10 Abril 2018
Compreender as contradições de Lula e do PT no poder é mais importante e urgente para o país do que construir um mito.
A reportagem é de Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, publicada por El País, 09-04-2018.
“Eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia.” A frase do discurso de Luiz Inácio Lula da Silva antes da prisão, no palanque do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, já se tornou célebre, como estava programado. Mas o símbolo deste momento para a história não foi o discurso, e sim a imagem feita de cima, em que aquele que acabara de se lançar não como candidato, mas como lenda, parece se transubstanciar na multidão: “Esse país tem milhões e milhões de Lulas”.
A vida lembra o mito, dia após dia, que ele é humano. Demasiado humano. E isso é perigoso para um mito. Consciente desse risco, Getúlio Vargas (1882-1954) se suicidou tendo o cuidado de deixar uma carta-testamento impecável para a história, num último lance de genialidade política. O “Pai dos Pobres” do Brasil do século 20 sabia que a vida atrapalhava a lenda.
Lula acredita que pode ser mito em vida, o corpo preso na cela da Polícia Federal da República de Curitiba, como uma morte simbólica, enquanto o mito atravessa o corpo da multidão. Foi nesse sentido os melhores esforços de Lula desde que a prisão se tornou uma possibilidade cada vez mais certa e mais próxima. As frases foram muitas nas últimas semanas, a mais messiânica esta aqui: “Eles estão lidando com um ser humano diferente, porque eu não sou eu, eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês”.
O fato de que aquela que já se tornou a imagem histórica do momento ter sido a foto feita de cima não é um dado qualquer. De cima há mito. De baixo, nos interiores da multidão, há realidades e sentimentos mais humanos. Mas a foto já marca um ponto, mostrando que de política Lula entende bem mais do que Sérgio Moro, que apostava na foto de Lula preso, vencido pela Operação Lava Jato. E terá que lidar com a foto de um mito nos braços do povo. Não é um peso qualquer para um homem tão vaidoso quanto Moro, que também aspira a um lugar bonito na história. E ninguém quer o lugar de um Carlos Lacerda.
A história, porém, é um ponto de interrogação, porque o passado é construído no futuro. E nada parece mais incerto do que o futuro no Brasil. A memória de Lula ainda está em disputa.
O futuro é imprevisto também na forma como a memória será construída no mundo que virá. Ainda não somos capazes de compreender como a internet repercute e muda o que chamamos de memória. O futuro do Lula histórico não será determinado pelos livros de história escritos por acadêmicos ou biografias feitas por jornalistas – ou pelo menos não só por eles – como aconteceu com Vargas e outros ícones da trajetória do Brasil. E isso já é um dado novo deste momento. Só saberemos mais adiante se um mártir de esquerda na cadeia tem a força que teve no futuro do passado, quando a internet não estava posta na construção das narrativas.
Lula está preso, não morto. Lula ainda está no jogo do presente.
7 de Abril de 2018 é talvez o dia mais triste da história recente. Para Lula, o humano, e para todos os brasileiros. Qualquer pessoa que não teve seus neurônios infectados pelo ódio – e uma das características do ódio é ser burro – é capaz de perceber a gravidade representada por um político que encarnava o projeto de pelo menos duas gerações de brasileiros, um projeto que de forma nenhuma pertencia apenas a ele, ser acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. E ser preso por isso sem provas convincentes no momento em que está em primeiro lugar nas pesquisas para a eleição de 2018.
Qualquer brasileiro sério é capaz de perceber o abismo que isso representa para o Brasil. A dureza desse momento não para Lula, mas para o que chamamos “nós”, o que de fato não existe, ou só existe em alguns momentos de síntese.
As panelas batendo com fúria nas janelas dos bairros “nobres” de São Paulo é o som da nossa vergonha como país. A de que as pessoas que tiveram o privilégio de estudar, num Brasil tão desigual, sejam incapazes de compreender a gravidade do momento histórico. Esse ódio mascarado de alegria é o rosto contorcido de uma distorção. Esse ódio mascarado de alegria é obsceno.
Mas estas são as pessoas do alto, as pessoas que podem olhar e interferir no mundo sem sair da janelinha. O fato de que batam panelas nos edifícios, em vez de irem às ruas lutar pelo Estado de Direito, num país tomado pelo Cotidiano de Exceção, é a expressão do fracasso do projeto de conciliação que Lula representou na prática, embora não tenha sido este o projeto que muitos que o elegeram acreditavam.
Perdemos muito no 7 de abril de 2018. Perdemos bem mais do que de 7X1. A forma como correu o processo de Lula, muito mais rápido do que a maioria, instalou dúvidas sobre a justiça. O julgamento do habeas corpus de Lula pelo Supremo Tribunal Federal, votando um caso particular em vez de decidir sobre a prisão após a segunda instância, instalou dúvidas sobre a justiça. A clara cisão do STF durante o julgamento instalou dúvidas sobre a justiça. A rapidez com que Sérgio Moro decretou a prisão instalou dúvidas sobre a justiça.
As instituições fracassaram. Não para os interesses privados de alguns, mas para o que deveriam representar para o conjunto dos brasileiros, o que deveriam ser para além do “sentimento social”. O STF, afogado em vaidades e convertido em palanque, se apequenou (um pouco mais). A maldição do protagonismo sem formação política, uma das mazelas dos dias atuais que atinge também juízes e procuradores, encolheu ainda mais a sensação de justiça. E tudo o que o Brasil não precisava neste momento tão delicado era de mais dúvidas sobre a justiça.
A intervenção do general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército Brasileiro, na véspera do julgamento do habeas corpus no Supremo, foi uma afronta à democracia. Mas como o governo que aí está já é uma afronta à democracia em sua própria existência, o general não recebeu nenhuma punição. Como o governo que aí está é resultado de um impeachment sem fundamento legal, da deposição de uma presidente ruim, mas legitimamente eleita, o general continua na ativa, ativíssimo. Como o governo é encabeçado por um presidente, Michel Temer (PMDB), atolado em denúncias de corrupção, rodeado por um ministério que em parte é uma quadrilha, outros militares já proclamaram ameaças à democracia e nada aconteceu com eles. Entre todas as transformações trazidas pelas redes sociais, ninguém imaginou que agora o Brasil seria assombrado também por “generais de Twitter”.
Ao se manifestar pelo Twitter na véspera do julgamento de um ex-presidente pela Suprema Corte, o general afirmou: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
Sim, general, brasileiros como eu reivindicam há décadas que os militares e os agentes civis que assassinaram, sequestraram e torturaram milhares de pessoas no Brasil, inclusive crianças, a serviço do Estado e durante uma ditadura que durou 21 anos sejam investigados, denunciados, julgados e responsabilizados. Eu e muitos repudiamos a impunidade dos assassinos, sequestradores e torturadores do regime de exceção que se instalou quando os militares colocaram seus tanques nas ruas, apoiados por parte da sociedade civil.
Tenho escrito neste espaço que parte da corrosão da atual democracia se deve ao fato de que o Brasil não fez memória sobre a ditadura. E só se faz memória com responsabilização. Com assassinos, sequestradores e torturadores de farda ou à paisana circulando livremente pelas ruas, o país entende que a vida humana vale muito pouco. E este é um dado histórico do Brasil, país fundado sobre os corpos de indígenas e de negros, que a impunidade dos criminosos do regime acentuou, com as consequências que aí estão.
Assim, já passou há muito da hora de acabar com a impunidade dos agentes do Estado que assassinaram, torturaram e sequestraram. Mas, em vez disso, o senhor, general, que acabou de repudiar a impunidade no Twitter, pediu uma espécie de anistia prévia aos militares que hoje participam da intervenção federal no Rio de Janeiro, para que não sejam responsabilizados quando matarem civis: “Os militares precisam ter garantia para não enfrentar daqui a 30 anos uma nova Comissão da Verdade pelo que vamos enfrentar no Rio durante a intervenção”.
Assim, general, nosso conceito de “cidadão de bem” é diferente. Cidadão de bem não mata, não tortura e não sequestra. E cidadão de bem não defende a impunidade de assassinos, torturadores e sequestradores, tenham eles fardas ou não, estejam a serviço do Estado ou não. E cidadãos de bem não botam uma baioneta no pescoço do Supremo Tribunal Federal.
O senhor é um funcionário público, pago pelo povo brasileiro, e a Constituição afirma que sua intervenção foi indevida.
Se a vida que segue pode atrapalhar Lula no seu propósito de virar lenda, o mito que Lula quer se tornar atrapalha a vida dos brasileiros.
Lula controlou a iconografia da sua prisão. Ao fazê-lo, as contradições do Lula humano foram apagadas pelo Lula mito. Seus oponentes podem ter conseguido impedi-lo de ser candidato nas eleições de 2018, pleito em que ele lidera nas pesquisas de intenção de voto. Mas não conseguiram fazer com que isso soasse como justiça para uma parcela significativa da população, acentuando a crise do país e interditando ainda mais a possibilidade de debater, com a seriedade necessária, o múltiplo e contraditório legado de Lula.
É claro que há uma parcela que bate panelas e veste a camiseta da seleção, mas há muitos que não. E mesmo críticos aos governos de Lula e de Dilma Rousseff sentiram-se enojados pela forma como o processo foi conduzido pelas instituições.
Sem compreender as contradições de Lula no poder (e de Dilma Rousseff, sua escolhida, logo em seguida), torna-se difícil construir um novo projeto de esquerda capaz de aglutinar uma parte do Brasil. E mesmo a direita, pelo menos a séria, deveria desejar que existisse um novo projeto de esquerda, porque para a democracia esse diálogo é essencial.
O Brasil governado por Lula teve aumento real de salário mínimo, teve redução significativa da miséria, teve ampliação do acesso à universidade, teve melhorias importantes no Sistema Único de Saúde (SUS), teve cotas raciais (uma ação afirmativa ainda tímida, mas essencial), teve garantia de crédito para os mais pobres. Isso não é pouco. Não é mesmo. E se fará sentir no Brasil por muitas décadas. As principais vozes de resistência das periferias urbanas hoje nasceram dessa experiência e desse acesso a mundos até então barrados.
A realidade de um operário ocupando o poder pelo voto num país como o Brasil teve um impacto na vida dos brasileiros que não há como dimensionar com exatidão, porque em grande parte subjetivo, mas que é uma enormidade. E isso Lula fez – e ninguém pode tirar dele.
Mas o Brasil governado por Lula, principalmente após o segundo mandato, e levado adiante por Dilma Rousseff, sua escolhida, aliou-se ao que havia de pior nas oligarquias brasileiras, de José Sarney aos ruralistas, enfraqueceu os movimentos sociais, capitulou diante de questões como a descriminalização do aborto e a legalização das drogas, avançou pouco (no caso de Dilma quase nada, e às vezes retrocedeu) na regularização fundiária e na demarcação de terras indígenas e unidades de conservação, acentuou o aumento da população carcerária em condições torturantes, ao manter a política falida de “guerra às drogas”, criminalizou manifestantes e manifestações e, por fim, fez as grandes hidrelétricas na Amazônia – Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, e Belo Monte, no Xingu, desencadeando processos de graves violações aos direitos humanos e agravando o desmatamento da floresta e a contaminação dos grandes rios amazônicos.
E, importante: em seu projeto de conciliação, Lula não tocou na renda dos mais ricos.
A visão de Lula para a Amazônia mostrou-se muito semelhante à da ditadura civil-militar (1964-1985). É uma visão colonizadora e exploradora. E provocou uma grande destruição, ainda em curso, dos povos da floresta, os humanos e os não humanos.
Lula é um homem plantado no século 20 e parece só conseguir enxergar o mundo em termos de capital-trabalho. Revelou-se incapaz de compreender outras formas de viver que não fossem as mediadas pelo emprego, nem outro conceito de felicidade que não fosse ter churrasco no fim de semana, cerveja na geladeira e um carro na garagem.
Como homem do ABC Paulista, muito mais do que menino do semiárido nordestino, até nos últimos discursos ele defendia os carros nas ruas em vez de transporte público coletivo e de qualidade. Seu governo e especialmente o de Dilma Rousseff calaram as vozes da floresta e os modos de viver da floresta, silenciando o que havia de mais original nos Brasis. Lula foi avisado disso, mas nunca foi capaz de escutar – ou nunca lhe foi conveniente escutar.
Há vários Lulas. E há inclusive o líder absoluto do partido que se corrompeu no poder como outros partidos que o antecederam. O que não é de forma alguma um dado qualquer, porque o PT foi apoiado por pelo menos duas gerações de brasileiros por ter se comprometido a levar ética à política. Lula elegeu-se dizendo que sabia que não podia errar. E errou. E muito.
Com o Direito sem Justiça que marcou a sua prisão, as contradições são apagadas no esforço do mito. E as contradições não devem e não podem ser apagadas. Não por uma questão de vingança, como tanto querem alguns oportunistas, mas porque é urgente recriar um projeto para o país. E não se cria um projeto sem acolher todas as complexidades de uma experiência tão importante quanto foi a do PT no poder.
No caso de Lula, o Brasil está submetido aos afetos. Quem odeia Lula, como encarnação de todos os males, só enxerga uma parte. E quem ama Lula, também como ato desesperado para não se ver diante das ruínas de um projeto tão caro, se mostra incapaz de ver a outra parte. É chocante ler análises da esquerda que acham possível escrever sobre o momento negando a corrupção evidente do PT no poder. E ignorando o que Belo Monte causou na vida justamente dos mais desamparados. Assim como é chocante ver Lula demonizado por gente que se beneficiou enormemente com o seu governo, um governo que não deixou apenas os pobres menos pobres, mas os ricos mais ricos.
Com a sensação de que a prisão foi uma injustiça, a cisão entre os Lulas continua. E se torna cada vez mais difícil juntar todas as partes do quebra-cabeça dessa experiência de poder, inclusive e especialmente suas contradições. Sem contar que, para parte da esquerda, tanto a que se sentiu muito traída quanto a que começava tardiamente a se sentir constrangida, a criação de um mártir pode ser o melhor acontecimento. Assim, as perguntas difíceis, que são as mais importantes, ficam adiadas para talvez nunca mais. Tanto as que cada um deve fazer a si mesmo, como exercício interno, quanto as que devem ser feitas e debatidas em público, na expressão coletiva.
Esse constante adiamento das perguntas difíceis é mais uma tragédia num país que vive aos espasmos desde 2013. Sem as perguntas difíceis, o Brasil continuará girando em falso. Pode ser bom para o mito Lula, assim como para outros candidatos a mito e seus egos gigantescos, mas é ruim para o Brasil e para os brasileiros.
Eu acreditaria em justiça no Brasil se, primeiro, os agentes do Estado que assassinaram, sequestraram e torturaram durante a ditadura civil-militar fossem julgados e punidos. Eu acreditaria em justiça no Brasil se todos os aqueles que são responsáveis pelo genocídio cotidiano dos jovens negros nas periferias urbanas, policiais e não policiais, fossem julgados e punidos. Eu acreditaria em justiça no Brasil se os assassinos de Marielle Franco e Anderson Gomes fossem denunciados, julgados e punidos. Eu acreditaria em justiça no Brasil se todos os mandantes e pistoleiros que executaram ambientalistas, defensores de direitos humanos, pequenos agricultores, indígenas, ribeirinhos e quilombolas na Amazônia fossem investigados, denunciados, julgados e punidos.
Eu acreditaria em justiça no Brasil se todos os presos sem condenação no sistema penitenciário fossem libertados e o Estado pagasse indenização pelo período que ficaram encarcerados sem julgamento. Eu acreditaria em justiça no Brasil se todos as mulheres presas por aborto fossem libertadas. Eu acreditaria em justiça no Brasil se ninguém mais fosse preso por portar quantidades pequenas de drogas nas favelas e periferias e as ações se concentrassem em quem realmente lucra com o mercado ilegal de drogas e de armas.
Eu acreditaria em justiça no Brasil se todos os corruptos, de todos os partidos, a começar pelos que estão hoje no Executivo e no Congresso, fossem julgados e presos. Eu acreditaria em justiça no Brasil se todos os corruptos da iniciativa privada fossem julgados e presos, assim como aqueles empresários que colaboraram com o assassinato, a tortura e o sequestro de pessoas na ditadura-civil militar.
Eu acreditaria em justiça no Brasil se a ministra Rosa Weber fosse criticada por ter suspendido por liminar, quatro dias antes do Natal, os efeitos expansivos da proibição do amianto no Brasil. A justificativa da ministra era de que seria necessário esperar o prazo para os advogados apresentarem embargos de declaração contra o entendimento do plenário, que estendeu a proibição da fibra cancerígena para todo o Brasil. Ela, que tanto defende a decisão do colegiado, tomou uma decisão monocrática. Enquanto isso, o amianto, que tem matado milhares de brasileiros há décadas e é proibido na Europa e em vários países do mundo, segue sendo produzido e comercializado nos estados em que não é proibido: a maioria.
Eu acreditaria em justiça no Brasil se os brasileiros cobrassem de Lula e de Dilma Rousseff por que razão nunca levaram adiante o banimento do amianto, que matou e adoeceu – e segue matando e adoecendo até hoje – trabalhadores pobres da indústria, trabalhadores cuja vida pelo menos Lula deveria conhecer.
Eu acreditaria em justiça no Brasil se Lula e Dilma Rousseff fossem responsabilizados pela violação de direitos humanos e não humanos na floresta amazônica, e especialmente na construção de Belo Monte. E eu acreditaria ainda mais em justiça no Brasil se os brasileiros se importassem com isso.
Eu desejaria que Lula fosse candidato a presidente e que fosse derrotado nas urnas pelo que fez no Xingu e em outros rios amazônicos. Pela Força Nacional enviada pela sua escolhida, Dilma Rousseff, para reprimir operários em greve no canteiro de obras de Belo Monte. Pela Força Nacional impedindo o direito de manifestação de indígenas e ribeirinhos no canteiro de obras de Belo Monte. Pelos ribeirinhos e pequenos agricultores e pobres urbanos que assinaram com o dedo papéis que não eram capazes de ler para que Belo Monte pudesse ser construída sem “entraves” humanos. Pelo etnocídio indígena na região do Xingu causado por Belo Monte. Eu acreditaria em justiça no Brasil se Lula fosse derrotado por ter materializado Belo Monte no Xingu e, com isso, ter produzido pobres na periferia de Altamira.
Se isso acontecesse, uma derrota pelo voto em nome dos direitos humanos e dos direitos dos povos da floresta, o Brasil avançaria. Mas isso não acontece no Brasil atual.
Ainda assim eu desejaria que Lula fosse candidato e disputasse a eleição no processo democrático. E possivelmente ele venceria, pela simples razão, que também é legítima, de que a maioria começa a concluir que a vida estava melhor no seu governo. E os brasileiros são sobreviventes – e muito pragmáticos.
Mas eu desejaria também que Lula fosse candidato e fosse eleito para que as pessoas tivessem que lidar com o fato de que pouco se importam com a corrupção desde que sua vida esteja razoável. Mas principalmente eu desejaria que Lula fosse candidato para que as pessoas sejam obrigadas a lidar com o fato de terem votado e talvez eleito o presidente que tornou Belo Monte possível. E assim tivessem que lidar com a sua hipocrisia cheia de verbos e de boas intenções, protegidas pela distância dos que morrem de várias maneiras no Xingu e nas Amazônias. E tivessem que lidar com o fato de que sua preocupação com os direitos humanos é seletiva.
Mas o Direito sem Justiça interditou o processo dos desejos.
A mística que antecedeu a prisão – missa + discurso – foi cuidadosamente planejada para que Lula voltasse a ser o Lula que já não é. O Lula que liderou as greves do ABC Paulista, fundou o PT e fez as Caravanas da Cidadania. A linguagem, os gestos, o conteúdo. Mas o que já não é não pode voltar a ser.
Há, entre um Lula e o outro, pelo menos oito anos de poder direto, como presidente, mais os cinco anos e meio de Dilma Rousseff, sem contar a Carta ao Povo Brasileiro, na eleição de 2002. O discurso soava, como tem soado há algum tempo, uma imitação do Lula jovem feita pelo Lula velho.
Mas num mundo já diferente. Como algumas bobagens sobre as mulheres que se tornaram constrangedoras, os habituais jogos para a torcida e uma espécie de conversão em Jesus. Esse Lula era, já não é. O que não impede que esse discurso ainda mova – e comova – muita gente que gostaria que ele ainda fosse o que já não pode ser.
Neste sentido, o de Lula foi um discurso mais de apagamentos, o que é fundamental para quem pretendia sair dali como mito, do que de construções. Por isso também a foto se tornou muito mais importante. O domingo passou com várias mensagens de WhatsApp: “Essa foto é a foto oficial que Lula enviou e pede que seja a mais disseminada por todos. Eles terão a foto que tanto querem, Lula preso terá o povo”. Não há como afirmar se foi “Lula que enviou”, mas é possível afirmar que ele sempre foi um bom biógrafo de si mesmo. Não deixa de ser fascinante essa construção de mitologia em vida.
Para efeitos imediatos, o ato mais importante do discurso foi o gesto de lançar, simbolicamente, Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela D'Ávila (PCdoB) como seus herdeiros, pregando a união das esquerdas neste momento limite. Ambos são pré-candidatos à presidência nas eleições de 2018. Boulos representa uma das forças mais potentes deste momento, os movimentos de sem-teto nas cidades, que de certo modo ocupam o lugar que foi do MST na trajetória de Lula. Manuela carrega a potência dos novos feminismos, mostrando na vivência da política também uma experiência diversa de maternidade. São as duas figuras mais interessantes da nova política.
O gesto marca também o abismo do PT. Em grande parte por causa da onipresença de Lula, não há ninguém no próprio partido com força suficiente para representar o futuro e liderar uma aliança de esquerda. Lula não fez seu Lula dentro do PT. Nem permitiu que fizessem.
Mas o gesto foi bonito – e se há uma cena com grandeza neste momento, é a de Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila juntos. Ainda falta se mostrarem capazes de compor de fato com a floresta e os outros modos de viver dos Brasis.
Compreender o homem que Lula é, assim como a experiência do PT no poder, é mais importante e urgente para o país do que construir um mito. Sem acolher as contradições, o Brasil seguirá com “um enorme passado pela frente”, apesar de tudo o que representou a chegada de um operário ao poder.
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Lula, o humano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU