20 Mai 2019
“Se conseguirmos ajudar o povo a se reinspirar, a usar a reflexão, a aprender a nos apreciar, acredito que nesse caso meus olhos podem ir em paz porque já terão visto a salvação”, afirma dom Carlos.
Nesta terceira parte de nossa entrevista, o novo arcebispo de Lima, Carlos Castillo Mattasoglio (Lima, 1950), apresenta sua visão para a Igreja local, que passa por virar a página do estilo religioso “acobertador, indiferente e vazio” que prevaleceu no país e dar espaço à autenticidade do Evangelho.
A entrevista é de César Luis Caro, publicada por Religión Digital, 16-05-2019. A tradução é do Cepat.
Depois também porque não é justo, não se pode digamos avaliar todas as etapas da vida de uma pessoa só a partir do momento presente e com a sensibilidade presente.
Claro.
Isso é uma armadilha.
Eu também não gostaria de colocar um clichê nas pessoas que aparecem como combatendo, às vezes ferozmente, mas, sim, quero dizer que parece (sem lhes colocar um clichê) que estão no caminho da esterilidade. E acredito que Francisco segue, ao contrário, o caminho da fecundidade, isso está claríssimo.
Eu também acredito nisso.
E por isso, então, a irreversibilidade não depende tanto do maior poder que a constituição de uma alternativa fecunda possua, mas, ao contrário, depende da própria fecundidade dos que avançam. E para mim isso sim parece excelente. O Papa tem uma impressionante confiança que continuando a pregação, o anúncio do Evangelho, e as simples tentativas de dar testemunho dele, isso...
Isso irá dar fruto, irá gerar...
E aí minha última palavra. Foi o que eu também disse na missa de outro dia no Colégio de Jesus. Um amigo, Luis Alberto Gómez Sousa, um grande leigo brasileiro, um dos que fundou a Teologia da Libertação, disse, retomando Fernand Braudel, que há épocas de crise de 20 anos, crise de 40, de crise de 100, que são as revoluções. Realmente, podem ser conhecidas como golpes de Estado, mudanças de escolhas, ou mudanças de rumo no palácio... Revoluções... e, depois, existem as grandes crises. E eu mencionei, na pregação que fiz quando você esteve, a crise de 400 anos, ou de 600, que foi a de Jesus, que é uma dessas.
Quando matam Zorobabel que é o último rei de Israel (depois do exílio, durante o início do período persa), colocam em seu lugar os sacerdotes, pelo que parece por meio de um golpe de estado. Expulsam a cora e os profetas da base da sociedade. E este grupo, famílias de profetas e reis, acompanham o povo durante seis séculos, confiados à base da sociedade. São reis e profetas no meio do povo, que discernem o que acontece em todo o processo humano social e religioso, que dirigido a partir da cúpula da sociedade era de domínio sacerdotal até a época de Jesus. Seis séculos. E o que fizeram foi uma meditação profunda do sentido da entrega da vida que Zorobabel havia feito, como rei servidor da conversão do reinado aos pobres.
Zorobabel morre assassinado. As hipóteses mais prováveis, com documentos que são buscados na Bíblia e nos livros extrabíblicos, é que o mataram entre o santo dos santos e o altar, junto a Zacarias (coisas referidas por Jesus em Mt 23,35). E foram mortos por Josué, que é o sacerdote que sobe ao poder. Este grupo de profetas e reis defenestrados, que é denominado justos de Israel, e que agora tecnicamente se conhece como “henoquita”, medita cada situação em que os sacerdotes usavam a Deus para legitimar seu poder. E eles escrevem livros criticando os sacerdotes, por isso todos os livros estão escritos em linguagem apocalíptica, para não ser identificados. Mas, há claras referências.
O ponto essencial é a teologia: “só Deus salva”, “não nos salvamos por méritos, mas, sim, pela graça”, “Tu és um Deus, um Deus escondido que se revela a partir do escondido”, “és o filho do homem” que se manifestou com um juízo em favor dos pobres”. Esse é o denominador comum deste grupo.
Nesse grupo, nasce Jesus que, além do mais, recebe uma espécie de contribuição sacerdotal porque os sacerdotes têm uma ruptura, depois dos Macabeus, no período asmoneu, em que os asmoneus permanecem com uma só família sacerdotal, os saduceus, que expulsam o resto das famílias sacerdotais e estas também passam para a base da sociedade... Aí se encontram com os henoquitas, e daí vem a famosa palavra “Melquisedec”; “Melq” = rei, e Sedec = sacerdote. Já nessa época estão unidos como orientações confluentes.
Jesus nasce nesse ambiente, como João Batista também, mas Batista é sacerdote e Jesus vem de reis. Eu digo: se esses duraram seis séculos, quer dizer que é necessário mudar a história, mas é necessário ter amplíssima paciência. E se acumulam no presente fatos que foram ocultados séculos antes. Então, trata-se de uma mudança de época. E quanto mais longa é uma mudança de época, o tipo de mudança também é mais espiritual. Por isso, Jesus está resolvendo um problema de sua época. Por isso, os estudos históricos de Jesus são muito interessantes. Contudo, caso se limitem ao presente de Jesus, fica esquecido todo o drama que há antes, e que é o que precisa ser resolvido ou ao menos enfrentado, mesmo que pareça algo sem importância. É o imediato carregado de história.
E do que vem antes.
Não se detecta bem que Jesus não é um aerólito; vem de uma tradição longuíssima. Vem para resolver um problema histórico de séculos. E no Peru, ao menos, também está ocorrendo algo assim.
É uma mudança de época.
Sim, e as mudanças de época são resolvidas com grandes intuições espirituais. E o melhor é que quando se formula com profundidade e certa simplicidade, vai se formando um sentir comum e... todo mundo sente o mesmo!
Sobe como a espuma.
Claro. Não enxergamos isso porque é difícil ver, mas é o que veremos logo.
Veremos.
Sim, porque há sinais todas as vezes que ocorre algo. Por exemplo, agora no Peru: “Corrupção”..., e em um breve espaço de tempo...
Vai todo mundo para a rua.
“Ni una menos” e todas as pessoas aí.
Não resta dúvida. Está muito claro.
E o mesmo acontece com o futebol. Com as procissões, também. Eu acredito que assim começam outras coisas, as pessoas irão responder. Esse sentir comum, se é canalizado pela comunidade eclesial com paciência, com cultivo e recolhendo o melhor dos anos vividos em situações adversas, acredito que conseguiríamos nos conectar com a capacidade da humanidade em poder se refazer de grandes problemas. Estamos próximos disso.
O que acontece é que não sabemos por onde deflagra. Mas, estou convencido. E o Peru acredito que seja um dos lugares onde será gerado um despertar de conversão que pode nos surpreender. Trata-se de muito tempo suportando problemas sem resolução. Nossa corrupção vem desde o século XVII, e já não dá mais este estéril modo de viver. E a isso tem correspondido um certo estilo religioso acobertador, indiferente e vazio, que durou por costume, porque se originou para esconder, mas que hoje confrontado com o Evangelho, que declara e exalta a partir da Cruz, não dá mais e abre passagem à autenticidade.
Sim. Irá acontecer.
Sim, porque o Peru é enormemente religioso. Há anos, com um amigo em uma plenária que tivemos com Gustavo, dizíamos que no Peru a revolução será religiosa ou não será. Dizíamos isso porque no Peru a religião é o pão de cada dia. A estruturação do país, que é todo quebrado geograficamente, cheio de altíssimas montanhas e de baixíssimos vales, é somente a ideia da referência para poder subsistir.
As colinas.
As colinas, o céu. É um país telúrico. É a massa da terra quebrada, ferida. Antes se dizia que não havia um Peru, mas muitos Perus. Porque está espalhado. Para se entrar em acordo no Peru é muito difícil, mas é possível se conseguirmos nos apreciar e fazer intercâmbios. E esse tecido é o que o mundo tem agora. As pessoas se desprezam: “você é venezuelano, e então fora”... não pode ser. Se eles nos recebem com tanto carinho em seu país, nós não podemos deixar de recebê-los no nosso. Simplesmente por agradecimento.
Eu sinto que meu ministério está localizado nesta época que me parece possuir as características de uma época axial e requer que em pouco tempo façamos coisas mínimas, mas que moldam a capacidade de esperar essa época. Se o detonador chegar antes, genial. Se chega depois, não importa. O que importa é que as bases estejam claras. Estamos em um problema grave, histórico. Mas, além disso, é um problema que abre dimensões extraordinárias sobre como podemos inventar uma nova maneira de viver por inspiração. Não podemos construí-la com nossas ideias pré-fabricadas.
Uma inspiração que, se conseguirmos ajudar o povo a se reinspirar, a usar a reflexão, a aprender a nos apreciar, acredito que nesse caso meus olhos podem ir em paz porque já terão visto a salvação.
Se conseguirmos um pouquinho, nesses anos, para avivar isso, estaria feliz por ter cumprido minha missão, porque sei que depois disso as pessoas continuarão fazendo mais ou menos coisas. E nisso sim, manifesto com toda a clareza: os 20 anos que passaram foram um enorme retiro, positivamente. Quem quiser falar de coisas negativas, que fale, mas para mim foram 20 anos de retiro, em que estabelecemos raízes e nos aprofundamos, assim como fizeram os henoquitas.
Olha, o grupo de diocesanos e todas as dioceses ao redor de Lima seremos como uns 30, mas como guerreiros e robustos. Ou seja, os padres que eram “meninotes” (garotinhos) há 20 anos, hoje são robustos sacerdotes que tem muito a dizer às pessoas. Eu sou somente mais um, que segue pertencendo a esse grupo. Além disso, sou o último a chegar a ter paróquia, pois enquanto eu fazia pastoral universitária e juvenil, eles já eram párocos. E quando o cardeal me fez pároco, eles me ensinaram a ser pároco. Então, também me aferrei com eles, ainda que não tanto como eles, porque estavam há mais tempo. Mas, misturei mais coisas.
E se agora o Senhor e o Papa me deram essa responsabilidade e esta missão, acolho. E gostaria, então, de fazer o possível para transparecer a vontade de Deus nesse tempo. Tomara que possamos fazer isso.
E aí sim peço a você, peço a todos que rezem por mim, assim como é preciso rezar pelo Papa para que siga em sua coragem, cheia de esperança e alegria. Há pouco, dizia a ele em uma carta: Agora, uno-me a sua coragem, não pensei que estaríamos na mesma luta, desta maneira. Sabia que estávamos como padres, mas não desta maneira. Eu o agradeço muito, e acredito que também possuo uma série de limites. É um desafio poder ampliar o espectro da compreensão e da experiência das coisas, porque não é tão fácil, aos 69 anos, empreender o caminho de ampliar a perspectiva. Mas, se o Senhor nos dá o Espírito, acredito que será possível.
Acredito que sim. Muito obrigado. Eu também lhe desejo isso.
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“No Peru, a revolução será religiosa ou não será”. Entrevista com dom Carlos Castillo Mattasoglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU