conjuntura. Com isso, temos uma produção científica bastante abrangente da política habitacional brasileira nas últimas décadas, além de análises específicas sobre a realidade das principais metrópoles brasileiras. Além disso, procuramos participar de equipes consultivas e na elaboração de propostas, que podem ser institucionais, mas também vinculadas a programas de governo ou a movimentos sociais organizados.

Quanto aos "aspectos fundamentais", em primeiro lugar é preciso reafirmar que precisamos voltar a ter uma Política Habitacional no Brasil. Programas isolados ou linhas de financiamento especiais (como a recentemente lançada pelo governo federal para policiais militares) não são política pública. Uma política habitacional deve necessariamente incluir uma política fundiária.

 

IHU - Que contribuições práticas arquitetos e urbanistas podem dar para ajudar a enfrentar os problemas ligados à moradia no Brasil hoje, especialmente no atual contexto, de aumento de despejos, de novas ocupações e da pobreza?

 

Camila D'Ottaviano - As contribuições já vêm sendo dadas, em especial pelas Assessorias Técnicas vinculadas aos movimentos e cooperativas de moradia (os projetos construídos via Programa Minha Casa Minha Vida Entidades são bons exemplos).

A aprovação, em 2008, da Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (Lei Federal nº 11.888/2008) representou uma possibilidade importante. Porém, para que ela tenha impacto real, precisa fazer parte de uma política pública mais abrangente, em que os custos dessa assistência técnica sejam bancados pelo Estado e não pelas famílias ou movimentos organizados.

 

 

IHU - As desigualdades sociais foram acentuadas durante a pandemia de Covid-19. Em relação à habitação, as desigualdades aumentaram? O que se pode esperar nesse sentido para este ano?

 

Camila D'Ottaviano - A nossa enorme desigualdade social ficou mais visível com a pandemia. Ela sempre foi gigantesca. Com a pandemia, habitação precária, desigualdades de acesso à saúde, transporte e emprego foram escancaradas.

As perspectivas para 2022 são péssimas. A expectativa é que despejos que estavam paralisados voltem a acontecer. A ausência de políticas habitacionais e o encerramento do Minha Casa Minha Vida aumentam a perspectiva negativa.

 

 

IHU - Como o tema da habitação e do direito à cidade poderia ser abordado nas eleições deste ano? Que questões são centrais no enfrentamento desses problemas em um país como o Brasil, especialmente na conjuntura atual?

 

Camila D'Ottaviano - Em primeiro lugar, a habitação deve ter um lugar central nas propostas de governo. A pandemia deixou claro o que os estudiosos apontam há décadas: onde e como as pessoas moram tem impacto central em sua qualidade de vida e no acesso a oportunidades variadas, como emprego, educação e cidade. E também tem impacto direto na qualidade das cidades onde vivemos.

Apenas a título de exemplo: nas eleições de 2018, a habitação sequer apareceu no plano de governo do candidato eleito.

As principais questões devem ser: acesso à terra urbanizada, políticas de provisão e financiamento (com subsídio), políticas que incorporem formas alternativas de produção (autogestão) e propriedade (coletiva), uso de patrimônio público para fins de moradia (conforme a Lei Federal n° 11.481/2007) e a efetivação da função social da propriedade.

Transformar a habitação em protagonista no debate eleitoral deste ano possibilita o debate sobre a cidade em que queremos viver, de que forma e com que possibilidades. Discutir habitação é discutir saneamento básico, saúde, educação, transporte e inclusão social.

 

IHU - Quais seriam os cinco grandes projetos viáveis para o Brasil enfrentar o déficit habitacional?

 

Camila D'Ottaviano - Política pública, política pública, política pública, política pública e política pública!

 

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