02 Junho 2017
Num primeiro momento, a reabertura, em El Salvador, da investigação sobre o assassinato em 1980 de Dom Óscar Romero parece irremediavelmente problemática, pelo menos em termos processuais. Roberto D’Aubuisson, o mentor do crime, está morto, e a maioria dos demais cúmplices e testemunhas já morreram ou foram mortos.
O único até agora acusado, o Capitão Alvaro Saravia – chefe de segurança de D’Aubuisson –, é um ator de importância relativamente baixa que estaria morando escondido em outro país.
A reportagem é de Linda Cooper e James Hodge, publicada por National Catholic Reporter, 01-06-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
E ir atrás dos que teoricamente financiaram a operação, ricos proprietários de terra, exigiria não só recursos massivos como também um enorme capital político.
Da época dos assassinatos, o caso de Romero seria o mais difícil de se investigar “porque ele toca nos pilares da sociedade salvadorenha”, diz Matt Eisenbrandt, advogado na área dos direitos humanos e autor de “Assassination of a Saint: The Plot to Murder Óscar Romero and the Quest to Bring His Killers To Justice” (O assassinato de um santo: o plano para assassinar Óscar Romero e a busca para levar à justiça os seus assassinos, em tradução livre).
Embora esteja “bastante otimista” com a reabertura das investigações, Eisenbrandt falou que os procuradores precisam “olhar detalhadamente para o esquadrão da morte de D’Aubuisson, e olhar para este esquadrão da morte significa olhar figuras poderosas que apoiaram D’Aubuisson. A maioria dos outros casos implica comandantes militares do alto escalão, que serão bem difíceis de investigar. Na verdade, penso que estes sejam até mais fáceis de investigar seriamente do que os membros da oligarquia”.
No entanto, a reabertura do caso pelo juiz Rigoberto Chicas em 18 de maio, depois de a Suprema Corte salvadorenha ter revogado a lei de anistia, pode ter consequências sem relação com condenações decorrentes do crime.
Por um lado, a reabertura pode impactar o poderoso partido de direita, a Aliança Republicana Nacionalista – ARENA, fundado por D’Aubuisson. A Comissão da Verdade, da ONU, o considerou como mentor do assassinato, e se a corte salvadorenha estabelecer a sua culpa, ela anularia a discussão de longa data segundo a qual D’Aubuisson não deve ser culpado.
Foi a ARENA que pressionou a aprovação da lei de anistia em 1993, poucos dias depois que a Comissão da Verdade, da ONU, descobrira que os militares salvadorenhos, juntamente com os seus esquadrões da morte, haviam cometido 85% das atrocidades durante a guerra civil que durou doze anos, conflito onde morreram mais de 75.000 pessoas. No ano passado, a Suprema Corte salvadorenha derrubou a lei [de anistia], permitindo que as vítimas busquem indenizações e que o governo processo judicialmente as atrocidades cometidas durante a guerra.
Reabrir o caso de Romero também conta com o potencial de pavimentar o caminho para um país altamente polarizado confrontar-se com o seu passado, juntando-se às fileiras de países como o Chile, a Guatemala e o Peru, que aboliram leis de anistia e processaram criminosos de guerra do alto escalão.
“Provavelmente o caso de Romero não conte com réus vivos, porém ele tem um poder simbólico extraordinário”, diz a professora da Universidade de Stanford Terry Lynn Karl.
“Ele envolve um arcebispo, prestes a se tornar santo, e o fundador do partido ARENA”, continua a professora, que já foi perita em uma série de processos judiciais envolvendo os direitos humanos e crimes de guerra, incluído o processo civil, em 2004, de Saravia, iniciado pelo Center for Justice and Accountability.
Saravia nunca compareceu ao tribunal e hoje estaria vivendo escondido em algum país latino-americano, segundo El Faro, jornal salvadorenho online que o entrevistou. [1]
“Um julgamento do Capt. Saravia in absentia”, disse Karl, “não é a mesma coisa que o julgamento do [ditador guatemalteca] Efraín Ríos Montt ou [do ditador chileno] Augusto Pinochet, ambos os quais se sentaram diante dos tribunais. Ele não tem a mesma magnitude, o mesmo poder”, disse ela.
“Mas por ser Romero, o caso pode ter um efeito”, continuou, mesmo ele não produzir provas novas. “Há um conceito chamado ‘justiça em cascata’, onde se começa com um gotejamento aqui, um outro ali; o gotejamento se torna um fluxo, e este fluxo cresce. É assim que aconteceu no Chile”.
“Quando isso acontecer em El Salvador, o caso de Romero pode se tornar significativo”, declarou Karl. “Mas há muitas forças poderosas que não querem ver algo assim ser feito”.
“A justiça não pode ser um bode expiatório ou uma forma de pôr a culpa nos atores dos níveis mais baixos. Justiça significa sustentar a noção de que ninguém está acima da lei. Significa descobrir de onde saíram as ordens, ter um réu vivo do Alto Comando na sala do tribunal acusado de assassinato, de crimes contra a humanidade – réus que nunca tiveram de responder por seus atos”.
Desde que a lei de anistia foi derrubada em 2016, centenas de casos foram arquivados nos tribunais salvadorenhos, mas alguns acabaram reabertos.
“É extremamente importante” a reabertura destes casos, declarou Almudena Bernabeu, advogado que atua na área dos direitos humanos e um dos procuradores que atua no caso Saravia encabeçado pelo Center for Justice and Accountability.
“É preciso que os casos que assumam o status de prioridade sejam os casos em que as vítimas, as provas e os perpetradores possam estar sujeitos à justiça”, disse Bernabeu. “Eu não gostaria de ver que somente os casos que são reabertos sejam os casos famosos, porém impossíveis de serem investigados ou litigados”.
O caso de Romero, no entanto, assume uma significação a mais na medida em que é o seu assassinato que marcou não só o começo da guerra civil, mas o desencadear de uma década de terror estatal, que incluiu os assassinatos de quatro religiosas americanas e massacres como os do Rio Sumpul e El Mozote, onde 1.000 moradores, mais de 250 deles sendo crianças, foram sistematicamente executados por tropas treinadas pelos EUA.
Até o momento, o caso de 2004 envolvendo Savaria, que fez que Bernabeu e Eisenbrandt viajassem para El Salvador a fim de encontrar e entrevistar testemunhas, permanece sendo o melhor registro jurídico do assassinato de Romero.
O caso judicial, que acusa Saravia de arranjar a arma e o veículo para o assassinato, foi acionado em nome de um dos irmãos de Romero depois que se soube que Saravia estava vivendo, fazia anos, em Modesto, na Califórnia. O juiz federal ordenou que Saravia pagasse indenização e declarou que o assassinato fora um crime contra a humanidade.
Ainda que as provas e os depoimentos do caso certamente ajudarão os procuradores salvadorenhos, muitas das testemunhas estão hoje mortas, incluindo Robert White, embaixador americano para El Salvador na época do assassinato, e a advogada María Julia Hernández, que trabalhou com Romero e coordenava o escritório jurídico que o acompanhava, o Tutela Legal, que documentou atrocidades e abusos contra os direitos humanos.
Hernández, primeira pessoa a entrevistar o único sobrevivente do massacre de El Mazote, testemunhou que a Polícia Nacional apreendeu todos os arquivos relativos à morte de Romero, incapacitando qualquer investigação.
No depoimento, White afirmou que D’Aubuisson foi o responsável por orquestrar a morte de Romero, que os esquadrões da morte eram operados basicamente por militares e que o Departamento de Estado americano tinha uma quantidade significativa de provas que associavam o alto comando militar salvadorenho a D’Aubuisson.
Nota:
[1] Intitulada “How we killed Archbishop Romero”, a entrevista pode ser acessada aqui.
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Caso do assassinato de Romero é reaberto em El Salvador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU