11 Julho 2023
A atual contrarrevolução cultural de extrema direita com frequência reivindica para si os prestígios da rebelião. De múltiplas formas, ganha terreno em todo o mundo, erguendo-se como rival de uma esquerda pouco convincente. Enquanto a vaquinha lançada para ajudar o policial responsável pela morte de Nahel arrecadou mais de 1,6 milhão de euros, enquanto grupos fascistas saíram durante os recentes tumultos na França para se “fazerem de negros e árabes”, e enquanto a redação do Journal du Dimanche está confiada a um ultra dos Valeurs Actuelles, o que dizem esses acontecimentos sobre a banalização das ideias reacionárias no espaço público?
A entrevista é de Jonathan Baudoin, publicada por Quartier Général, 09-07-2023. A tradução é do Cepat.
“Você não tem o monopólio da rebeldia”, um ativista de direita ou de extrema direita poderia dizer a um ativista de esquerda hoje. E por um bom motivo: toda uma galáxia de pensamentos neo-reacionários, às vezes opostos uns aos outros, está no ataque para convencer uma juventude preocupada e revoltada. Para Quartier Général, o jornalista argentino Pablo Stefanoni, autor do livro A rebeldia tornou-se de direita (Editora da Unicamp, 2022), enfatiza o quanto a extrema direita está ganhando terreno contra uma esquerda esclerosada, que luta para oferecer um horizonte alternativo, uma utopia realista.
Apesar de suas diferenças ideológicas, qual é o terreno comum da extrema direita em todo o mundo hoje?
Dentro da galáxia neorreacionária, encontramos uma coabitação aparentemente contraditória de ultraliberais e soberanistas partidários de um Estado forte capaz de administrar uma “contrarrevolução cultural”. Atlantistas e pró-russos, sionistas e antissemitas, homossexuais declarados e homofóbicos declarados, partidários da família tradicional e “femonacionalistas” reivindicando os ganhos da emancipação feminina contra a chamada ameaça islâmica, ou ainda climatocéticos endurecidos e, pelo contrário, ecofascistas se preparando para o colapso da civilização industrial.
Mas há também uma constante hibridização de motivos provenientes da legítima cultura do livro e elementos ou práticas ligadas às pop cultures nas redes sociais. Youtubers que hoje fazem o papel de “pequenos intelectuais”, como antigamente tínhamos aqueles que publicavam panfletos divulgando ideias não conformistas. Nesse movimento na rede, temos uma variação que vai até formas de radicalização que incluem ataques criminosos, como no caso da Nova Zelândia em 2019 – muitas vezes inspirando-se no norueguês Anders Breivik [autor de um massacre contra jovens ativistas socialdemocratas na ilha de Utøya na Noruega, em 2011, nota do editor].
O autor do atentado de Christchurch [Brenton Tarrant, Nova Zelândia, nota do Editor] declarou que ficou sabendo de tudo pela internet, e que foi durante uma viagem à França que pôde constatar a realidade, segundo ele, da “grande substituição” e da “opressão” das populações brancas. Além disso, é curioso constatar que esses terroristas se sintam compelidos a escrever longos e antiquados manifestos.
O terreno comum de todas essas galáxias, entretanto, é o antiprogressismo: a ideia de que vivemos numa espécie de ditadura progressista, até mesmo um totalitarismo wokista; que estamos todos na “matrix”. A extrema direita conseguiu implantar a ideia de que, de agora em diante, as elites são de esquerda, e que é a direita implacável que representa o pequeno povo oprimido pelo politicamente correto.
Estamos assistindo ao estabelecimento de uma internacional da extrema direita?
De qualquer forma, há convergências. Podemos ver isso no Parlamento Europeu. Há também think tanks e conexões entre partidos e lideranças. Por exemplo, o Vox na Espanha, mas também figuras como a presidente da Comunidade de Madri, Isabel Díaz Ayuso, da ala mais populista do Partido Popular, desempenham um papel muito importante como intermediários entre certas ideias de extrema direita na Europa e na América Latina. Ainda que existam vínculos formalizados e práticas organizacionais alimentadas pelas intervenções dos militantes afiliados, penso ser relevante a imagem do “rizoma”, da estrutura sem centro, arborescente e sem articulações pré-definidas, na esteira do pensamento de Deleuze e Guattari.
Na Argentina, por exemplo, o youtuber e escritor Agustín Laje, que tem 2 milhões de inscritos em seu canal no YouTube, é regularmente convidado em toda a América Latina e até nos Estados Unidos para protestar contra a suposta ideologia de gênero. Também publicou best-sellers, em espanhol, como O Livro Negro da Nova Esquerda ou A Geração Idiota nas principais editoras internacionais. Temos assim diferentes suportes materiais para a divulgação de ideias reacionárias, que vão desde os “memes” na internet aos livros de sucesso, passando pelos manifestos old school.
Você também menciona o libertarianismo, que inspira algumas grandes figuras do trumpismo e da alt-right nos Estados Unidos. Especialmente a figura do ensaísta americano Murray Rothbard (1926-1995). Você poderia resumir sua trajetória de vida e por que ele serve como elo de ligação entre os libertários e a extrema direita de nossos dias?
Escrevi este capítulo pensando no movimento libertário na Argentina, personificado na figura de Javier Milei, uma liderança anarcocapitalista que alcançou 20% nas pesquisas para as próximas eleições presidenciais. Mas a sensibilidade libertária está longe de se limitar a este fenômeno. Existe em toda parte uma recuperação dos libertários pela direita alternativa.
Rothbard teve uma carreira inspirada nos economistas austríacos Von Mises e Hayek e estava ligado à filósofa russo-americana Ayn Rand, autora do best-seller A revolta de Atlas (1957). Nas décadas de 1960 e 1970, ele teve muitas ligações com a nova esquerda, mas acabou se afastando dos libertários tradicionais. Ele achava que o Partido Libertário americano havia se tornado um grupo de hippies antiautoridade.
Para se diferenciar, no início dos anos 1990, Rothbard desenvolveu uma articulação entre a sensibilidade libertária e o conservadorismo social e cultural mais reacionário. De maneira quase profética, escreveu sobre o populismo de direita como a estratégia a ser adotada pelos libertários. Podemos encontrar nele uma antecipação do trumpismo e do atual movimento de extrema direita, com combinações de geometria variável entre o autoritarismo e o ultraliberalismo, e um esforço para desafiar o povo contra as elites.
Também é interessante sobrevoar casos frustrados de democracia no Vale do Silício. Encontramos aí as ideias da chamada neorreação de Curtis Yarvin, ouvidas com atenção pelos republicanos trumpistas, que defendem diretamente a abolição da democracia em prol de um neoelitismo oligárquico, onde o papel do governo não deve ser o de representar a vontade de um povo irracional, mas conduzi-lo corretamente.
Você destaca que o ecofascismo está ganhando espaço, especialmente na web, e tende a encontrar um lugar na expressão política por causa da crise climática. Você teme que a esquerda, principalmente a que defende o ecossocialismo, também seja ultrapassada pela extrema-direita?
Acima de tudo, gostaria de salientar que, mesmo que a extrema direita seja amplamente antiecológica e negue a mudança climática, existe uma tradição ecofascista na qual a direita radical pode se apoiar, e alguns o fazem. Embora a ameaça climática e a perspectiva de colapso possam alimentar visões solidárias que enfatizem que estamos todos no mesmo barco e que devemos nos salvar juntos, também alimenta sensibilidades menos humanísticas ao sugerir que toda comunidade humana precisará maximizar seu potencial de sobrevivência e excluir todos aqueles que a põem em perigo. Marine Le Pen, por exemplo, deixou de considerar a ecologia como um passatempo bobo e propõe uma espécie de ecologia alternativa articulada com o localismo, a identidade, o enraizamento e com referências soft ao solo e ao sangue.
A esquerda não tem o monopólio da bandeira ecológica. A crise climática certamente alimenta visões solidárias sobre a melhor forma de enfrentar os riscos do aquecimento global, a ética do navio Terra, mas também alimenta o que podemos chamar de moral do bote salva-vidas, que sustenta que tentando salvar a todos, não seremos capazes de salvar ninguém. Não há garantia de que a ética do navio Terra, comum a todos, supere a moral do bote salva-vidas. As crises não necessariamente nos tornam melhores e podem, ao contrário, nos tornar piores.
No meu livro, quis mostrar que as direitas alternativas não são apenas reações conservadoras, mas movimentos reacionários capazes de resgatar discursos e até estéticas da esquerda em uma luta para resgatar os inconformistas do século XXI, tudo em um contexto de ambiguidade do espírito de revolta. Se, há uma década, indignação rimava com esquerda e alterglobalismo, hoje é muito mais complicado, e o risco para a esquerda é ser colocada do lado dos vencedores e não dos de baixo.
Que caminhos devem ser estudados pela esquerda, para recuperar o terreno perdido pela extrema direita junto das novas gerações?
Penso que estamos diante de uma situação paradoxal. Um programa de reconstrução social e de serviços públicos parece crucial. Se acrescentarmos a crise ecológica, tudo isso nos obriga a pensar numa forma de utopia realizável. O futuro parece fechado, um misto de distopias e catastrofismo… como sair disso? O atalho do populismo latino-americano parece esgotado e não funciona mais como bússola; a bola está novamente com o Norte Global, mas a esquerda radical europeia parece fraca hoje. Não tenho a resposta para O que fazer? [referência ao livro de Lenin, nota do editor], e ninguém pode escrever este livro hoje.
O que nos resta, de fato, é a esperança de radicalização de determinadas perspectivas socialdemocratas clássicas como suporte de uma nova política dos “bens comuns”; a pandemia, por exemplo, revalorizou o papel dos sistemas públicos de saúde, que estão em crise por toda parte. Talvez seja necessário também caminhar para uma forma de ecossocialismo capaz de ser ao mesmo tempo radical e reformista.
E reconectar-se com as massas da população, evitar os sermões moralizadores, reconectar-se com as tradições mais ricas do socialismo e retomar imagens positivas e desejáveis de futuro. Nosso futuro não tem poesia alguma, mas precisamos de alguma poesia do futuro para evitar que as paixões tristes se imponham e, com elas, a nova direita radical.
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“A extrema direita conseguiu implantar a ideia de que as elites são de esquerda”. Entrevista com Pablo Stefanoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU