17 Março 2018
"O método de trabalho adotado na Conferência possibilitou uma recepção do Concílio Vaticano II fiel, mas crítica e, ao mesmo tempo, criativa", escreve Frei Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP) e professor aposentado de Filosofia (UFG).
A II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín adotou e vivenciou o método (caminho) de trabalho “ver-julgar-agir” (“analisar-interpretar-libertar”) e “celebrar”. Para fazer algumas reflexões sobre esse método - a 2ª gota” - sirvo-me ainda das informações do historiador e teólogo José Oscar Beozzo.
Em Medellín, o primeiro passo “foi sempre o estudo atento da realidade tanto econômica, política e social, quanto eclesial do Continente latino americano e caribenho” (ver, analisar).
O segundo passo “consistiu em identificar as interpelações que brotavam da realidade, analisando-as à luz da palavra de Deus, do Vaticano II, do magistério e da experiência de toda a Igreja” (julgar, interpretar).
O terceiro passo - talvez o mais importante - “foi o de propor pistas de ação pastoral, visando transformar, no sentido do Reino de Deus e da libertação dos pobres, a realidade atravessada por estruturas de pecado e pelo clamor e esperança dos pequenos” (agir, libertar).
Para o estudo da realidade, Medellín contou com as contribuições das 8 Conferências preparatórias, com a assessoria do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS), “encarregado de oferecer aos participantes os dados sócio religiosos do Continente e uma análise da sua significação para a pastoral”.
Nas Comissões, o trabalho em grupos “permitiu cruzar a experiência pessoal dos participantes com os dados apresentados, colocar em comum a visão dos bispos com a prática de leigos e leigas, religiosos e religiosas, peritos e teólogos, párocos e observadores não católicos”.
A dinâmica dos trabalhos “previa que os textos elaborados nas Comissões fossem submetidos ao Plenário para sugestões e modificações. Uma vez incorporadas estas sugestões e modificações, deviam ser confiados a uma Comissão de redação, encarregada de sintetizar e fundir os textos das 16 Comissões num único Documento final. A falta de tempo e também a convicção de que a síntese faria perder muito da riqueza dos textos das Comissões, levou à feliz decisão de transformar nas Conclusões da II Conferência a contribuição de cada uma das Comissões, depois de submetidas a um voto do Plenário”.
Pela decisão tomada, os textos finais da Assembleia de Medellín compreendem: a Mensagem aos Povos da América Latina, a Introdução às Conclusões e as Conclusões propriamente ditas (16 Documentos, agrupados em três blocos: Promoção Humana, Evangelização e Crescimento na Fé e Igreja Visível e suas Estruturas).
A Conferência de Medellín “transformou-se num exemplo singular de recepção colegial do Concílio, pelas igrejas da América Latina e do Caribe”. É “o intento maior realizado pelas Igrejas de todo um Continente para receber o Concílio Vaticano II. Essa dimensão está expressa já no título escolhido para a II Conferência: ‘A Igreja na atual transformação da América Latina, à luz do Concílio’. Em todo acontecimento eclesial, mormente naqueles, como os Concílios, destinados a marcar em profundidade a vida da igreja, três elementos devem ser tomados em consideração: o evento em si, os documentos nele aprovados e finalmente a sua recepção”.
O método de trabalho adotado na Conferência possibilitou uma recepção do Concílio Vaticano II fiel, mas crítica e, ao mesmo tempo, criativa.
Medellín “caracteriza-se pela radicalidade com que determinadas orientações de fundo do Vaticano II foram plenamente assumidas. A primeira delas é a pastoralidade, que o Papa São João XXIII quis imprimir ao conjunto da obra conciliar. Nem todos os documentos conciliares alcançaram assimilar, plenamente, este horizonte que se encontra melhor expresso naquela que seria chamada de Constituição Pastoral da Igreja no Mundo de Hoje (Gaudium et Spes - GS)”.
Todos os seus 16 documentos “devem ser lidos à luz da pastoralidade. Eles arrancam da preocupação pastoral dos bispos frente à realidade pungente do Continente e terminam sempre com orientações, de caráter prático, para os trabalhos pastorais. Vários deles trazem impresso, no seu próprio título, a dimensão da pastoralidade”. E mais ainda, “esta dimensão constitui, explicitamente, a terceira parte de todos os dezesseis documentos”
Outra dimensão conciliar, “plenamente vivida por Medellín foi a colegialidade episcopal, não enquanto debate teórico ou aprimoramento de sua definição, mas como exercício prático inovador. Foi todo um Continente que buscou colegialmente a melhor maneira de aplicar o espírito e as determinações da Concílio à vida de suas igrejas particulares”.
As Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano, a partir de Medellín, “ainda que de maneira penosa e sofrendo crescentes restrições por parte de Roma, conquistaram um espaço de realização da colegialidade episcopal, em profunda comunhão com a Sé de Pedro, mas sem abdicar do pleno exercício de sua própria responsabilidade de pastores desta porção do povo de Deus, deliberando e propondo às suas igrejas um magistério próprio e investido de autoridade. Esta forma de exercício da colegialidade ganhou um selo excepcional, ao acolher Paulo VI, o pedido expresso pelos bispos de levar imediatamente para suas igrejas (antes da versão oficial aprovada em Roma) as Conclusões que acabavam de ser aprovadas, em Medellín”.
A Conferência de Medellín constitui, assim, “um modelo alternativo à maneira de se exercer a colegialidade episcopal consubstanciada nos Sínodos dos Bispos, reduzidos à condição de um órgão consultivo do Romano Pontífice. Medellín preservou, na sua inteireza, ao lado da voz papal, a voz dos bispos latino-americanos e caribenhos; ao lado da autoridade petrina e, em harmonia e comunhão com a mesma, a autoridade própria dos bispos; ao lado do magistério pontifício, o magistério próprio das igrejas locais”.
No exercício da colegialidade, Medellín inovou também em outro sentido. “Uma das intuições, que permitiu a revolução eclesiológica do Vaticano II foi a de ancorar a noção de Igreja na figura do Povo de Deus, lutando-se tenazmente para que este capítulo precedesse o da constituição hierárquica da Igreja, deixando claro que bispos, padres e o conjunto dos batizados formam parte do mesmo Povo de Deus”.
Em Medellín, pelo método adotado, trabalharam lado a lado, nas 16 Comissões e Subcomissões, bispos, peritos, sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e leigas, além dos observadores não católicos, participando todos ativamente da elaboração dos textos.
Podemos dizer que “simbolicamente, a igreja toda estava ali implicada na busca dos caminhos para melhor servir ao povo latino-americano, no sentido de sua redenção e libertação, ainda que nas votações tomassem parte apenas os bispos e outra pequena fração da assembleia constituída pelos padres diocesanos ou religiosos. De todos os modos, o voto, em Medellín, não se restringiu apenas aos bispos. O que ali aconteceu, aponta na direção de que todos os membros do Povo de Deus tenham voz e voto nos assuntos pastorais, seja nos Conselhos pastorais paroquiais e nos Conselhos diocesanos de pastoral, seja na prática já consagrada das Assembleias diocesanas para aprovação das diretrizes e prioridades pastorais de uma Igreja particular. Esta noção alargada de colegialidade, implicando o conjunto do Povo de Deus nas responsabilidades pela vida e missão da igreja esteve esboçada no método de trabalho adotado em Medellín e, em parte, nas votações ali realizadas”.
Em Medellín, o Concílio Vaticano II “não é tomado, nem como ponto de partida e nem mesmo como ponto de chegada”. O ponto de partida “é sempre a realidade do povo e dos países latino-americanos lida como sinais do tempo, onde a voz de Deus se faz ouvir e se torna interpelação premente que exige a resposta generosa da ação pastoral e social”. Como afirma a Introdução às Conclusões da Conferência, "não basta refletir, obter maior clareza e falar. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da palavra, mas tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação".
O Concílio “não é tampouco o ponto de chegada, mas sim as pistas pastorais que nos convocam para agir. Os documentos conciliares entram bem mais, junto com a Palavra de Deus, como um dos elementos de iluminação da realidade e critério para o discernimento evangélico de qual deva ser o nosso juízo sobre esta realidade e qual o nosso compromisso perante a mesma. Processa-se, assim, uma releitura significativa dos textos conciliares que coloca em relevo dimensões que tiveram inclusive dificuldades em encontrar sua plena expressão no desenrolar-se do Concílio” (Fonte: José Oscar Beozzo. Medellín: inspiração e raízes.).
Por fim, podemos afirmar que o método de trabalho adotado na Conferência de Medellín vivenciou e levou para à prática a Teologia dos sinais dos tempos do Concílio Vaticano II, que afirma categoricamente: “Para desempenhar sua missão (ou como diz hoje o Papa Francisco: ser “Igreja em saída”) a Igreja, a todo momento (reparem: “a todo momento” e não “de vez em quando”), deve (reparem também: “deve” e não “pode”) perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender (reparem ainda: “conhecer e entender”) o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (A Igreja no mundo de hoje - GS, 4).
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Medellín em gotas. 2ª- Método adotado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU