29 Outubro 2020
Conhecedores e pajés do Alto Rio Tiquié, na fronteira com a Colômbia, usaram benzimento e remédios da mata contra o novo coronavírus.
A entrevista é de Ana Amélia Hamdan, publicada por Instituto Socioambiental - ISA, 27-10-2020.
Observando o mapa de São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas, logo se vê o contorno da Cabeça do Cachorro – nome pelo qual a região é conhecida – formado pelas linhas da fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. Damião Amaral Barbosa, de 44 anos, da etnia Yeba Masã, olha o mapa para indicar onde está sua casa. Aponta para o traçado do Rio Tiquié e, com o dedo indicador, vai subindo até encontrar logo abaixo da boca do tal cachorro imaginário, já quase na Colômbia, o Igarapé Castanha. Ali fica a comunidade de São Felipe ou Piroperi, Buraco de Cobra na língua Tukano.
Damião Barbosa, da etnia Yeba Masã, indica no mapa São Felipe, comunidade indígena onde vive.
(Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA)
Da sede do município de São Gabriel até lá são cerca de cinco dias de viagem de barco, dependendo das condições do rio. A pequena aldeia, na Floresta Amazônica, quase não tem comunicação. Televisão, nem pensar. Há poucas pessoas de fora. Mas a Covid-19 chegou e atingiu todos os 48 moradores. “Todo mundo pegou”, contou Damião.
Damião é agricultor, agente indígena de manejo ambiental (Aima) pelo Instituto Socioambiental (ISA), conhecedor tradicional e está em processo de aprendizado para se tornar um kumu, que atua junto ao pajé. Ele relata que os remédios e práticas tradicionais impediram que os casos da Covid-19 se agravassem em São Felipe, uma das comunidades indígenas localizadas na Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro. Outros povos da região fazem o mesmo relato.
Na cidade ou nas comunidades mais próximas dos polos urbanos, houve intensa troca de informações entre indígenas sobre quais plantas deveriam ser utilizadas contra a Covid-19. As alternativas foram muitas: jambu, limão, alho, mastruz, caparanaúba, cipó saracura, entre outras.
Mas, em meio à floresta, com a comunicação escassa, os indígenas se guiaram mesmo pelos saberes dos pajés, kumua e conhecedores. Damião relata que o kumu da comunidade já havia sentido sinais da doença. Também chegaram notícias da pandemia via sistema de radiofonia da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e por meio de equipes de saúde.
Com essas informações, os indígenas de São Felipe se anteciparam e providenciaram o ritual de proteção ainda em fevereiro, antes mesmo que a doença chegasse à cidade. Em São Gabriel, os dois primeiros casos da Covid-19 foram confirmados em 26 de abril.
Na cerimônia tradicional, o pajé e o kumu fazem uso do ipadu e tabaco para expandirem o pensamento e conduzirem a cerimônia, quando será feito o benzimento de substâncias para proteção, como o rapé, a pintura de carajiru, o breu branco para defumação. Damião explica que esse ritual é realizado na maloca para proteção no cotidiano da aldeia, mas nessa ocasião tinha como objetivo conter a Covid-19.
Quando os casos da doença apareceram na aldeia, os indígenas, observando os sintomas, utilizaram os remédios da mata, principalmente carapanaúba, saracura, casa de tachi e cipó de trepadeira — todos encontrados nas proximidades de casa, onde o quintal é a floresta. “Funcionou sim, funcionou. Não temos posto de saúde ou hospital e curamos por meio dessa proteção. Ninguém teve óbito, graças a Deus. Foi a proteção e a medicina tradicional também. Usamos saracura, carapanaúba, tachi e folha de cuia trepadeira, cipó trepadeira — esse é nosso remédio que misturou”, disse.
Damião visitou o ISA em São Gabriel em setembro e trouxe notícias da pandemia na floresta.
(Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA)
Entre os moradores da aldeia, apenas uma criança de três anos, filha de Damião, fez o teste da Covid-19, que deu positivo. Os agentes de saúde explicaram ao indígena que, como as outras pessoas apresentaram sintomas, é possível que todos tenham tido a doença.
Desde fevereiro, Damião e a família estavam quietos na comunidade, evitando a cidade e cumprindo as recomendações das autoridades de saúde. Em setembro, seguiram para São Gabriel da Cachoeira para sacar os benefícios sociais e visitar os parentes. Foram até a região do Rio Içana, onde vivem os pais da esposa de Damião, Maria Áurea Nunes Batista, da etnia Baniwa.
Antes de retornar ao Alto Tiquié, o indígena passou novamente na cidade e visitou a sede do ISA. Guardava os objetos e substâncias de proteção: seu caracol com rapé – a casa do caracol se transforma em recipiente para rapé ao ser vedada com breu; o objeto feito com osso de macaco e utilizado para soprar o rapé no nariz; sikãta (breu branco), carajiru para pintura e o ipadu. Trouxe notícias da pandemia na floresta. Algumas delas estão relatadas abaixo:
Vocês vivem numa comunidade isolada. Como as informações sobre a pandemia chegaram até lá?
Na comunidade tem pajé. O próprio pajé teve sintomas da pandemia. Lá não temos televisão, jornais. Logo no início a gente escutou pela radiofonia que aqui em São Gabriel já tinha essa doença de coronavírus e escutamos também da equipe de saúde, que chegou lá e falou para a gente que a doença já tinha chegado e tínhamos que tomar cuidado. Logo que escutamos essa conversa do enfermeiro, convidamos o pajé e o kumu para realizar esse tipo de proteção. Nós fizemos essa cerimônia foi em finalzinho de fevereiro. Logo que ouvi falar.
Como é realizado o ritual do benzimento?
O tuxaua [liderança da comunidade] convida o pajé, o kumu e os conhecedores para realizar uma cerimônia, para fazer certo tipo de rito de proteção. A função do pajé é tirar a doença, é o médico tradicional. Ele indica qual é a doença e o kumu realiza o benzimento e receita o remédio dependendo da doença que o pajé falar.
Já o conhecedor ele faz a preparação para realizar esse tipo de cerimônia. Convida para catar padu. Sem padu, o pajé não tem aquele conhecimento, por isso eles vão catar a folha do padu antes da chegada do pajé e do kumu. Esse é o papel do conhecedor. Ele vai preparar ipadu, rapé, breu e carajiru [pigmento de cor vinho] para fazer a pintura corporal.
Onde é realizado o ritual?
Lá tem a maloca. As famílias moram em suas casas, mas o ritual acontece na maloca. O ritual acontece lá dentro. Os convidados chegam por volta das cinco horas da tarde. Convidamos os nossos povos Yeba Masã, também os Tuyuka e Hupdah, para eles participarem, porque eles precisam também.
O tuxaua da casa vai acolher, dar quinhapira [prato tradicional com peixe e pimenta], beiju, chibé etc. E aí ele já fala: vai acontecer assim, todo mundo está convidado a participar da cerimônia. No início da noite, todo mundo já está lá dentro esperando o benzimento.
As famílias que têm bebê e criança pequena atam rede para esperar. A cerimônia vai acabar só lá pelas três horas [da madrugada]. É um rito que dura um tempo. Depois vai dormir. Lá pelas seis ou sete da manhã, começa de novo. Prepara o caxirizinho (caxiri, bebida fermentada da mandioca) e depois vai para a dança. O pajé pensa a partir da constelação qual tipo de dança será. Porque o pajé faz a conexão com os deuses.
Para ele poder receber essa mensagem, ele usa também um tipo de paricá [pó feito a partir da casca dessa árvore] e, através desse alucinógeno, ele tem essa visão, conversa com os deuses lá do céu. O espírito A’yawa faz a conexão com o pajé.
Na cerimônia tem o rapé benzido. Quem tem caracolzinho enche lá dentro e cada um fica com o seu. O pajé já fez a proteção e, onde tu for, você carrega ele. Também tem o carajiru já benzido para pintar as pernas, braços. Todo mundo pinta. Todo mundo tem que participar. Também tem o sikãta [breu branco], um tipo de cera de árvore. O pajé benzeu muito isso daí, mandou essa doença voltar para onde ela veio. Por isso chegou perto de nós não muito forte.
Como a doença chegou até a comunidade de São Felipe?
A doença chegou em 3 de maio porque nessa data a gente comemora festa de santo padroeiro da nossa comunidade: São Felipe. A gente já escutava que não pode acolher pessoa estranha. Eu falei para a comunidade: bora fazer isolamento nós mesmos. Porque aqui é lugar distante, quase ninguém chega. A nossa comunidade é a última, quase na fronteira Brasil – Colômbia. A gente fala, tem gente que não obedece. E chegou o pessoal. Não teve jeito de segurar, chegaram com esse vírus já. A gente nem imaginava, falaram que era gripe, mas na verdade já era isso mesmo. Também teve gente da comunidade que veio a São Gabriel e voltou para lá.
Alguém da comunidade fez o teste para verificar a contaminação pelo novo coronavírus?
Somos 48 pessoas junto com adultos. Todos nós da comunidade pegamos. Minha filha ultimazinha caçula, de três anos, fez o teste. Lá eles [equipe de saúde] falaram que iam tirar só um teste para uma comunidade. Se achou um positivo, vão dizer que todos já pegaram. Assim que falou a equipe de saúde.
As pessoas que apresentaram sintomas da Covid-19 usaram remédios tradicionais?
Os velhos sofreram mais, principalmente meu pai, Teodoro, e minha mãe, Amália. Tiveram muita falta de ar, dor na parte do peito. Fomos tirar nosso remédio caseiro que é o cipó saracura, também carapanaúba e tem aquela casa da formiga tachi. Esse aí é bom remédio. São remédios da floresta. Para encontrar tem que ir na floresta, tem que ir no mato. Para a gente não é como cidade. Daqui a 100 metros aí já acha esse medicamento.
Tem dois tipos de cipó: tem um da folha meio fina e outro da folha da grossa. O que vale mesmo é aquele da folha fina. E tu tira esse daí, raspa o de cima. Depois raspa e esmaga, ferve um pouco. Quando ferve, dá espuma. Se tira essa espuma até que o líquido fique bem avermelhado. É bem amargo. Toma de manhã, depois do mingau. Toma de manhã, meio-dia, como se fosse remédio de branco. Não muito.
Já a casa da formiga é assim. Deixa panela fervendo no fogo e vai tirar a casa da formiga. Corta um pedaço e amassa na panela, junto com a formiga, porque o cheiro vai entrar. Diz o pajé que esse vírus tem medo do cheiro. Depois, se coa. Pode tomar como chá e para fazer um banho. Alivia a dor de garganta.
Durante a reza, o benzimento, ele faz essa formulação: chama o nome de tachi, carapanaúba, essas coisas amargas, e incorpora no nosso corpo. Medicamento dos brancos ninguém usou.
Como vocês descobriram quais remédios poderiam ser usados contra a Covid-19?
De acordo com o que a pessoa estava sentindo, ia receitando. Se está tendo uma friagenzinha, você prepara o carapanaúba. Esse a gente já usou contra malária. É bom remédio esse carapanaúba. Chegou a ir médico lá. Eu perguntei para ele por que o vírus tem nome e número. Ele falou que faz tempo que tem esse tipo de doença.
Você está aprendendo sobre os rituais de proteção e sobre os remédios tradicionais?
Os velhos escolhem o nome para ser o kumu ou para mestre de dança ou para pajé. Aí o meu avô finado ele escolheu para mim o nome para ser o kumu: Boku (em makuna, o u nessa palavra deve ser cortado) nome tradicional. Aí quem era esse Boku é o kumu, chefe da maloca que organizava, benzia, cuidava quando acontecia doença, contratempo. Faz certos cerimoniais, rito de iniciação, benze pós-parto, dá banho, benze cuia de caapi [alucinógeno feito com cipó] para ter mais visão.
Eu estou aprendendo todo finalzinho da tarde na roda de conversa, com meu pai e os mais velhos. Meu irmão Geraldo é agente de saúde, ele já trabalha com isso aí. Quando falta medicamento da medicina, se resolve com esse benzimento. Como pesquisador indígena também pesquiso história e benzimento. Eu quero ser um kumu também, como meus avós. Meu nome tradicional já indica.
***
Na comunidade de São Felipe, no Alto Tiquié, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), os indígenas realizam ritual de proteção contra a Covid-19. Abaixo estão alguns elementos utilizados durante essa cerimônia e que são benzidos pelo pajé. Algumas dessas substâncias os indígenas carregam consigo, garantindo proteção enquanto durar a pandemia. Veja algumas explicações dadas por Damião para esses elementos de proteção:
Pó feito com tabaco, o rapé é o primeiro a ser benzido. Pode ser usado contra gripes e vem sendo utilizado contra a Covid-19. Damião carrega o rapé onde vai, pois assim garante proteção. Esse rapé benzido pode ser utilizado enquanto durar a pandemia.
Caracolzinho onde fica guardado o rapé e o objeto de osso de macaco usado para cheirar o pó.
(Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA)
É uma planta trepadeira. Retira as folhas, cozinha bem até que fique vermelho. O preparado torna-se uma goma. É feita uma bolinha com essa goma, que é colocada para secar ao sol. Depois são tirados pedaços que devem ser triturados até virar pó. Esse pó é utilizado para as pinturas corporais. O vermelho do carajiru significa o sangue do corpo.
Corante vermelho carajiru vira pó para pinturas corporais. (Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA)
Faz defumação para todos os presentes cheirarem, colocando o breu branco (resina de árvore) em uma cuia com suporte. O cheiro do breu quando jogado do fogo é muito agradável. O pajé benze todos os presentes com essa defumação. A fumaça espalha o encantamento, evita certas doenças e contratempos, além de afastar cobra, onça e curupira.
Sikãta tem cheiro agradável que o coronavírus não gosta. (Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA)
Apanha as folhas, torra até ficar bem seco e depois soca no pilão. Mistura com cinza de folhas de embaúba secas queimadas. Mistura bem e coa. Ajuda o kumu, abrindo o pensamento, recebendo o conhecimento para o benzimento e a cerimônia.
Mistura da folha do padu e embaúba, usado na cerimônia de proteção. (Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA)
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