Teresa de Ávila. A poesia das carícias. Entrevista especial com Luciana Barbosa

“Teresa de Jesus era uma grande mulher apaixonada, ardentemente enamorada de Deus e possuidora da força que essa relação lhe dava”, diz a pesquisadora

O Êxtase de Santa Teresa, obra de Gian Lorenzo Bernini. (Foto: Wikipédia)

15 Outubro 2021

 

Mística e poesia possuem uma proximidade inegável. Ambas tratam de um tipo de mistério, buscam o inefável e o Absoluto ou, nas palavras da pesquisadora Luciana Ignachiti Barbosa, expressam “o que está mais recôndito nos sentimentos e pensamentos do homem”, atravessando de mãos dadas os limites da lógica e da razão. Neste sentido, ainda que não se considere apropriadamente uma escritora, a poesia é ponto chave na obra de Teresa de Ávila

 

Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Barbosa, que estuda a poética na obra da santa católica, afirma que é possível distinguir dois tipos de inspiração em sua obra: a de dimensão humana — da ordem da alegria, da festa, da paródia — e a de dimensão divina. Nesta última, Teresa narra suas situações de profundo encontro de amor com Deus, vivenciado em êxtases sublimes, e “narra em suas poesias a experiência de transformar essa realidade humana em divina e a divina que deseja estar mais próxima da humana”.

 

Os êxtases de Teresa são famosos em sua biografia, evocando imagens que beiram o erotismo — como na escultura de Bernini, em que a Santa é representada de modo provocativo, ao ser transpassada pela flecha de fogo de um anjo. Estas experiências inspiravam seus escritos que, por vezes, foram tidos como obra do demônio, e não de Deus, especialmente na era da Inquisição. É a mística das carícias, onde o derradeiro matrimônio espiritual é feito com Deus.

 

Mesmo hoje, o sacral e o sexual, o religioso e o afetivo parecem excluir-se mutuamente. “Teresa nunca teve vergonha de dizer o seu amor com expressões humanas, pois já afirmara mais de uma vez que ‘um só é o amor’”, relata a estudiosa. Teresa não recusa seu corpo nem seus prazeres corporais. Ao contrário, os assume ao Senhor. “Que goze o corpo, pois obedece o que quer a alma.”

 

Luciana Ignachiti Barbosa possui graduação em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, com especialização e mestrado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente é doutoranda em Ciência da Religião na mesma universidade, onde trabalha a poesia das palavras de Santa Teresa de Ávila sob orientação de Faustino Teixeira

 

A entrevista foi, originalmente, publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 23-12-2014.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quais são os nexos fundamentais entre a fusão de mística e poesia em Teresa de Ávila?

 
 
 

Luciana Barbosa - É importante salientar que sentimentos místicos e sentimentos poéticos têm muito em comum, pois a poesia vai expressar um tipo de mistério, o oculto que está para além dos olhos e da mente, ela vai expressar o que está mais recôndito nos sentimentos e pensamentos do homem, atravessa esse umbral entre a lógica e a razão que a mística também transpõe. Diz Martin del Blanco no livro Teresa de Jesus. Escritora y poetisa (Burgos: Monte Carmelo, 2001): “Assim o confirma a vida e a história de tantos místicos que têm compartilhado suas celebrações interiores profundas com Deus através de belos versos e de poemas íntimos”.

É digno de se notar que quase todos os poetas de primeira linha da língua castelhana foram místicos conhecidos, o que mostra a intrínseca relação entre poesia e mística, são os elementos humanos e divinos que vêm sempre unidos no poeta e no místico. Dessa forma o poeta embeleza o que vulgarmente poderia estar escondido, obscuro, impossível de ser atrativo, e que aos seus olhos toca o sentimento. E sobre esse comungar de poetas e místicos continua del Blanco: “O poeta faz, de alguma maneira, a experiência mística do que vive, sente e gosta, para poder logo comunicá-la em poesia. E o místico tem vivenciado a realidade que está interiorizada e pode comunicar essa vivência mística de forma mais poética”.

Podem-se distinguir dois tipos de inspiração poética em Teresa, a inspiração da dimensão humana e outra de dimensão divina. Na dimensão humana ela compunha poesias para colocar alegria e festa na vida monótona dos mosteiros, nas rigorosas disciplinas que ali havia. Teresa sempre trazia um toque de humor, compunha paródias para dar mais leveza às rigorosas tradições monásticas. No âmbito da dimensão divina, ela vai narrar as situações de profundo encontro de amor com Deus, de vivenciar esse amor, esses êxtases sublimes, e narra em suas poesias a experiência de transformar essa realidade humana em divina e a divina que deseja estar mais próxima da humana.

A monja, no entanto, não se considera poeta. No Livro da Vida vai deixar claro que, apesar de fazer versos muito sentidos, isso não a transforma em uma escritora. Diz–nos: “Sei de uma pessoa que, sem ser poeta, lhe acontecia improvisar estrofes muito expressivas, declarando seu penar. Não as fazia com o intelecto, mas para mais regozijar-se da glória que tão saborosa pena lhe causava”. Mesmo ela não se considerando poeta, ela de fato o é. O estado místico pode avivar ou apontar certo numen poético, porém ele não pode criá-lo. 

 

IHU On-Line – Como a Mística das carícias se mescla com a poesia na obra dessa santa?

Luciana Barbosa - A respeito da Mística das Carícias, Faustino Teixeira vai dizer em seu texto Mística: Experiência que integra Anima e Animus que “assim como João da Cruz, Teresa é uma ‘mística das carícias’, da proximidade amorosa e do envolvimento corporal”. Ela chamará esse envolvimento de “atividades íntimas” e, em suas poesias, ela se apresentará irrompendo em palavras de ternura, exclamações impossíveis de reprimir “oh! Vida de minha vida!” ou “Oh! Sustento que me sustentas!”.

 

 

Em seu livro Castelo interior ou moradas (São Paulo: Paulus, 1997), Teresa fez a distinção de sete moradas neste Castelo que é a alma. Descreve fatos e acontecimentos pertencentes a cada uma das travessias. Conclui expondo a sétima morada, onde, efetivamente, acontece o matrimônio espiritual da alma com Deus. O matrimônio espiritual é diferente da união, visto que essa já acontecia nas outras moradas da alma. Tal matrimônio só pode acontecer na última morada, na mais íntima sala da alma, pois é lá que está o Divino Rei, Deus, na metáfora de Teresa, como um diamante que só irradia luz e amor. E a graça maior aqui será o desejo de Deus de desposar tão pequenina alma, de mostrar o seu amor a ela; Deus “(...) A tal ponto quis se unir com uma criatura, que não quer mais apartar-se dela”. Desse modo, a paz que esse amor irradia é tanta que, uma vez que a alma entra nessa morada, ela não mais o perde.

 

Amor

Em suas Meditações sobre os Cantares (Carmelo do Coração Imaculado de Maria, 1970), Teresa trata de forma mais profunda o que entende como amor. Baseia-se em trechos do Cântico dos Cânticos, e os aprofunda em seu entendimento. Assim, dirá referindo-se à passagem: “Beije-me com o beijo de sua boca” que essa é uma graça tão grande, que a alma mal pode suportar estar assim tão próxima de seu Senhor. Tendo a certeza de que ele a ama.

Nesse desposório espiritual a vontade só pode querer o amor. E não é qualquer amor, ou melhor dizendo, não se trata de amar quanto baste. Na verdade, trata-se de amar a mais do que sobra, como diz padre Antônio Vieira em seus Sermões: “Porque o amor acredita-se no supérfluo: quem ama pouco contenta-se com o que basta, quem ama muito contenta-se com o que sobeja, e quem ama mais que muito, nem com o que basta, nem com o que sobeja se contenta: ainda sobe mais acima, ainda passa mais adiante”.

E foi nisso que Teresa mais se esforçou: passar adiante, amar mais que o possível, vivificar em extremo toda graça que recebia do encontro com Deus. Recitando junto com a esposa do Cantares, desabafa: “Enquanto escrevo isso, Rei meu, não estou fora dessa santa loucura celestial que me fazeis favor por vossa bondade e misericórdia, tão desprovida de méritos como sou. Permita agora, eu vos suplico, que fiquem loucos de vosso amor todos aqueles com os quais eu tratar, ou concedei que doravante com ninguém mais trate”.

 

IHU On-Line – Qual o lugar do erotismo em seus escritos? 

Luciana Barbosa - Ernesto Cardenal poetisa sobre o erotismo: “Disseram a Gioconda Belli, naquele bar, que ela poderia entreter-me com erotismo, e diziam que poderia entreter-me bastante. Eu me calei. Hoje pensei que há um erotismo sem os sentidos, para muito poucos, nele eu sou especialista”. O Erotismo da fala dos místicos sempre foi algo a deixar sem jeito muitos teólogos e estudiosos. Dessa forma, ao que parece, continua a grande dificuldade de se juntar religiosidade a expressões de amor físico. Otger Steggink afirma que: “Em nossa cultura Ocidental, o sacral e o sexual, o religioso e o afetivo parecem excluir-se mutuamente. Este mito ocidental está na relação estreita com a concepção do sagrado como separado, e do religioso como puramente espiritual, incorpóreo. Vários autores consideram a persistência deste mito e a incompatibilidade do sagrado e do sexual, e entre o religioso e o corpóreo, em nossa cultura ocidental, como uma crise de fundo”.

Teresa nunca teve vergonha de dizer o seu amor com expressões humanas, pois já afirmara mais de uma vez que “um só é o amor”; daí que melindres não eram condizentes com a força com que esse amor era expresso. Teresa não recusa seu corpo nem seus prazeres corporais. Da mesma forma que não recusa suas dores, com real objetividade já havia escrito às suas filhas: “não somos anjos, mas temos um corpo”. Afinal tudo é de Deus e, se o corpo pode passar por tais momentos de prazer, só o faz porque Deus o permite: “E quer o Senhor algumas vezes, como digo, que goze o corpo, pois obedece o que quer a alma”. 

 

 

Assim, o que alguns críticos de Teresa podem não ter observado é que, para ela, o que o corpo podia expressar com seus arroubos, mesmo com o simbolismo erótico que era característico, era mais uma expressão do amor de Deus, não a principal, nem a mais importante. Dessa forma, o corpo de Teresa se torna palco, palco de uma união mística. Os que estavam ao seu redor poderiam presenciar os efeitos de tal encontro: o corpo inerte como que morto, a exaustão física semelhante a que procede da explosão orgástica, as faculdades em desarmonia, o intelecto com dificuldade de agir, os suspiros, as lágrimas... tudo representado no corpo, mas quem esteve em núpcias verdadeiramente fora a alma. O gozo aqui se representa no corpo, não nasce dele. Pretender restringir uma experiência mística gozosa a um estado de pura excitação física, que tem seu desaguar em uma expressão religiosa, é reduzir a um estado mínimo o seu significado. 

 

IHU On-Line – Como os limites da linguagem se apresentam e abrem espaço para outras expressões do inefável na mística de Teresa?

Luciana Barbosa - Teresa de Jesus vai se utilizar de símbolos para ultrapassar os limites que a linguagem apresenta às expressões místicas. Estes unirão a imagem à realidade significada. Há no símbolo uma presença daquilo que se quer significar, que nos remete a um sentido oculto. Em sua narrativa ela pretende, através de aproximações, comparações, alegorias, poder introduzir o leitor no que ela vivencia profundamente em sua experiência de comunhão com o Amado. Enquanto as comparações e alegorias são expressões do entendimento racional, o símbolo será o melhor representante possível para descrever uma realidade que não se pode exprimir.

Desta forma o símbolo representará uma realidade para além daquela material e imediata (como os usados por Teresa: castelo, sol, água, ouro, etc.). Ela insiste em dizer que tais símbolos são apenas comparações e não correspondem perfeitamente à realidade simbolizada, porém não possui outra linguagem que seja mais apropriada. Diz-nos Mircea Eliade a respeito dos símbolos: “um símbolo revela sempre, qualquer que seja o contexto, a unidade fundamental de diversas regiões do real, pois a imagem como tal — enquanto feixe de significação — que é verdadeira, e não apenas uma de suas significações, ou um de seus planos de referência”.

Teresa escrevia frequentemente em estado de oração ou êxtase, profundamente inspirada, dizia que as palavras lhe eram ditadas pelo Senhor, que a fazia escrever com mais facilidade e clareza. Será então neste estado psicológico que surge o símbolo, não é ela quem os cria, mas sim o Senhor no centro de sua alma. Sendo assim, a exatidão do que ela escreve não é mais determinada pelo entendimento, mas sim pelas experiências das realidades interiores da alma.

O leitor mergulha nesse texto de forma a comungar com a sua realidade interior. Por isso a poesia serve tão bem a Teresa, para que as palavras fluam para além do intelecto daquele que a lê e tire dele o que de experiência ele possa trazer, experiência de suas vivências interiores da alma. É como uma adesão íntima e irresistível a um todo aparentemente incompreensível, mas que o poeta místico tenta, com fervor, transmitir.

Os poetas acreditam e se valem de metáforas, pois compreendem que a linguagem é uma coisa viva, que precisa de tempo para revelar-se, que precisa do esforço do leitor para fazer germinar o sentido. Teresa retira suas metáforas do mundo natural, dos nossos sentidos, das estruturas sociais às quais estava sujeita, e liga-as a realidades psicológicas e espirituais de uma forma tal que consigamos trilhar com ela o caminho.

 

IHU On-Line – Como as obras de Teresa foram recebidas a partir dessa mescla de mística, poesia e erotismo? 

Luciana Barbosa - Desde o começo, quando começa a escrever suas formas de experiência mística, seus textos são recebidos com ceticismo e alto grau de desconfiança. Teresa os mostra primeiro ao amigo Francisco de Salcedo, que os apresenta ao frei Gaspar Daza. Os dois ao analisarem os textos chegam à conclusão de que suas experiências não são de Deus, mas sim do demônio, o que aumenta os já angustiosos questionamentos de Teresa a respeito de sua vivência mística; diz-nos a respeito deste parecer: “causou-me isso tanto temor e pesar, que não sabia o que fazer de mim: tudo era chorar”. Mais tarde um outro confessor, Diogo de Cetina, consegue aplacar um pouco essa angústia afirmando-lhe que essa experiência era divina e a incentivando a continuar escrevendo.

Como podemos ver então, seus escritos foram recebidos com grande desconfiança por parte do ambiente teologal, que, em uma época de fogueiras e inquisições, lia com olhos de censura qualquer exclamação de encontro com o divino, em especial vindos de uma mulher... O próprio Livro da Vida foi recolhido pela Inquisição para um parecer, sendo absolvido mais tarde.

Mas o texto que talvez tenha deixado mais em desconforto seus confessores foi sua interpretação sobre "O Cântico dos Cânticos" escrito nos anos 60/70 do século XVI. Esse texto tem uma história bem acidentada. Seus confessores ordenaram-na que o lançasse ao fogo, o que Teresa faz em obediência, porém ele foi copiado várias vezes antes disso.

O motivo dessa história acidentada vem justamente do poder poético e simbólico de erotismo do Cântico dos Cânticos, acreditava-se que uma mulher não poderia ter entendido seu conteúdo místico. Mas Teresa entendeu muito bem essas núpcias, na verdade ela experienciava o que o texto transmitia, daí conseguir levar o leitor pelos caminhos da experiência contida nas palavras.

Assim, a trajetória de sua obra sempre foi marcada por fortes embates em relação a seus confessores, por mais de uma vez suas obras foram lançadas ao fogo, mas, pela intensa dedicação das monjas e outros confessores seus amigos, essas obras sempre puderam ser resgatadas, em cópias ou com a própria Teresa reescrevendo o texto. Um fato é que as poesias de Teresa não foram muito pesquisadas, depois do livro do padre Ángel Custódio Vega de 1972, La Poesia de Santa Teresa, as pesquisas se mantiveram no mesmo patamar, até os estudos de Tomás Álvarez, editados no livro Estudos Teresianos, de 2000. 

 

IHU On-Line – Em que aspectos Teresa funde ideias de outros místicos, como São João da Cruz, ao mencionar o “rapto místico”? O que essa expressão quer dizer?

Luciana Barbosa - Para Teresa, “Rapto Místico” é o mesmo que “arroubamento ou êxtases” diz-nos: “(...) arroubamento, êxtases, ou rapto, tudo é um em meu parecer”. Seu conceito se deriva do texto paulino na Segunda Carta aos Coríntios 12,2-4, “Se a alma está ou não unida ao corpo, enquanto isso lhe acontece, não sei dizer. Pelo menos não posso jurar que esteja nele, nem tão pouco que está o corpo sem alma”.

O nascimento da amizade entre Teresa e João da Cruz foi um feliz encontro entre dois enamorados de Deus, há uma recíproca influência entre os dois amigos, que os fazem escrever poemas com o mesmo tipo de inspiração, como por exemplo o poema “Vivo sem Viver em Mim”, que eles escrevem quase que ao mesmo tempo, cada um em sua cela. 

Não se pode, também, não levar em consideração as diferenças psicológicas do homem e da mulher. A mística Teresa d’Ávila é diferente de João da Cruz, ela é ativa, propensa às atividades, é comunicativa, com relações sociais, ela é uma mística do diálogo, da comunicação. São João da Cruz é um místico mais contemplativo, essa sua natureza se reflete em seus poemas. O fato é que os dois são poetas. Ela uma poetisa que encontra coordenadas diferentes de João da Cruz, este quase sempre partindo do humano e do cósmico, e Teresa do social e do encontro.

 

IHU On-Line – Psicanaliticamente, como podem ser compreendidos os êxtases vividos por Teresa de Ávila, como aquele representado pela escultura de Bernini?

Luciana Barbosa - Uma leitura superficial da obra de Teresa de Jesus pode levar ao equívoco de se pensar que Teresa desejava que suas companheiras do Carmelo compartilhassem seus êxtases, ou que as incitava a isso. Nada mais errôneo para se dizer. Que ela era uma incitadora nata, disso não há dúvida. Contudo, em nenhum de seus escritos há alguma exortação para que suas irmãs carmelitas, a quem eram destinados seus livros, se esmerassem na busca de êxtases ou arroubos místicos. Pelo contrário, estava sempre a exortar sobre a humildade que se deve ter, e como essas graças de Deus não são o ponto principal de seu amor.

Teresa de Jesus é conhecida, muito, por suas experiências de êxtases, transes e levitações. Depois de ter uma de suas visões, narrada no “Livro da Vida”, imortalizada pelo escultor italiano Bernini, na qual um anjo traspassa seu coração com uma flecha de fogo, é que a curiosidade sobre seus estados especiais se acentuou, ainda mais quando uma santa é representada com tamanho deleite em sua imagem.

No entanto, quando se entra em contato com os textos de Teresa, reconhece-se quão vasta e profunda é sua visão de mundo e de religiosidade, que não se pode deixar de pensar que na verdade os arroubos místicos não deixavam de ser consequência, e não condição, do contato com Deus. 

Teresa de Jesus era uma grande mulher apaixonada, ardentemente enamorada de Deus e possuidora da força que essa relação a dotava. Por ser mulher, e se expressar como esposa, não passou despercebida em seu século aos olhos da Inquisição, e mais tarde aos olhos da psicanálise, que entendeu que Teresa afirmava viver com Deus o desejo e o amor que gostaria de viver com os homens.

Não se entrará aqui nas questões, desde há muito discutidas por psicanalistas, da possível patogenia do estado de Teresa. O que se torna oportuno observar é como uma sublimação amorosa pode estar presente e de que forma ela a representou no corpo. No Congresso Teresiano de 1982, o psicanalista Antoine Vergote trouxe uma questão interessante a respeito da sublimação no amor. 

Sublimação, em termos psicanalíticos, é uma transformação dos instintos sexuais. Assim, a característica da sublimação é, mesmo sem explicitar o caráter sexual da ação, manter o seu prazer. Todavia, o que o autor defende é que Teresa pôde transformar esse prazer. Ela não recusa o prazer que esse corpo pode dar, nem o transforma em contemplação. Amor e humildade, obediência e resignação estão presentes tanto no corpo quanto na alma de Teresa

Ela mesma não dava tanta importância a esses momentos de arroubos. Narrava-os, mas o verdadeiro gozo não estava na narração, pois muitas vezes reclamava de ter que escrever tendo tantos trabalhos a fazer. Também não estava o prazer no momento do êxtase em si, o verdadeiro gozo estava na presença de Deus, que também era dada de outras formas. Diz-nos Vergote: “A Teresa, por exemplo, não lhe dá vergonha reconhecer os prazeres e dores corporais, mas não lhes dá mais importância que ao silêncio ou a rebelião dos sentimentos. Não é que privilegie as reverberações corporais do prazer de Deus, mas tão pouco as deprecia”. O corpo, para Teresa, se torna uma extensão de sua experiência mística; será nele que a demonstração do que é vivenciado com Deus pode se apresentar.

 

IHU On-Line – Em que sentido se pode dizer que a poesia e a mística de Teresa são universais e contemporâneas? 

Luciana Barbosa - A contemporaneidade da poesia mística se dá justamente no encontro do leitor de qualquer época com o texto, com as palavras apresentadas através da experiência. Teresa de Jesus realiza sua obra em diálogo. Primeiro um diálogo consigo mesma, pois seus escritos são recordações de suas vivências sociais, místicas e emocionais. Depois conversa com seus possíveis leitores, primeiro, seus censores e confessores, depois seus filhos e filhas do Carmelo. Sua proximidade com as pessoas faz com que seus escritos soem como se estivesse falando em família, de forma confidencial e próxima. Por isso eles são fonte de inspiração até os dias de hoje, a autora fala de seu coração para o coração do leitor. Conhecedora que era das dores e dificuldades humanas, foca seus esforços em apresentar um Deus de puro amor, que deseja o encontro com essa alma em sofrimento e a quer em si. 

Ao fazerem suas comunicações, os místicos não querem que nos reeditemos em suas experiências, mas sim provocar e suscitar a nossa, e, assim, acompanhá-los em suas expressões. Dessa forma, ao ler Teresa cria-se o carisma teresiano do leitor, o que em sua leitura o impacta, abrindo-o à sua palavra e a tornando sua. O carisma teresiano se pauta em que centremos nossa vida na relação interpessoal com Deus e com os outros. Para Teresa a base de toda a graça é a amizade. Deus ama a todos, mas nem todos correspondem a esse amor, por isso não se tornam amigos de Deus.

Assim a mística propõe entrar no segredo de Deus, na intimidade mais íntima. Perfurar a realidade, e a consequência disso é aceitar o amor com que esse Deus lhe brinda, desnudar-se, consentir em ser essa criatura amada, reconhecer esse amor ao próximo, e daí se esforçar por transmitir isso ao outro, pois em sua viagem mais profunda de encontro com Deus, o místico se encontra com o outro, e com o mundo não podendo se furtar mais de falar-lhe desse amor com a linguagem possível da experiência.

 

IHU On-Line – Qual o lugar dos escritos de Teresa na literatura histórica?

Luciana Barbosa - A importância histórica dos escritos de Teresa é tão relevante que faz o autor Dámaso Alonso  em seu livro “Poesia Espanhola” escrever: “O fato de que as duas grandes espiritualidades (Teresa e João da Cruz) se tenham dedicado a essa humilde tarefa de adaptação obrigaria a considerar o fenômeno espanhol de conversão da literatura profana a plano religioso com mais atenção do que até aqui se tem feito. Esperemos que alguém escreva uma história da literatura espanhola ao divino”.

As obras poéticas dos místicos e romancistas espanhóis dão o formato do que se chamou “A idade de Ouro da Poesia Espanhola”. Como foi dito acima, é digno de se notar que quase todos os poetas de primeira linha da língua castelhana foram místicos conhecidos. Para ilustrar a importância de seus escritos gostaria de trazer aqui alguns exemplos de falas de vários autores que se encontram no dicionário de Santa Teresa de Jesus, sob o vocábulo Algumas Avaliações Sobre o Estilo Literário Teresiano diz-nos: "Teresa é para os artistas, como é Cervantes, uma lição perpétua: mais lição, quanto ao estilo, do que Cervantes. Em Cervantes temos o estilo "feito" e em Teresa vemos como vai "se fazendo" (Azorín ); “Por uma única página de Santa Teresa podem dar-se infinitos célebres livros de nossa literatura e das admiráveis. Não há no mundo prosa nem verso que bastem para igualar, nem ainda de longe se comparem a qualquer dos capítulos da Vida” (Menéndez Pelayo ), e para finalizar o que nos diz Schack: “Por uma única página de (seus assombrosos escritos) daria eu com gosto todos os discursos pronunciados por nossos acadêmicos e parlamentares”.

 

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Luciana Barbosa - Gostaria de finalizar com uma poesia de Teresa intitulada “Sobre aquelas palavras: Meu Amado é meu e eu sou dele”. Esta está contida no livro Obras Completas de Teresa de Jesus de Tomás Álvarez, edição em português. Acredito ser uma poesia que traduz muito do que foi dito acima sobre a vivência amorosa e mística de Teresa com Deus.

 

"Sobre Aquelas Palavras: Meu Amado é meu e eu sou Dele

Entreguei-me toda, e assim

Os corações se hão trocado:

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

 

Quando o doce Caçador

Me atingiu com sua seta,

Nos meigos braços do Amor

Minh'alma aninhou-se, quieta.

E a vida em outra, seleta,

Totalmente se há trocado:

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado

 

Era aquela seta eleita

Ervada em sucos de amor,

E minha alma ficou feita

Uma com seu Criador.

Já não quero eu outro amor,

Que a Deus me tenho entregado:

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado"

 

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