Com 20 anos de estudo sobre indígenas do Mato Grosso do Sul, antropólogo expõe terror provocado pelo massacre de Guapoy.
A reportagem é de Murilo Pajolla, publicada por Brasil de Fato, 01-07-2022.
A chegada de Jair Bolsonaro (PL) à presidência fragilizou ainda mais os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, que lutam há mais de um século contra o confinamento imposto pelo Estado brasileiro. A avaliação é do antropólogo e professor da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Diógenes Cariaga.
Cariaga acompanha os Guarani Kaiowá há quase 20 anos. Ele trabalhou como assessor de assuntos Indígenas da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, foi colaborador da Funai por três anos e hoje é professor no curso de Ciências Sociais da UEMS.
Entre seus alunos, está uma vítima do massacre de Guapoy, que tirou a vida do indígena Vitor Fernandes, de 42 anos, no dia 24 de junho. O ataque protagonizado pela Polícia Militar (PM) foi resultado da tentativa de retomada do território ancestral Guapoy, hoje registrado como uma fazenda.
"Ela [vítima do massacre de Guapoy] estava internada sob escolta policial. Os próprios policiais não sabiam tipificar por que ela estava sob escolta. Quem foi morto e quem foi ferido são pessoas muito jovens. Estudantes que estavam lá, inclusive fazendo pesquisas", explica Cariaga.
O alinhamento do governo federal com o agronegócio, que colocou os territórios originários a serviço da produção de commodities agrícolas, criou condições para milícias rurais - além da própria Polícia Militar (PM) - atuarem com mais força contra indígenas que buscam retomar suas terras ancestrais.
"Aqui não há nenhuma confiança no Estado. Os indígenas - lideranças, pesquisadores, professores, e agentes de saúde - acompanham o que acontece nacionalmente. E eles conhecem, no dia a dia, como esse discurso de ódio vai crescendo e constituindo suas redes", conta.
Segundo Cariaga, os indígenas ocupavam largas porções de terra em toda a região sul do Mato Grosso do Sul. No início do século 20, o Estado estimulou a compra das terras na fronteira com o Paraguai. A expulsão dos indígenas foi potencializada pelo incentivo à chegada de colonos durante o governo Getúlio Vargas.
"É um processo diferente do que ocorreu na Amazônia Legal, onde houve grilagem e venda ilegal de terras. É claro que houve processos semelhantes, mas no Mato Grosso do Sul a maior parte dos casos de violência contra indígenas são decorrentes da política de ocupação colonial e de privatização dos territórios", afirma Cariaga.
Como os povos Kaiowá e Guarani chegaram a essa situação de cerco permanente, com violações sistemáticas dos seus direitos constitucionais enquanto indígenas?
O pano de fundo histórico do ataque mais recente contra os Kaiowá e Guarani remonta à constituição do Estado republicano brasileiro, no início do século 20, com a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que determinou a criação de pequenas áreas de terra reservadas para acomodação dos indígenas que viviam na região. Essas reservas foram criadas para o recolhimento compulsório das famílias que viviam em todo o território do atual cone sul do Mato Grosso do Sul.
A Comissão Nacional da Verdade registrou muitos casos de remoções forçadas em meio ao processo de ocupação colonial e a privatização da terra. O Estado desconsiderou a presença dos indígenas e declarou essas terras como devolutas. Ou seja, sem proprietários, pertencentes à União e passíveis de serem vendidas. Podemos estabelecer um marco a partir do estado republicano que se começa a ter a privatização dessas terras e a venda para proprietários particulares.
Esse processo se arrasta ao longo de todo o século XX porque essa região foi anexada ao território brasileiro depois da guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Então, essa era também uma política de ocupação do estado brasileiro na delimitação e do povoamento dessas fronteiras.
Isso é acentuado a partir dos anos 40 e 50, com a política de imigração e de ocupação colonial do governo de Getúlio Vargas, quando são criadas as colônias agrícolas nacionais. Com isso, há o aumento de ondas migratórias para ocupar essa região. Isso aos poucos vai criando uma reconfiguração nas áreas rurais.
A partir da própria constituição da Funai (1967) e do estabelecimento do Estatuto do Índio (1973), há uma ideia da política indigenista de que os índios estavam em vias de assimilação e integração com a população nacional enquanto trabalhadores. Portanto não faria sentido ampliar as porções de terras habitadas pelos indígenas.
Esse discurso de aculturação é mais um viés de um discurso etnocêntrico e racista que não faz mais sentido do ponto de vista analítico. Mas ele se perpetua nos poderes do Estado e, com isso, se aprofunda o problema fundiário no Mato Grosso do Sul.
Então é um problema distinto do que ocorre na floresta amazônica.
Sim, aqui é um processo diferente do que ocorreu, por exemplo, na Amazônia Legal, que lá envolve grilagem e venda ilegal de terras. É claro que houve processos semelhantes, mas aqui a maior parte dos casos de violência contra indígenas são decorrentes dessa política de ocupação colonial e de privatização dos territórios. Quando o estado do Mato Grosso do Sul foi separado do Mato Grosso em 1977, os títulos privados da terra foram reconhecidos.
Por isso aqui é muito recorrente o discurso de que os índios não estavam nessas áreas [quando os colonos chegaram]. Isso é aprofundado pela defesa do Marco Temporal, que reafirma uma interpretação completamente equivocada da Constituição, de que os índios deveriam estar dentro dos territórios tradicionais quando a Constituição foi promulgada. É um argumento completamente refutável, porque você tem a documentação histórica dos processos de recolhimento compulsório das famílias Kaiowá e Guarani ao longo de todo o século 20. Os proprietários que tinham os títulos pediam à Funai e aos prefeitos que tirassem os índios, que eram levados para a reserva, para que seus recursos naturais pudessem ser explorados.
E aí, junto com isso, tem também outro processo que é o inchaço [populacional] das reservas. No caso de Amambai, nós estamos falando de uma área que tem menos de 2500 hectares, onde moram de 10 mil a 12 mil pessoas.
A Reserva Amambai, hoje Terra Indígena Amambai, onde moram as vítimas do massacre de Guapoy, foi uma dessas reservas criadas para confinar os indígenas?
Sim, ela foi criada em 1915 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) com 3600 hectares, assim como a reserva de Dourados (MS) e a de Caarapó. Mas em Amambai houve uma diminuição progressiva no tamanho da reserva. Tanto que os indígenas nunca chegaram a ocupar os 3600 hectares. E depois foi criada uma outra reserva menor, de 600 hectares, que é a aldeia Limão Verde, que fica também no município de Amambai. Foi uma dessas áreas que o SPI criou para fazer essa política do confinamento, do recolhimento compulsório das famílias para liberação das terras para a privatização.
Esse processo longo e complexo se soma à força que o agronegócio tem hoje na região. Então existe um agravante, que são as monoculturas, inclusive a "monocultura" na política, com todo um setor que defende o agronegócio. O que faz com que a própria natureza tenha ficado totalmente devastada, acabando com a possibilidade de reprodução da vida social, cultural e material dos indígenas, que está atrelada aos rios e às matas. Esse cenário faz com que as famílias que moram nas aldeias dependam muito das ações do Estado. Então há um aumento da dependência das famílias.
Vemos que os indígenas da Amazônia, embora sofram com constantes invasões, têm porções de terra muito maiores do que no Mato Grosso, certo?
Hoje nenhuma família Kaiowá e Guarani ocupa a porção territorial correspondente ao que a gente chamaria de Terra Indígena nos modelos preconizados pelo pós-Constituição. Aqui, o que se chama de Terra indígena são basicamente as reservas que foram criadas no início do século 20 pelo SPI. Essas áreas não correspondem ao modelo de organização social e territorial Kaiowá Guarani, que eles reivindicam e que está assegurado pela Constituição.
E desde que a Constituição foi promulgada, mesmo as áreas que foram identificadas e declaradas, os Kaiowá e Guarani não ocupam na sua totalidade, que é o exemplo de Taquara e Guyraroká. Elas estão identificadas, uma com aproximadamente 9 mil hectares e outra com 12 mil. Porém as famílias ocupam uma porção ínfima. Porque a terra ainda está de posse dos particulares.
Os Kaiowá e Guarani vivem, em sua maioria, nas áreas criadas pelo SPI, as chamadas reservas, ou em áreas que eles chamam de retomadas e que ao longo dos últimos 40 anos eles têm reivindicado. Algumas têm portaria de declaração de reconhecimento e de limite territorial, porém os indígenas não têm a posse completa. O que as famílias que fizeram a retomada de Guapoy estão reivindicando é uma porção que foi sendo incorporada ao longo desses 100 anos pelas propriedades limítrofes.
Ou seja, além de terem sido confinados em porções ínfimas de terra, os indígenas foram perdendo essas poucas terras ao longo do tempo?
Sim. Um exemplo é a TI de Dourados, que foi a primeira a ser criada e tem hoje a maior população, com cerca de 15 mil pessoas e tamanho entre 1 e 1,5 mil hectares. Os indígenas também reivindicam várias áreas, que hoje são privadas, como parte da reserva que foi sendo ao longo do tempo incorporada pelas propriedades limítrofes.
Há um processo de contingenciamento territorial que é feito à revelia dos modos de organização social e territorial Kaiowá Guarani, que é essa política da criação dos Postos Indígenas (PIs) pelo SPI. E você tem durante todo o século 20 essa política de remoção forçada das famílias para as reservas. E junto com isso você tem a diminuição gradual das terras instituída pelo SPI e pelas propriedades limítrofes às aldeias.
Pelo mapa, você vai ver que as reservas estão sempre circundadas ou por propriedades que hoje plantam basicamente commodities ou, no caso de Dourados, a própria cidade chega até os limites da reserva. Isso é verificável no Google Maps. Não precisa de nenhum programa de geoprocessamento.
Então há uma constante violação de direitos. E o Estado não se reconhece como o principal agente desse problema. Há uma contradição histórica aí. O Estado tem papel histórico na defesa de direitos dos povos indígenas, porém há toda uma estrutura jurídica e política regional que faz pressão no Estado para que a proteção ao direito de propriedade prevaleça sobre o direito originário.
Muitas pessoas morreram por essa incapacidade de definição sobre essa controvérsia em relação ao direito social da terra e da propriedade.
Então o poder do Estado sempre desfavoreceu os povos Kaiowá e Guarani. E tem desfavorecido ainda mais com a chegada da extrema direita ao Executivo federal?
E muito. De 2003 até 2010, eu fui assessor da Comissão de Assuntos Indígenas e Fundiários da Assembleia do estado do Mato Grosso do Sul. Desde então eu tenho acompanhado essas questões que envolvem a proteção, a promoção e também a violação de direitos, através do parlamento. Depois eu fui trabalhar na Funai aqui em Dourados, onde eu fiquei de 2010 até 2014. Depois fui fazer doutorado e desde 2018 estou atuando na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS).
Nesse período sempre houve um tensionamento político aqui no estado por conta dessa constituição econômica baseada no agronegócio. A gente não pode esquecer que em 2011 e 2012 várias entidades ruralistas daqui, junto com políticos - inclusive a ex-ministra do Bolsonaro, Tereza Cristina - lideraram o chamado Leilão da Resistência.
O Leilão da Resistência foi uma iniciativa pública dos setores patronais do agronegócio que, junto com políticos locais, defendiam uma cota para que eles pudessem contratar empresas de segurança privada para proteger suas fazendas. Ou seja, uma milícia rural. Então há um pano de fundo tenso que está constituído com base na assimetria política entre o agronegócio e os povos indígenas.
Sabemos que a Funai foi sequestrada por ruralistas e militares, dentro de um governo de extrema direita. Como esse processo impactou os Kaiowá e Guarani?
Há um progressivo aumento da tensão e junto um progressivo esvaziamento das instâncias que eram responsáveis pela proteção dos direitos indígenas. A Funai foi completamente esvaziada de sua função e instrumentalizada para os fins que este governo [Bolsonaro] representa. E também tem o medo das forças de segurança.
Do dia do massacre de Guapoy até hoje, toda vez que que tinha uma ameaça de um novo ataque ou de um novo confronto, as perguntas que vinham dos meus alunos é: quem que vai nos proteger?
Aqui não há nenhuma confiança [no Estado]. Os indígenas - lideranças, pesquisadores, professores, e agentes de saúde - acompanham o que acontece nacionalmente. Eles viram o que aconteceu, por exemplo, em Sergipe, com a morte do Genivaldo [de Jesus do Santos, morto por policiais rodoviários federais em uma câmara de gás improvisada]. E eles conhecem, no dia a dia, como esse discurso de ódio vai crescendo e constituindo suas redes.
Na maior parte das aldeias indígenas Kaiowá e Guarani, o atual presidente não foi o mais votado. E isso coloca uma leitura de que as tensões que a gente vê nacionalmente também se refletem nas tensões internas.
No caso de Amambai, há um bom tempo a Kuñangue Aty Guasu, o coletivo das mulheres Kaiowá e Guarani, denunciam que há um crescimento diário de conflitos internos que envolvem rezadores e rezadoras, que são os conhecedores tradicionais, que tiveram casas de reza incendiadas. E os principais suspeitos são sempre outros grupos indígenas associado a igrejas pentecostais, que demonizam as práticas tradicionais dos Kaiowá e Guarani.
Eu chamo a atenção para a instrumentalização dessas divisões internas nas comunidades com o objetivo de atender a um interesse eleitoral. Isso me preocupa muito enquanto pesquisador que atua há muito tempo com eles, porque eu também vejo que é um movimento crescente. E o estímulo de divisões internas é uma prática repetida em diversos contextos, por exemplo, com o que aconteceu com diversos movimentos sociais ao longo da história.
O que a gente tem visto aqui na região é o aumento das tensões internas, potencializado por essas relações que estão muito estruturadas nessa divergência polarizada que a gente vive.
Você tem alunos vítimas do massacre de Guapoy. O que eles relataram para você?
Eu fiquei do dia do massacre [de Guapoy] até hoje acompanhando a família da minha aluna, que foi vítima do acontecimento. Procurei dar assistência à família. Ela [vítima do massacre de Guapoy] estava internada sob escolta policial. Os próprios policiais não sabiam tipificar por que ela estava sob escolta. Quem foi morto e quem foi ferido são pessoas muito jovens. Estudantes que estavam lá, inclusive fazendo pesquisas. Porque eles fazem pesquisas nas suas comunidades.
O secretário de Justiça do Mato Grosso disse que não foi um ato de remoção nem de despejo. Essa é a fala dele na primeira coletiva. Mas a pergunta é: se não era uma ação de despejo, o que era? O argumento, segundo o secretário de Justiça, era de que eles estavam ali para atender um pedido em defesa da propriedade. Porque havia uma denúncia nesse tipo? É uma conversa que ele [secretário de Justiça] não diz de onde partiu. Mas ele diz que a polícia cumpriu seu papel porque foi demandada.
E qual a razão de mandar aquele batalhão? Amambai é uma cidade é que tem um histórico de violência por conta da proximidade com a Fronteira com o Paraguai. Então essa justificativa também é um elemento que sempre aparece [em ações policiais contra indígenas]. Mas quais eram os elementos de inteligência que eles tinham para deslocar um batalhão tão grande quanto aquele? Para manter, como fizeram, barreiras em todas as vias de acesso à Amambai, revistando todos os carros que chegam pelas rodovias? Como isso foi produzido em termos de uma operação de inteligência?
Então devemos começar a fazer essa pergunta: quem mandou? Quem determinou a operação? Qual é a política de inteligência? A Polícia tem fontes de inteligência para fazer as investigações, para evitar aquela situação que nós vimos. Tem vídeo de execução sumária [de um indígena no massacre de Guapoy]. Então o uso da força foi desproporcional.