19 Junho 2017
"A pessoa se corrompe e, ao se corromper, assume a atitude triunfalista daqueles que se sentem mais inteligente e mais esperto do que outros. A pessoa corrupta, no entanto, não percebe que está construindo, por si mesma, a sua própria prisão. Um pecador pode pedir perdão, um corrupto se esquece de pedi-lo. Por quê? Porque ele não tem mais necessidade de ir além, de procurar caminhos que o levem para além de si mesmo: está cansado, mas satisfeito, cheio de si. A corrupção tem em sua origem, de fato, um cansaço de transcendência, tem a indiferença”, escreve o Papa Francisco no prefácio do recente livro do cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson cujo tema é a corrupção. O prefácio é publicado por Corriere della Sera, 15-06-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
A corrupção, em sua raiz etimológica, define uma laceração, um rompimento, uma decomposição e desintegração. Seja como estado interior ou como fato social, a sua ação pode ser entendida olhando para as relações que o homem tem em sua natureza mais profunda. O ser humano tem, de fato, um relacionamento com Deus, uma relação com o seu próximo, uma relação com a criação, ou seja, com o ambiente em que vive. Essa tríplice relação – na qual também faz parte aquela do homem com si mesmo – fornece contexto e sentido ao seu agir e, em geral, à sua vida.
Quando o homem respeita as exigências dessas relações é honesto, assume responsabilidades com retidão de coração e trabalha para o bem comum. Mas quando ele sofre uma queda, ou seja, corrompe-se, essas relações se rompem. Assim, a corrupção expressa a forma geral da vida desordenada do homem que caiu. Ao mesmo tempo, ainda como resultado da queda, a corrupção revela uma conduta antissocial forte o suficiente para desatar a validade das relações e, como consequência, dos pilares que sustentam uma sociedade: a coexistência entre pessoas e a vocação para desenvolvê-la.
A corrupção destrói tudo isso através da substituição do bem comum por um interesse particular que contamina toda perspectiva geral. Ela brota de um coração corrupto, e é a pior praga social, porque gera problemas muito graves e crimes que acabam envolvendo a todos. A palavra "corrupto" lembra o coração rompido, o coração despedaçado, manchado por algo, estragado como um corpo que entra em um processo de decomposição e exala um mau cheiro.
O que está na origem da exploração do homem pelo homem? O que, na origem da degradação e da falha no desenvolvimento? O que, na origem do tráfico de pessoas, de armas, de drogas? O que, na origem da injustiça social e da humilhação do mérito? O que, na origem da ausência de serviços para as pessoas? O que, na raiz da escravidão, do desemprego, da negligência das cidades, dos bens comuns e da natureza? O que, em suma, desgasta o direito fundamental do ser humano e a integridade do meio ambiente? A corrupção, que é na verdade a arma, é a linguagem mais comum também das máfias e das organizações criminosas no mundo. Por isso, é um processo de morte que alimenta a cultura da morte dessas máfias e organizações criminosas.
Existe uma profunda questão cultural que deve ser enfrentada. Hoje, a maioria das pessoas não consegue sequer imaginar o futuro; hoje, para um jovem é difícil acreditar verdadeiramente no seu futuro, em qualquer futuro, e assim para a sua família. Essa nossa mudança de época, que é um tempo de crise muito amplo, retrata a crise mais profunda que envolve a nossa cultura. Nesse contexto, deve ser enquadrada e compreendida a corrupção em seus diversos aspectos. Está em jogo a presença da esperança no mundo, sem a qual a vida perde aquele sentido de procura e possibilidades de melhoria que a caracteriza.
Neste livro, o cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, agora prefeito do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral, e ex-presidente do Conselho Pontifício da Justiça e da Paz, explica bem a ramificação desses significados de corrupção, e faz isso com um foco especial na origem interna desse estado que, de fato, germina no coração humano e pode criar raízes nos corações de todos os homens. Estamos, realmente, muito expostos à tentação da corrupção: mesmo quando pensamos tê-la derrotado, pode reaparecer.
O homem deve ser visto sob todos os seus aspectos, não pode ser separado de acordo com suas atividades e, da mesma forma, a corrupção precisa ser lida - como aparece nesse livro - inteira, para todo o homem, tanto em sua expressão de crime como naquela política, econômica, cultural e espiritual.
Em 2016 encerrou-se o Jubileu extraordinário da misericórdia. A misericórdia permite a superação de si mesmo através do espírito de procura. O que acontece quando a pessoa encastela-se em si mesma e sua mente e coração não exploram um horizonte mais amplo? A pessoa se corrompe e, ao se corromper, assume a atitude triunfalista daqueles que se sentem mais inteligente e mais esperto do que outros. A pessoa corrupta, no entanto, não percebe que está construindo, por si mesma, a sua própria prisão. Um pecador pode pedir perdão, um corrupto se esquece de pedi-lo. Por quê? Porque ele não tem mais necessidade de ir além, de procurar caminhos que o levem para além de si mesmo: está cansado, mas satisfeito, cheio de si. A corrupção tem em sua origem, de fato, um cansaço de transcendência, tem a indiferença.
O cardeal Turkson – como se percebe a partir desse diálogo que se desenrola gradualmente de acordo com um itinerário preciso - explora os diferentes caminhos em que nasce e se arrasta a corrupção, da espiritualidade do homem até às suas construções sociais, culturais, políticas e até mesmo criminais, reunindo esses aspectos também sobre o que mais nos desafia, ou seja: a identidade e o caminho da Igreja.
A Igreja deve ouvir, levantar-se e aproximar-se das tristezas e esperanças das pessoas pela misericórdia, e deve fazê-lo sem ter medo de purificar-se, diligentemente buscando o caminho para melhorar. Henri de Lubac escreveu que o maior perigo para a Igreja é o mundanismo espiritual – portanto, a corrupção - que é mais desastrosa do que a lepra infame. A nossa corrupção é a mundanidade espiritual, a tibieza, a hipocrisia, o triunfalismo, o fazer prevalecer apenas o espírito do mundo em nossas vidas, o sentimento de indiferença.
É com essa consciência que nós, homens e mulheres da Igreja, podemos acompanhar a nós mesmos e à humanidade sofredora, principalmente aquela que é mais oprimida pelas consequências criminosas e de degradação geradas pela corrupção.
Enquanto escrevo, estou aqui no Vaticano, em um ambiente de beleza absoluta, onde o engenho humano procurou elevar-se e transcender em uma tentativa de que o imortal vencesse o transitório, o corrupto. Essa beleza não é um acessório cosmético, mas algo que incide sobre a pessoa humana, para que ela possa levantar a cabeça contra todas as injustiças. Essa beleza deve acoplar-se com a justiça. Então, precisamos falar de corrupção, denunciar os seus males, entender, mostrar a vontade de afirmar a misericórdia sobre a mesquinhez, a curiosidade e criatividade sobre o cansaço resignado, a beleza sobre o nada.
Nós, cristãos e não-cristãos, somos como flocos de neve, mas se nos unirmos podemos nos tornar uma avalanche: um movimento forte e construtivo. Aqui está o novo humanismo, esse renascimento, essa recriação contra a corrupção que podemos alcançar com coragem profética. Devemos trabalhar todos juntos, cristãos, não-cristãos, pessoas de todas as religiões e não crentes, para combater essa forma de blasfêmia, esse câncer que corrói as nossas vidas. É urgente tomar conhecimento, e para tanto é preciso educação e cultura misericordiosa, é preciso a cooperação de todos de acordo com suas próprias habilidades, seus próprios talentos, sua própria criatividade.
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Papa Francisco “Vamos lutar juntos contra a corrupção” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU