Caetano Veloso: uma política musical de mãos limpas, engajada com a arte e com sua entrega estética. Entrevista especial com Pedro Bustamante Teixeira

Pedro Teixeira analisa a trajetória musical de Caetano Veloso em sua perspectiva vanguardista, longe dos lugares comuns, mas radicalmente vinculada à riqueza cultural do Brasil

Imagem: Divulgação do documentário Narciso em férias (2020)

Por: Ricardo Machado | 14 Agosto 2021

 

A obra de Caetano Veloso sempre foi um manifesto em favor da diversidade do pensamento, sempre tentando não resvalar em reducionismos grosseiros e militantes, mas sem jamais perder seu compromisso político com o Brasil. “[Caetano] Pensava no ridículo muro que separava a MPB, ‘politizada’, da Jovem Guarda, ‘alienada’, e em como destruí-lo, para que os eflúvios de um Roberto Carlos, também ele um herdeiro do canto de João Gilberto, pudessem confluir em um mesmo grande e vigoroso rio da música popular brasileira”, descreve o professor e pesquisador Pedro Teixeira, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “A questão de sujar as mãos para fazer política como um político jamais passou pela cabeça de Caetano. Para ele, o engajamento do artista tem que se dar em relação a sua arte, a sua entrega. A valorização do artista engajado acabava por fazer que o engajamento fosse mais importante que a arte em si”, complementa.

 

Esse compromisso foi tão sério e comprometido que não à toa Caetano e Gil acabaram presos e exilados. A contundente crítica ao conservadorismo da sociedade brasileira que aparece no disco Tropicália ou Panis et Circenses, tocava diretamente a ferida da ditadura, mas também da esquerda tradicional. “E é justamente a crítica que se faz às pessoas da sala de jantar, isto é, das pessoas da tradicional família brasileira que leva dois dos grandes líderes do Tropicalismo às grades. O Tropicalismo choca tanto a esquerda quanto a direita. Por conta disso, Caetano se considerava à esquerda da esquerda, pois observava tanto na esquerda quanto na direita um entendimento muito limitado do que seria ou do que poderia ser o Brasil e do que se poderia fazer aqui”, sustenta.

 

Pedro Bustamante Teixeira (Foto: Reprodução Facebook)

 

Pedro Bustamante Teixeira é graduado em Língua Portuguesa e Língua Italiana e suas respectivas literaturas pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, instituição onde é professor pela qual também obteve os títulos de especialista em Estudos Literários, mestre e doutor em Letras: Estudos Literários. Entre suas publicações destacam-se Do samba à Bossa Nova: inventando um país (Curitiba: Appris, 2015), tema de sua pesquisa de mestrado, depois o livro Transcaetano: Trilogia Cê mais Recanto (São Paulo: Fonte Editorial, 2017) e, ainda, Sonhe com os sonhos ou o ano em que tive 18 anos (Rio de Janeiro: Animula Vagula Blandula, 2000).

 

Curso Transcaetanos. Tempo, tempo, tempo, tempo

De 12 de agosto a 09 de setembro de 2021, ocorre o Curso Livre: TransCaetanos - Tempo, tempo, tempo, tempo, a ser ministrado pelo Prof. Dr. Pedro Bustamante Teixeira – UFJF. O objetivo do curso é propor uma retrospectiva na carreira de Caetano Veloso como modo de apreensão do fim de um caminho e do início de uma nova perspectiva para a música brasileira no século XXI. 

 

Curso Livre: TransCaetanos - Tempo, tempo, tempo, tempo

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Considerando a longa trajetória cultural e política de Caetano Veloso, qual sua relevância social no contexto brasileiro?

Pedro Bustamante Teixeira – Ainda antes da fama nacional, que viria, de fato, com a apresentação de “Alegria, Alegria”, no Festival da Record de 1967, Caetano Veloso já despontava como um arguto teórico da bossa nova, ao responder às críticas insistentes de Tinhorão ao movimento. Corajoso, o jovem desconhecido Caetano enfrentaria o grande historiador da música popular brasileira dando pistas importantes do que estaria por vir quando o seu pensamento ganhasse uma voz e um corpo. Entre 1966 e 1968, Caetano ficaria cada vez mais conhecido devido, principalmente, a suas polêmicas participações nos festivais e nos programas de música da televisão brasileira. No dia 13 de dezembro de 1968, essa história acabaria abruptamente com o AI-5 e a prisão de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Do artigo em que defende a bossa nova dos ataques “histéricos” de Tinhorão, à alucinante sequência: chegada ao Rio, como um desconhecido, à fama na televisão, o Tropicalismo e à prisão política, não se passaram mais de três anos. No entanto, nesse brevíssimo espaço de tempo, Caetano Veloso e Gilberto Gil intervieram decisivamente no modo de ser homem, cantor, compositor, artista, no Brasil. No clássico livro Balanço da Bossa, lançado por Augusto de Campos em 1968, João Gilberto dizia que Caetano era para ele um pensamento. E é esse pensamento que começava a se revelar no pequeno artigo em que Caetano responde a Tinhorão.

Desde então, esse pensamento, em uma curva ascendente que se encontraria com outros tantos de mesmo teor culminaria na Tropicália, suplantaria o velho paradigma do modernismo musical brasileiro e tornar-se-ia, ele mesmo, o novo paradigma que por muitas décadas, mutatis mutandis, nortearia o debate cultural brasileiro. Hoje, esse pensamento ainda tem muita força. Silviano Santiago disse em uma entrevista que enquanto Gilberto Gil e Caetano Veloso estiverem vivos e ativos não haveria como encerrar o tropicalismo, já que era algo que continuava existindo com eles. Na sequência do livro 1968: O ano que não terminou (São Paulo: Editora Objetiva, 2013), Zuenir Ventura escreveria, 50 anos depois, o livro 1968: o que fizemos de nós (São Paulo: Editora Objetiva, 2013); nesse, Caetano não poderia ser menos enfático: “O tropicalismo está vivo: o sonho não acabou”.

Além disso, o Tropicalismo veio a socorrer teoricamente muitos dos mais interessantes projetos musicais nos anos 90 que destruíam o muro que separava o Rock dos anos 1980 da MPB. E ainda reverberou nos principais cenários musicais da contemporaneidade com a redescoberta dos Mutantes , de Tom Zé, do Tropicalismo que, mesmo passados mais de 30 anos da sua deflagração, ainda teriam o que mostrar à cena dos anos 1990 e ao século XXI.

 

 

 

IHU On-Line – Como compreender a obra de Caetano, em seus diferentes momentos, à luz da história política do Brasil, especialmente na segunda metade do século XX?

Pedro Bustamante Teixeira – O tempo reverbera em Caetano Veloso. É possível entender muita coisa das décadas de 1960, 1970, 1980, 1990, 2000, 2010, ouvindo os discos de Caetano Veloso. Pode-se, de fato, viajar no tempo, em cada audição mais concentrada. O tempo está sempre ali, e Caetano, qual um Ulisses Dantesco, não se contenta com o glorioso retorno a Ítaca, que se dá com o sucesso clamoroso de Fina Estampa e de Prenda Minha; quando Caetano, que vendia em média 150 mil cópias, ultrapassa a marca de um milhão de discos vendidos, o errante navegante ainda busca o mar aberto sem fim.

No entanto, desde o início da carreira, antevira o perigo de querer fazer da música popular um instrumento para um determinado propósito político. E o tempo logo traria as provas que comprovariam a razão de seus medos. Aparelhada pela cartilha do Centro Popular de Cultura - CPC, a música popular empobrecia-se esteticamente, ganhava dogmas, tabus e via pouco a pouco a sua popularidade se esvair. Novamente o modernismo musical brasileiro, muito mais Mário Andradiano do que Oswaldiano, se propõe a ensinar ao povo o que é ser povo. No entanto, pelas frestas, ainda escapava-se desse estereótipo. O Tropicalismo de Caetano vem para, enfim, confrontar esse modernismo musical brasileiro, tão contraditório se comparado ao que se apresentara na literatura, no teatro e nas artes plásticas a partir da Semana de 22. É essa a política que interessou Caetano enquanto artista. A política de lutar por uma arte autônoma, livre, desamarrada.

Quando disse que era preciso “retomar a linha evolutiva da música brasileira”, Caetano pensava na Bossa Nova, em Jorge Ben e na fossa que se tornara o programa televisivo “o fino da bossa”, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Pensava no ridículo muro que separava a MPB, “politizada”, da Jovem Guarda, “alienada”, e em como destruí-lo, para que os eflúvios de um Roberto Carlos, também ele um herdeiro do canto de João Gilberto, pudessem confluir em um mesmo grande e vigoroso rio da música popular brasileira. A questão de sujar as mãos para fazer política como um político jamais passou pela cabeça de Caetano. Para ele, o engajamento do artista tem que se dar em relação a sua arte, a sua entrega. A valorização do artista engajado acabava por fazer que o engajamento fosse mais importante que a arte em si. Ainda secundário em um cenário em que brilhavam figuras como Elis Regina, Chico Buarque e Geraldo Vandré , Caetano tinha o tempo para observar a conjuntura e para organizar, com Gilberto Gil, o movimento que deflagraria uma dissidência profunda dentro da MPB.

Por outra perspectiva, há de se lembrar que a ditadura que se estabeleceu no Brasil a partir do dia 31 de março de 1964, devido ao grande apoio popular que teve, também é chamada de Ditadura Civil-Militar. Se a canção de protesto tinha a pretensão de derrotar os militares, o Tropicalismo, com seu pessimismo alegre, vinha para questionar essa sociedade que sustentava um regime militar, questionar as tais pessoas da sala de jantar, que poderiam, vistas dessa nova perspectiva, reunir-se, independentemente do posicionamento político, na caretice habitual. A Tropicália vem para questionar toda uma tradição, uma série de tabus, crendices e mitos do Brasil. O confrontamento do elemento civil dessa ditadura é que levará Caetano Veloso e Gilberto Gil à prisão. Será a partir de um novo jeito de fazer canções e de ser no mundo que Caetano Veloso continuará confrontando a base civil da ditadura até que ela pereça e deixe de sustentar o regime militar que, sem ela, não parará mais de pé. Existir plenamente, ser um artista libertário, entregar-se ao fazer artístico, à vida; dar-se todo, foi o modo que o artista Caetano encontrou para intervir, inclusive na política.

 

capa da revista IHU On-Line

 

IHU On-Line – De que forma o disco Tropicália, que é produzido por vários artistas, e meses mais tarde a promulgação do Ato Institucional - AI-5 são dois eventos antagônicos e marcantes do final da década de 1960 no Brasil? Como estão inter-relacionados?

Pedro Bustamante Teixeira – Como dizia, aquele pensamento que começava a se revelar no artigo escrito para defender a bossa nova do crítico marxista Tinhorão, se faria voz e corpo e, em um espiral ascendente, culminaria na tropicália e, mais especificamente, neste álbum conjunto Tropicália ou Panis et Circensis em que se encontram os mais importantes personagens desse movimento musical. E é justamente a crítica que se faz às pessoas da sala de jantar, isto é, das pessoas da tradicional família brasileira que leva dois dos grandes líderes do Tropicalismo às grades. O Tropicalismo choca tanto a esquerda quanto a direita. Por conta disso, Caetano se considerava à esquerda da esquerda, pois observava tanto na esquerda quanto na direita um entendimento muito limitado do que seria ou do que poderia ser o Brasil e do que se poderia fazer aqui. O disco Tropicália, em que a união de forças tão díspares faz a força, tensiona ainda mais esse dissídio entre os artistas e os militares que, autorizados pelo AI-5, tentarão apagar os rastros de Caetano e Gil no Brasil.

 

IHU On-Line – Como a vida no exílio, depois de ter sido preso, juntamente com Gilberto Gil, impactou artisticamente a obra de Caetano Veloso?

Pedro Bustamante Teixeira – A prisão foi o ponto final de uma história que, felizmente, ainda não teve um fim. Foi a pedra no meio do caminho de um poeta que o colocou em uma tenebrosa selva escura da qual demoraria tanto para escapar. O exílio aqui também, como para Dante, é uma experiência de dor: “eu não sou daqui, eu não tenho amor, eu sou da Bahia, de São Salvador”. O primeiro disco londrino é, sem dúvida, o mais melancólico dos discos de Caetano, e, se não fosse pelo socorro da banda de Jards Macalé, Transa não seria menos tristonho. Ainda assim, o exílio acabou por restringir o trabalho de Caetano Veloso à música; até a prisão ele pensava que a sua intervenção na música popular seria pontual e que depois ele seria diretor de cinema ou outra coisa dentro da área artística. Limitado à música, por não ter forças de fazer mais do que já tinha feito e pela condição de desterro em que se encontrava, acabou por se concentrar mais e mais no canto e no seu instrumento. Em Londres, o violão de Caetano começa a ser mais valorizado, e é a partir de então que o artista também passa a tocar nos discos. Esse passo é decisivo para o artista Caetano Veloso que poderá inclusive se apresentar sozinho e contribuir nos arranjos musicais de seus discos e shows.

 

 

 

Na Inglaterra, Caetano e Gil, além de receberem em suas casas tantos artistas brasileiros que confluíam de toda parte, ainda puderam presenciar in persona a nata do rock contemporâneo, tendo assistido a shows de Jimi Hendrix, John Lennon, The Doors e dos Rolling Stones, e de terem participado do lendário Festival da Ilha de Wight em 1970. No show dos Rolling Stones, Caetano conta que presenciara a mais impressionante performance de um astro de rock, a de Mick Jagger , e no citado Festival viu também que a música que fazia com Gil e seus colegas brasileiros também poderia entusiasmar essa turma. De fato, não passa despercebida a apresentação desse grupo de brasileiros. Um artigo publicado no New York Times saudou o show brazuca como aquele que, dado o esgotamento de um estilo, a saber o rock dos grandes festivais, parecia com mais frescor. Pudera, em 1970, o sonho que começara a ser experimentado a partir do verão power flower de 1967 no hemisfério norte, tornava-se um grande pão bolorento, do ideal de paz e amor passava-se à fórmula fácil: “sexo, drogas e rock’n’roll”. Pouco tempo depois, Gilberto Gil leria um artigo para Caetano em que John Lennon fazia o seu conhecido anúncio: “o sonho acabou”. Depois de um breve silêncio, Caetano retrucaria: “acabou para ele”. Mas não é no exílio que esse sonho será buscado. Se como disse Caetano: “ninguém é profeta longe de sua terra”, embora o disco Transa já lhe apresentasse excelentes perspectivas no exterior, a volta ao Brasil se fazia mais necessária para a saúde do artista do que qualquer projeto artístico internacional. Após esse corte que se dá com o retorno de Caetano em 1972, o projeto artístico internacional ainda continuaria, mas, desde então, sempre a partir do Brasil.

 

IHU On-Line – Por que as canções A outra banda da Terra e Estrangeiro são importantes no contexto da trajetória de Caetano?

Pedro Bustamante Teixeira – Acho as duas canções belíssimas, no entanto, acredito que seja difícil analisá-las destacadas dos discos em que estão inseridas. Enquanto a “Outra Banda da Terra” é uma das últimas canções do disco Uns de 1983, Estrangeiro abre o disco homônimo de 1989. Se em 1982, Caetano comemorava a felicidade decorrente de sua feliz experiência de banda com A Outra Banda da Terra, o momento mais alegre de sua vida, quando enfim ultrapassava as dores do exílio e se reencontrava com o Brasil, com o sucesso, com a alegria; em 1989, já desconfiado com os destinos da redemocratização, mais um processo de modernização que ocorria, mas que, por não ser suficientemente acabado, ainda traria consigo tantas carcaças de outros tempos que acabariam por garantir a manutenção dos mesmos atores por trás de uma maquiagem democrática.

A Outra Banda da Terra é a canção de despedida desse grupo que se formou no final da década de 1970 para acompanhar Caetano e que irá gravar com ele Muito - Dentro da Estrela Azulada (1978), Cinema Transcendental (1979), Outras Palavras (1981), Cores e Nomes (1982) e Uns (1983). O título é uma forma de registrar o nome da banda formada por Vinicius Cantuária, Tomás Improta, Perinho Santana e Arnaldo Brandão, que Caetano lembrará como aquela que o acompanhou em seu momento mais feliz com a música. Quando se refere à canção, Caetano costuma se lembrar do “r” retroflexo que dá um tom caipira à música. O que não se ouvia, mas existia em um Brasil profundo, seria registrado enfim pela indústria fonográfica brasileira. Caetano ainda enfatiza a presença na canção da técnica de contrabaixo denominada Slap, introduzida no Brasil por Arnaldo Brandão, ainda antes da formação de A outra Banda da Terra, na gravação de Odara (1977).

 

 

 

Se a canção de Uns é gozo, Estrangeiro é o seu oposto: aflição, angústia, dor. É quando Caetano irá falar das dores de ser brasileiro, de ter que conviver com todas as contradições que nos habitam, com a coisa bela e com o horrível, “com o macho adulto, branco, sempre no comando”, que mesmo após a vitoriosa campanha pelas Diretas Já, ainda se repetiria ad nauseam, assim como os casos de machismo, de racismo e da manutenção da enorme desigualdade social. Se A outra banda da terra encerrava uma fase, Estrangeiro inaugurava uma outra em que o Tropicalismo voltaria ao debate com uma longa revisão de sua história que culminaria em Verdade Tropical (São Paulo: Companhia das Letras, 1997). Se a redemocratização não trazia consigo tudo que prometia, ela pelo menos dava a Caetano a oportunidade de começar a conversar com o seu público sobre o Tropicalismo e sobre o que tinha acontecido com ele e com Gil após o AI-5. Enquanto ele não conseguisse isso, permaneceria um estrangeiro no lugar e, ainda mais, no momento, e o tropicalismo não seria mais que um espectro. No entanto, como esclareceria Derrida no final dos anos 1990: “o espectro é sempre um retornante”.

 

 

 

IHU On-Line – Sua tese de doutorado versa sobre a “Trilogia Cê” de Caetano. Como se caracteriza poética e musicalmente esse trabalho e por quais discos ele é composto?

Pedro Bustamante Teixeira – Entre os anos de 2006 e 2013, Caetano Veloso vive uma outra experiência de banda, dessa vez com a Banda Cê, composta por Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado. Depois de um longo e glorioso período em que conduzido por Jaques Morelenbaum lançou discos e espetáculos primorosos, que passaram pelos principais teatros do Brasil e do mundo, Caetano ainda partiria para mais uma empreitada. Se até então, se apresentava com orquestras, naipes de cordas e metais e grandes bandas, ele agora, o nosso Odisseu Baiano voltaria ao mar aberto com uma pequena embarcação elétrica com apenas três tripulantes. Com a Banda Cê viria enfim um álbum de inéditas, o que não acontecia desde Noites do Norte (2000). Um não, três. O que era para ser um disco, o disco (2006), acabou se tornando uma banda que ainda gravaria Zii e Zie (2009), após uma temporada de ensaios abertos no Rio, e Abraçaço (2012), que culminaria na turnê de despedida em que canções como O Império da Lei e Um Comunista já antecipavam um pouco o clima das jornadas de junho de 2013 .

Esses discos trazem um Caetano renovado pela experiência com os jovens da Banda Cê e pelo contato direto com os jovens em casas de espetáculos mais acessíveis a eles. É quando o monumento Caetano Veloso recobra o movimento e se faz novamente contemporâneo. O que se vê é um Caetano que se quer menor para estar vivo e escapar da máscara mortuária que já lhe aprisionava a um tempo pretérito, a vibrações vencidas. E é por isso que ele diz já na primeira canção do primeiro disco da trilogia: “você não vai me reconhecer, quando eu passar por você”. O novo Caetano provoca estranhamento com muitas das canções dos discos, mas também sabe ser espelho da beleza e, equalizando as diferenças, vai trazendo para sua obra toda uma nova geração que se reconhece no rock setentista de Transa, na Banda Cê e nas canções que a banda inspira Caetano a recordar. Zii e Zie é já a maturação desse processo. Se em Cê, Caetano se aventurava no indie rock dos jovens da Banda Cê, em Zii e Zie, Caetano irá trazê-los, se aproveitando do modo que Pedro Sá criou para acompanhar, com uma guitarra distorcida, o samba, para a sua casa: a música popular brasileira. Mas eles viriam com os seus instrumentos e a sua própria linguagem provocando uma nova síntese que será também chamada de Transambas.

Por fim, se Cê e Zii e Zie podem ser lidos como narrativas, Abraçaço, um disco de celebração, é uma coleção de singles que compõe algo mais próximo de um livro de contos do que um romance.

 

IHU On-Line – Como a amizade com Gil é, também, uma dimensão importante na obra de Caetano e como essa relação produziu uma mútua troca artística entre estes personagens?

Pedro Bustamante Teixeira – Gilberto Gil também é Caetano Veloso. Caetano Veloso também é Gilberto Gil. Essa amizade transcendental é um dos grandes acontecimentos da música popular brasileira. E não é pelo fato de terem sido parceiros em composições importantes. A amizade deles não envolveu uma parceria estável. Ao longo de mais de 50 anos de amizade e parceria, não foram tantas as canções que eles assinaram juntos. A parceria é, sobretudo, afetiva, por muitos anos foi mesmo familiar, e ainda foi musical e intelectual. Enquanto Caetano aprendeu com Gilberto Gil os segredos da bossa nova, Gilberto Gil absorveu em seu trabalho o pensamento inovador de Caetano Veloso e o desenvolveu nas mais variadas frentes. A virada Tropicalista de Gil não aconteceria sem a insistência de Caetano; sem Gil, Caetano não se estabeleceria como um artista da música. São muito diferentes, mas se complementam, pois há, no berço dessa amizade, a devoção por João Gilberto e o sonho de correr mundo, de correr perigo (viver) juntos.

 

 

 

IHU On-Line – Quais são as principais semelhanças e diferenças entre o “jovem” Caetano e o “velho” Caetano do ponto de vista artístico e político?

Pedro Bustamante Teixeira – Caetano está entre os artistas que mantêm a coerência daquilo que faz com aquilo que fez. A necessidade de trazer às claras o tropicalismo, o seu exílio e o retorno ao Brasil, decorrem da importância que o artista dá a essa coerência. O tropicalismo não foi somente uma intervenção pontual na cultura a partir da configuração de um cenário nacionalista na cultura popular brasileira. O movimento é também um projeto dinâmico que requer muita perspicácia e coragem para que se continue fiel a ele. E é esse movimento que deve se renovar a todo momento que impulsiona Caetano a permanecer atento e forte para continuar trazendo consigo esse sonho de Brasil e essa vontade de, a partir dessa utopia, refazer o mundo.

Caetano sempre diz: “quero ser lúcido e alegre”, e complementa: “é muito difícil, mas eu fico tentando”. O desafio é de sustentar a alegria, alegria diante do tempo, tempo, tempo, tempo. Mas é esse desde o início de sua vida artística o seu posicionamento diante da vida, da arte e do Brasil. As questões que foram colocadas nos anos sessenta ainda continuam significando muito para Caetano Veloso, e ele desde então se mantém firme no sonho de refazer o mundo a partir da singularidade do Brasil. Hoje, esse pensamento pode até mesmo parecer ridículo, mas Caetano insiste em seu otimismo programático, que, como diz Thiago Amud: “o Brasil tem que ter jeito”.

 

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