Saúde coletiva e subfinanciamento do SUS: pautas urgentes para 2022. Entrevista especial com Rosana Onocko Campos

Mesmo sem dimensão clara dos efeitos de sequelas da COVID-19, médica observa que “aumentos de câncer com diagnóstico tardio, crescentes taxas de depressão e suicídio, complicações advindas da hipertensão e diabetes mal controladas” já preocupam especialistas

Foto: Bruno Cecim | Agência Pará

Por: João Vitor Santos | 10 Dezembro 2021

 

Como se não fosse suficiente toda a dor que a pandemia trouxe – e segue trazendo – ao Brasil, a Covid-19 tem se mostrado capaz de deixar sequelas duríssimas aos sobreviventes e mesmo àqueles que tiveram casos leves da doença. A necessária assistência a essas pessoas mostra mais uma vez a necessidade de fortalecimento do Sistema Único de Saúde – SUS. “Ainda não temos certeza de qual é a proporção de pessoas afetadas com a Covid longa, nem fatores marcadores de diversidade de prognósticos. Podemos, sim, supor que isso trará alguma sobrecarga ao nosso sistema de saúde já exaurido”, pontua a médica Rosana Onocko Campos.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ela revela que essa questão da chamada “Covid longa” não é a única preocupação. Outras doenças que, por diversos fatores, foram tratadas como coadjuvantes na pandemia estão recrudescendo e trazendo grande impacto sobre a saúde coletiva. “Aumentos de câncer com diagnóstico tardio, crescentes taxas de depressão e suicídio em todas as faixas etárias, complicações advindas da hipertensão e diabetes mal controladas fazem parte da preocupante situação que já estamos vivendo. Minimizar esses danos é possível, mas exige um esforço direcionado e recursos à altura das circunstâncias”, detalha. Para Rosana, a resposta a essa pressão “dependerá de como conseguiremos fazer funcionar o SUS para superar os gargalos e quais e quantas serão as sequelas no médio e longo prazo”.

 

E não há outro caminho. “Teremos de combater o subfinanciamento”, dispara Rosana. “Nunca como na pandemia o SUS pôde ser conhecido por aqueles que não o utilizavam, nem valorizado pelos seus usuários habituais. Mas temos – nós sanitaristas – obrigação também de mostrar onde e para que esses recursos a mais serão investidos”, observa.

 

Por isso, ela também observa que esse período eleitoral que já temos vivido é propício para discutir a pauta da saúde pública coletiva com ainda mais intensidade. E, além disso, encarar todos os dramas que já existiam e que a pandemia escarnou. “Precisamos fugir das falsas controvérsias fáceis. Tipo: emprego ou sustentabilidade. Precisamos criar uma nova economia na qual os empregos sejam mais bem remunerados e aconteçam em setores de economia limpa. Temos essa dívida com as gerações futuras, tomara que saibamos honrá-la”, resume.

 

Rosana Teresa Onocko Campos (Foto: Arquivo pessoal)

Rosana Teresa Onocko Campos é presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco. Possui graduação em Ciências Médicas pela Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, residência médica em Medicina Interna também pela mesma instituição, Especialização em gestão hospitalar pelo Technnion Institute, de Israel (1993). Também é mestra e doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e livre-docente também na Unicamp. Psicanalista, atualmente é Visiting Professor no Departamento de Psiquiatria da Universidade de Yale, nos Estados Unidos.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – O que a experiência da pandemia ensina ao Brasil?

 

Rosana Onocko Campos – Ainda é cedo para responder isso taxativamente. Mas, por enquanto, ensina que devemos refletir muito sobre nosso sistema de seguridade social e sua estabilidade e, também, sobre nossa fragilidade institucional. [O presidente Jair] Bolsonaro desmontou o Ministério da Saúde sem derrogar (nem publicar) nenhuma lei. As leis trabalhistas foram detonadas em nome da proteção social (de quem? das empresas).

Precisamos fortalecer as instituições públicas com funcionários de carreira e excelente nível técnico de maneira a diminuir o aparelhamento pelos governos de turno. Também precisamos fortalecer o corpo normativo e legal. O Sistema Único de Saúde – SUS funciona praticamente por conta de portarias, isso não é mais aceitável. Precisamos mais e melhores leis nesse campo.

 

 

IHU – O que a ciência sabe sobre a chamada “Covid longa” e quais seus impactos no contexto da realidade brasileira?

 

Rosana Onocko Campos – É difícil também dizer quais serão os impactos a longo prazo. Ainda não temos certeza de qual é a proporção de pessoas afetadas com a Covid longa, nem fatores marcadores de diversidade de prognósticos. Podemos, sim, supor que isso trará alguma sobrecarga ao nosso sistema de saúde já exaurido por falta de recursos e pelo acúmulo de doenças crônicas mal acompanhadas durante a pandemia, o que tem trazido diagnósticos mais tardios e sequelas de vários tipos.

 

IHU – Vivemos novamente um momento de medo e incertezas com o surgimento da variante Ômicron. É possível mensurar os impactos dessa nova variante do coronavírus na realidade brasileira?



Rosana Onocko Campos – Não, não é possível ainda. Talvez nas próximas semanas comecemos a ter uma noção da magnitude e da gravidade desses novos casos trazidos pela nova variante.

 

 

IHU – Levando em conta o atual quadro de vacinação no Brasil e tudo que a ciência descobriu sobre a Covid-19 e as variantes do coronavírus, podemos ainda passar por novas ondas da Covid-19, como a de novembro do ano passado?

 

Rosana Onocko Campos – Responder a isso com sim ou não é ousadia. Não sabemos como se comportarão as novas variantes com relação às vacinas. Mas tudo leva a supor que não voltaremos a estar como no começo da pandemia, quando nem vacinas disponíveis havia. Minha impressão é de que o momento é de cautela, precaução, mas de que as respostas serão mais rápidas frente às novas variantes do que no início da pandemia. As medidas chamadas de “etiqueta respiratória”, contudo, não deveriam ser abandonadas.

 

 

IHU – Profissionais da saúde, estudantes de graduação e pós-graduação, reunidos no 11º Congresso Brasileiro de Epidemiologia da ABRASCO, denunciaram “sérias condições socioeconômicas e de saúde” pelas quais o Brasil tem passado. O quanto dessas condições já estavam presentes no contexto brasileiro? E o que a pandemia revelou de novo no que diz respeito a problemas estruturais da saúde pública no Brasil?


Rosana Onocko Campos – Não se trata de algo novo que a pandemia nos tenha revelado, mas da exacerbação de uma situação de inequidade e desigualdades inaceitáveis. Nada há de novo sob o sol, só que a exacerbação da pobreza, do desemprego, a falta de inclusão digital que prejudicou muito mais as crianças pobres – por exemplo – tornaram-se insuportáveis. Estamos denunciando isso aos quatro ventos porque a denúncia é condição prévia à exigência de políticas reparadoras.

 

 

O Estado brasileiro terá de reparar órfãos, viúvas e planejar medidas propositivas e eficazes para minimizar o gap educacional. Se essas medidas não forem implementadas, o fosso social só se agravará e nosso futuro estará hipotecado.

 

 

IHU – Em que medida o declínio econômico, agudizado desde a pandemia, e suas consequência como a volta da fome, aumento do desemprego e empobrecimento da população devem impactar a saúde dos brasileiros no médio e longo prazo?

 

Rosana Onocko Campos – A carga de doenças crônicas mal acompanhadas aumentou na pandemia, dependerá de como conseguiremos fazer funcionar o SUS para superar os gargalos e quais e quantas serão as sequelas no médio e longo prazo. Aumentos de câncer com diagnóstico tardio, crescentes taxas de depressão e suicídio em todas as faixas etárias, complicações advindas da hipertensão e diabetes mal controladas fazem parte da preocupante situação que já estamos vivendo. Minimizar esses danos é possível, mas exige um esforço direcionado e recursos à altura das circunstâncias.

 

 

IHU – A atual gestão federal, em pleno quadro de pandemia, construiu um cenário de ataques à ciência e à educação. Como mensurar as perdas em ciência, tecnologia e educação nesse período? Quais os caminhos para reverter esse cenário?

 

Rosana Onocko Campos – Já desde o governo [Michel] Temer os cortes em Ciência, Tecnologia e Educação se fizeram sentir. Quando você pensa que o orçamento de Ciência e Tecnologia é de aproximadamente três bilhões e que o orçamento secreto é praticamente de 30 bi, dá para ter uma dimensão do descalabro ao qual este governo nos levou.

O desmonte do sistema de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, a falta de indicação da comissão de planejamento, os ataques ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e as demais agências de Ciência e Tecnologia caracterizam todos juntos um cenário de guerra ao pensamento. Teremos de recriar um sistema de Ciência e Tecnologia que volte a colocar o Brasil no páreo mundial e que – ao mesmo tempo – contribua para o combate às desigualdades sociais e regionais.

É preciso, também, avançar nas alianças globais, mas também nas agendas Sul-Sul, buscando soluções conjuntas e cooperativas para os problemas de nossos povos. Assim também poderá ser enfrentada a dependência tecnológica (que tão evidente ficou na questão das vacinas).

 

 

IHU – Ainda antes da Covid-19, o Brasil já tinha que lidar com epidemias de AIDS, MERS, SARS, Zika, Chikungunya. Como será o enfrentamento dessas doenças, num cenário em que parece que a Covid-19 ainda vai mobilizar as autoridades sanitárias e de saúde por muito tempo?



Rosana Onocko Campos – Há a necessidade urgente de se planejar e sustentar o combate a essas outras doenças e suas sequelas. A relação entre essas doenças transmitidas por vetores e a questão ambiental merece ser destacada. O estímulo a um sistema agroalimentar mais sustentável será relevante no futuro próximo, inclusive para prevenir novas pandemias. As estratégias para o novo desenvolvimento de Ciência e Tecnologia também deveriam levar em consideração o enfrentamento dessas doenças prevalentes no território nacional.

 

 

E, por último, essas doenças também nos apontam que a questão urbana – irresolúvel no Brasil há mais de cinco décadas – precisa ser enfrentada e é uma questão de Saúde Coletiva.

 

IHU – A carta dos epidemiologistas que sai do 11º Congresso Brasileiro de Epidemiologia da ABRASCO também associa a degradação ambiental com aumento de riscos à saúde pública. Como conceber políticas de saúde que compreendam a preservação e reconstituição de ambientes naturais?

 

Rosana Onocko Campos – Acho que respondi em parte anteriormente, mas não é fácil a estratégia de pressão sobre empresas e governos. Entramos no campo da política com P maiúsculo: a que deve discutir os problemas humanos na Polis. Teremos um ano eleitoral. Precisamos fugir das falsas controvérsias fáceis. Tipo: emprego ou sustentabilidade. Precisamos criar uma nova economia na qual os empregos sejam mais bem remunerados e aconteçam em setores de economia limpa. Temos essa dívida com as gerações futuras, tomara saibamos honrá-la.

 

 

IHU – A carta ainda revela que “mesmo depois de atingirmos o controle da pandemia, o SUS, cronicamente subfinanciado, continuará sobrecarregado, lidando com as demandas de saúde represadas e com as sequelas da COVID-19”. Como encarar esse desafio do subfinanciamento do SUS e, ao mesmo tempo, garantir atendimento digno e especializados para quem sofre as sequelas da COVID?

 

Rosana Onocko Campos – Teremos de combater o subfinanciamento. De novo é uma questão da grande política, não da politicagem. Nunca como na pandemia o SUS pôde ser conhecido por aqueles que não o utilizavam, nem valorizado pelos seus usuários habituais. Mas temos – nós sanitaristas – obrigação também de mostrar onde e para que esses recursos a mais serão investidos. Nossa associação publicou este ano um documento chamado “Fortalecer o SUS, em Defesa da Democracia e da Vida”, no qual apontamos vários caminhos viáveis para fortalecimento do sistema de saúde.

 

 

IHU – A saúde pública e a gestão da pandemia estarão entre as pautas centrais das candidaturas à presidência no próximo ano. O que não pode faltar em termos de políticas de saúde para o próximo governo? E como a senhora avalia o que se tem ouvido dos pré-candidatos acerca do tema?

 

Rosana Onocko Campos – Ainda não temos ouvido propostas em relação à saúde, nem sabemos exatamente quem serão os candidatos. É importante que as pessoas se atentem para o passado desses políticos e parlamentares, pesquisar e se interessar – por exemplo – por como quem era parlamentar votou sobre determinadas pautas em relação à saúde, educação, ciência e tecnologia.

Desejo muito que tenhamos uma campanha à altura dos problemas do país, com debates e discussões de alto nível, mas, lamentavelmente, temo que viveremos uma campanha recheada de fake news, agressões e poucas ideias e propostas de soluções. Caberá a muitas de nós, entidades da sociedade civil, levantar algumas reivindicações e propor soluções passíveis de serem implementadas. Nossa associação está empenhada na elaboração de um dossiê para disponibilizar aos interessados as melhores análises e propostas para o pós-covid no ano eleitoral.

 

 

 

IHU – Como o Programa Nacional de Imunizações – PNI sai dessa experiência da pandemia?

 

Rosana Onocko Campos – O PNI é mais um morto da Covid. Ele foi implodido, estraçalhado pelo negacionismo, a incompetência e – segundo mostrou a CPI – até pela desonestidade deste governo. A boa nova é que ele poderá ressuscitar. E deveremos também trabalhar para que isso aconteça.

A tradição do SUS nos fortalece para isso, a rigor o PNI é prévio à existência do SUS. As políticas de vacinação se beneficiam de certa centralização, seja pela compra dos insumos, seja pela cobertura ou pela uniformização de estratégias, então será vital que ele seja fortalecido.

 

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