08 Outubro 2020
"Propaga-se a exaltação liberal do empresário de si mesmo, que enxerga o mundo com interesses comerciais e cultiva o ódio ao Estado. Procura-se, assim, apagar luta de classes. Terreno fértil para a ultradireita e o todos-contra-todos", escreve Otávio Augusto Cunha, doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 26-09-2020.
A pandemia da covid-19 veio à tona no início do ano de 2020 e, desde então, tem intensificado os graves problemas econômicos do capitalismo contemporâneo, principalmente nos países periféricos e dependentes, como o Brasil. A intensa desigualdade social, seguida do aumento exponencial do número de desempregados, demonstra que a dimensão da crise em que estamos inseridos é de caráter trágico para a classe trabalhadora. Segundo o IBGE, 12,4 milhões de brasileiros estavam desempregados na quarta semana de junho; 2,6 milhões a mais que o registrado na primeira semana de maio. Já no início do mês de setembro, o número de trabalhadores sem ocupação foi estimado em 12,8 milhões de brasileiros[1].
Contudo, mesmo no momento mais crítico desse início de século, o discurso capitalista e empresarial tenta negar sua responsabilidade pela tragédia social e busca impor sua agenda mercadológica como a solução dos problemas mais urgentes, principalmente da população mais pobre e mais atingida pelo caos social. Dessa forma, temos presenciado a propagação em massa da palavra empreendedorismo como sinônimo de solução, modernidade e progresso, principalmente no que diz respeito aos rumos da educação pública[2] e da formação de jovens. Mas, afinal, o que é o tal empreendedorismo?
Em primeiro lugar, vale afirmar que o que se propaga hoje como empreendedorismo não tem relação com o conceito schumpeteriano de “destruição criadora” [3] e nem no ato da inovação, pelo contrário, se encontra em uma posição muito mais simplista e contraditória do que o debate proposto entre o autor austríaco como materialismo histórico de Marx e Engels. Para compreendermos o que a ideologia capitalista e neoliberal propaga hoje como empreendedorismo, é necessário observar como a colaboração da chamada corrente austro-americana[4] (nas figuras de autores como von Mises e Hayek) é utilizada como base das concepções de ódio ao Estado e crença cega no funcionamento do mercado como sinônimo de liberdade e bem-estar. Como afirmam Dardot & Laval (2016), essa noção tem origem no esforço – principalmente – de von Mises em querer fazer “a ciência econômica repousar sobre uma teoria geral da ação humana, uma praxeologia”. De certa forma, é essa perspectiva que cria figuras como Murray Newton Rothbard[5] e sua ideia de um “anarcocapitalismo”, adorados pela extrema-direita defensora de uma verdadeira guerra contra o Estado e guiados por uma agenda ultraliberal e violenta, de características nitidamente neofascistas.
A diferença em relação ao liberalismo clássico dado por autores como von Mises e Hayek consiste em ver a concorrência no mercado como um verdadeiro processo de descoberta da informação, trata-se de uma certa atitude do sujeito que supera os outros na busca por novidades e lucros o tempo todo. O mercado é concebido, portanto, como necessário para a formação do sujeito econômico, essa é a novidade subjetiva presente nesses autores e o que vai moldar o conceito de empreendedorismo disseminado atualmente. Um dos principais divulgadores desse conceito que faz sucesso atualmente (contra o conceito schumpeteriano) e discípulo direto de von Mises é Israel Kirzner, que, entendendo o mercado não como lugar de troca, mas sim como espaço de formação dos sujeitos, afirma: “todo ator social é sempre empreendedor”. Dessa forma, o empreendedorismo se configura uma ética, forma de pensar e agir, de ser, uma forma de colocar-se no mundo.
Seguindo a linha de raciocínio, é possível notar que o empreendedor é o único ser social possível dentro da perspectiva mercadológica proposta. Segundo Kirzner, seguindo a aversão que von Mises demonstrava contra tudo que pudesse exercer algum controle à ação do mercado, trata-se de uma questão da escolha certa, feita pelo sujeito econômico que se formou dentro desse tipo de sociedade e aprendeu a melhor forma de extrair seus benefícios baseados nas suas ações práticas. É o que se chamou, dentro dessa tradição, de “democracia do consumidor” contra a “ditadura da presença do Estado”. Ou seja, o empreendedor na sociedade atual – imaginando o mercado como um processo de formação em si – não é mais o capitalista nem mesmo o inovador do conceito clássico de Schumpeter, que muda incessantemente o processo de produção através da sua “destruição criadora”, é um sujeito alienado dos problemas sociais e munido de um espírito estritamente comercial que está sempre atento às oportunidades de lucro graças às informações que eles têm e os outros não (Dardot & Laval, 2016).
Não é à toa que essa ideologia do empreendedorismo aparece em comunhão direta com o avanço conservador em todo o mundo, acompanhado da retórica do perigo comunista (através do marxismo cultural) do Estado e pela adesão irrestrita a uma agenda ultraliberal, mercadológica, que tem como objetivo a privatização total da vida e a transformação de todos os sujeitos em empresas de si mesmos, educados pelas leis do mercado e atentos a qualquer oportunidade de lucro. O sujeito, em uma jornada solitária e sem apoio de ninguém, a não ser a sua própria perspicácia mercadológica, deve ser, necessariamente, adepto da ordem e totalmente alienado quanto às contradições estruturais do capitalismo.
O interesse pelos escritos de von Mises, Hayek e seus discípulos (como Kirzner) se justifica atualmente pela estratégia de desinformação e fake news disseminada por uma extrema direita com valores cada mais medievais, que consiste basicamente na ideia de que tudo que é estatal seria sinônimo de comunismo, ditadura, corrupção e desvios éticos que não “existiriam” na completa – e irrestrita – liberdade de mercado na desejada “democracia do consumidor”. Essa dimensão do discurso neoliberal tem os grandes veículos de comunicação como agentes que desempenham papel fundamental de convencimento das consciências[6] de que esse é o único horizonte possível, não há alternativas. Essa ação está presente, também, nos programas desenvolvidos por APHE’s (aparelhos privados de hegemonia empresariais)[7] e suas propostas de políticas ao se relacionar diretamente com o Estado visando sua reestruturação empresarial.
A exaltação da lógica do empreendedorismo na sociedade atual busca afirmar que, ao exercer essa função, o sujeito está acima das relações das classes sociais. É um discurso perigoso, que se apoia no caráter funcional que esse tipo de exaltação tem para a manutenção da sociedade capitalista e de suas contradições estruturais e irreparáveis. Para os adeptos da solução através do “empreendedorismo”, não importa que se trate de um trabalhador assalariado ou de um capitalista, todos têm que ser educados para exercer a função empreendedora. Para isso, basta ter “força de vontade”, “determinação”, “flexibilidade”, “resiliência”, “proatividade”, “persistência”, “iniciativa” etc. Pois é o sujeito em sua singularidade o único responsável pelo seu sucesso ou o seu fracasso econômico. A ideologia de mercado, como sinônimo de eficiência em contrapartida à ineficiência da intervenção estatal, é vista como a “formadora” do sujeito econômico e empreendedor e, por isso, é a melhor forma de sociabilidade educadora e disciplinadora das ações individuais. Como afirmam Dardot & Laval (2016): “o processo de mercado constrói seu próprio sujeito. Ele é auto construtivo”.
Entretanto, o que percebemos dentro do contexto atual, e da propagação da lógica do empreendedorismo, é uma teoria completamente deslocada da realidade concreta dos sujeitos, da história e a da consequente luta de classes cotidiana. Do ponto de vista de uma análise realista e comprometida com a transformação da sociedade, não podemos identificar os “novos” empreendedores como sujeitos isolados e deslocados da realidade política em que estão inseridos, pelo contrário, esse conjunto de trabalhadores pauperizados são jogados à própria sorte[8] pelo discurso mercadológico do empreendedorismo quando passam a ser os únicos responsáveis por resolver os problemas sociais que os cercam. A flexibilização das relações de trabalho e a falsa sensação de liberdade precisam ser analisadas levando em conta sua articulação direta com os direcionamentos propostos por entidades internacionais, como o Banco Mundial[9], BID, FMI, uma vez que o ataque aos direitos trabalhistas e a retirada da proteção social aos trabalhadores (como seguro desemprego, seguro acidente, auxílio doença e a aposentadoria) é uma característica desse discurso neoliberal que dissemina a lógica empreendedora como solução.
Todavia, a ideologia empreendedora está presente em programas dos mais variados aparelhos privados de hegemonia de caráter empresarial (APHE’s) e tem ganhado cada vez mais espaço em políticas públicas e, dessa forma, redefinindo o papel do Estado, principalmente no que diz respeito ao acesso à educação e cultura em países dependentes como o Brasil. Com o falso discurso da “responsabilidade social empresarial”, o sujeito é convidado a se alienar dos problemas estruturais da sociedade para focar no desenvolvimento das suas competências mercadológicas para que possam, eles mesmos, criar suas oportunidades em um mercado de trabalhadores cada vez mais sem direitos sociais.
A centralidade dos problemas, como a desigualdade de renda e o desemprego, se desloca da esfera das questões econômicas para a esfera da vida privada de cada um. Com isso, é possível notar que a função prática da ideologia empreendedora na sociedade atual é de apagar os conflitos inerentes à contradição entre capital e trabalho e sua consequente luta de classes, e se mostrar como a solução dos problemas sociais de forma enganosa. Essa noção privatista e mercadológica, que tem o empreendedorismo como seu carro-chefe de atuação, está sendo disseminada pela narrativa empresarial diariamente, como é o caso do jornal “O Globo” em editorial recente[10], reafirmando a necessidade de impulsionar a lógica do empreendedorismo, inclusive por dentro do Estado, como solução para o Brasil enfrentar a atual crise econômica e social. A perspectiva de transformar todo e qualquer cidadão em um homem empresarial (DARDOT, P; LAVAL, C, 2016), ou seja, uma empresa de si mesmo, entende consequentemente o conhecimento e a educação como algo puramente técnico, ligado à gestão e ao controle de riscos que, portanto, seria o único conhecimento necessário para que se resolvam problemas graves da sociedade.
A tal solução empreendedora é, portanto, aquela que ensina, desde cedo, o sujeito a se virar sozinho, não depender de ninguém, se alienar politicamente e construir sua própria história de fracasso ou de sucesso. O empreendedor é o modelo a ser seguido. O homem de negócios seria o exemplo de sujeito high-tech, ou seja, antenado às novas tendências mundiais. Ignora-se completamente a brutal desigualdade social em que estamos inseridos. Ao reafirmar equívocos como a ideia de meritocracia, a face real do empreendedorismo é muito mais problema do que solução para os tempos futuros.
Por fim, vale reafirmar os objetivos da ideologia do empreendedorismo atualmente: o desejo de convencer a todos que estamos em uma sociedade sem contradições estruturais, na qual o Estado é a raiz de todos os problemas, o trabalhador precisa se transformar na sua própria empresa e é cruelmente responsabilizado pelo seu futuro. Essa ideologia cumpre a função social de intensificar as desigualdades, reafirmar o existente e consolidar a hegemonia empresarial e mercadológica sobre o conjunto da sociedade.
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
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[1] Fonte: IBGE.
[2] Stauffer, Anakeila de Barros (Org.) Hegemonia burguesa na educação pública: problematizações no curso TEMS (EPSJV/PRONERA) / Organização de Anakeila de Barros Stauffer, Caroline Bahniuk, Maria Cristina Vargas e Virgínia Fontes. – Rio de Janeiro: EPSJV, 2018.
[3] É necessário observar ainda que, apesar da ideia de empreendedorismo aparecer em obras anteriores ao século XX[iii], foi com Joseph Schumpeter (1934) que o conceito ganha uma categorização contundente com o objetivo de reafirmar os preceitos do liberalismo e do modo de produção capitalista como um todo.
[4] O adjetivo “austro-americano” designa aqui os economistas que imigraram para os Estados Unidos ou os norte-americanosquesealinharamàescolaaustríacamoderna,cujasduasfigurasteóricaseideológicasmaisimportantes são Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Além das teorias destes últimos, também é importante a colaboração dada por Israel Kirzner, discípulo direto de vonMises.
[5] Murray Newton Rothbard foi um economista heterodoxo norte-americano da Escola Austríaca e discípulo de von Mises. Historiador e filósofo político que ajudou a definir o conceito moderno de libertarianismo.
[6] Disponível aqui.
[7] Lúcia Neves (org.), A nova pedagogia da hegemonia. Estratégias do capital para educar o consenso, São Paulo, Xamã, 2005.
[8] O caso mais grave atualmente, sem dúvida, é o dos entregadores de aplicativos como Rappi ou Ifood. Totalmente precarizados não tem nenhum direito e nenhum tipo de vínculo empregatício.
[9] O Banco Mundial, além de volumosos empréstimos, também fornece aconselhamento e assistência técnica a Estados e municípios, bem como pesquisa econômica sobre o desenvolvimento capitalista.
[10] “A chance de reerguer o país e evitar uma repetição de erros”, editorial. Jornal O Globo, 13/04/2020.
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Sujeito empreendedor, alienado e servil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU