18 Mai 2017
O pesquisador do Conicet e doutor em Antropologia explora as experiências religiosas, musicais e literárias dos setores populares. O protesto social e a eficácia política das mobilizações. As elites políticas e culturais, entre o preconceito e a incompreensão de realidades alheias.
“Geralmente, quando se pensa na cultura popular tende-se a ‘nostalgiar’ certa reminiscência do passado supostamente tradicional; ao passo que a cultura de massa seria algo como a representação de indivíduos atomizados pela TV. E, na verdade, nenhuma dessas duas realidades existe separadamente”, afirma Pablo Semán, sociólogo (UBA) e doutor em Antropologia (pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS).
O poder do método etnográfico e do trabalho de campo para quebrar preconceitos e sensos comuns; “cultura popular” e “cultura de massa”, dois conceitos que parecem designar realidades claramente separadas, mas que devem ser integradas na percepção de uma experiência; os consumos culturais e o poder simbólico da música e dos best-sellers, espaços que interpelam os sujeitos e contêm suas sensibilidades de classe; cosmovisões religiosas que explicam mais de suas próprias vidas que de instituições; e, finalmente, o protesto social, demonstração efervescente de uma sociedade mobilizada que põe à prova a eficácia da rua e explica, em parte, as representações e práticas políticas dos diferentes setores da sociedade. Sobre tudo isso fala Semán, que é pesquisador do Conicet e professor (na graduação e na pós-graduação) na Universidade Nacional de San Martín.
A entrevista é de Pablo Esteban e publicada por Página/12, 17-05-2017. A tradução é de André Langer.
Por que o senhor fez Sociologia?
No ensino médio, eu me interessava mais pela matemática. No entanto, na minha família sempre se lia muito de História e Sociologia. Tudo isso me serviu como ferramenta para colocar em perspectiva a minha própria militância juvenil. Eu ficava fascinado pela possibilidade de criar um distanciamento de relatos mecânicos, de ver os fenômenos em sua singularidade.
E depois continuou com um doutorado em Antropologia...
Pouco depois decidi pesquisar as Igrejas evangélicas. Nos anos 1990, ninguém as estudava sem cair no lugar comum do preconceito e do desprezo. Logo percebi que o objeto de estudo me demandava tempos de observação mais prolongados e experiências menos artificiais que a entrevista. Dessa maneira, comecei a fazer etnografia sem saber que, efetivamente, o estava fazendo e optei por fazer um doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) atraído pelo estilo de pesquisa de alguns dos seus professores.
A Antropologia destaca-se por seu método etnográfico e um minucioso trabalho de campo. Li que neste afã, um tempo depois, mudou-se para Lomas de Zamora...
Sim, eu pesquisei de que maneira as pessoas do bairro realizavam suas práticas cotidianas e constituíam suas cosmovisões religiosas. Foi assim que me dei conta de que suas trajetórias sociais e culturais davam o tom dessas experiências mais que o fato de se declararem católicas ou pentecostais. A religião não dependia apenas das igrejas, mas do universo de crenças que cada indivíduo elaborava em seus processos de socialização. Com outras palavras, importavam mais os “modos de ser católicos e pentecostais” do que suas próprias religiões em si.
Atualmente, o senhor é uma das principais referências na análise das culturas de massa e populares. Como poderia defini-las?
Em geral, quando se pensa em cultura popular tende-se a “nostalgiar” certa reminiscência do passado supostamente tradicional; ao passo que a cultura de massa seria algo como a representação dos indivíduos atomizados pela TV. E, na verdade, nenhuma dessas duas realidades existe separadamente. O que existe são bairros com sujeitos que desenvolvem produções simbólicas perante bens culturais que provêm da mediação de massa, das experiências familiares e de trabalho, assim como de seus vínculos com a política. Por outro lado, em geral, seus horizontes de existência pouco têm a ver com o que é dito sobre eles na voz das elites educativas e políticas.
Como os setores populares se expressam em relação à política?
Um grande mal-entendido entre as visões das elites de todo tipo e os setores populares está vinculado, por exemplo, com uma velha dicotomia entre clientelismo e piqueterismo, entre luta e urgência, entre projeto de transformação social e resolução de problemas cotidianos. No entanto, a realidade não pode ser reduzida dessa maneira: o fato de que os atores sociais cortem estradas não implica uma busca revolucionária, nem seu afã para conseguir soluções concretas converte-os em clientes. Ao mesmo tempo, é possível perceber uma série de transformações no seio da vida dos setores populares que implicaram a adoção de perspectivas mais individualistas de progresso material e autoafirmação pessoal.
Por exemplo?
A ideia de “empreendedorismo” resgata da vida cotidiana a experiência de tentar resolver na precariedade e também uma posição que convida a “carregar as pilhas”, “resgatar-se” e “ir em frente” para resolver sua situação pessoal. Trata-se de uma transformação atual, mas que se relaciona com experiências populares que poderiam remontar à década de 1990. Muitas situações da vida social que implicam algum sucesso vinculam-se com um declarado esforço para mudar sua realidade. E tudo isso se percebe e constitui-se em certas crenças e práticas religiosas, no uso da literatura de autoajuda, na apropriação das mensagens musicais.
O senhor também pesquisou os setores populares e seu consumo de literatura em massa...
Exatamente. Pode-se resumir isso na ideia de que “se uma pessoa se lança em suas preocupações pessoais terá resultados melhores do que se ficar esperando para que resolvam a sua vida”. Trata-se de uma tradição de leituras populares, consumos que os interpelam e que são – pelo menos do ponto de vista sociológico – de primeira categoria. Refiro-me a Paulo Coelho, muito criticado do ponto de vista literariamente normativo, mas diretamente conectado com suas sensibilidades (e muito presente nas experiências concretas). A individualização é um fenômeno mais complexo e ambivalente do que costumamos registrar.
E a música?
Ali observei a tensão entre os marcos normativos e interpretativos machistas e androcêntricos e a apresentação pública de modelos de feminilidade que também implicavam uma transformação no repertório de gênero e sexualidade. Via-se isso nas situações de dança e em suas interpretações do sentido das letras, porque onde o senso comum de muitos analistas via apenas machismo, viviam-se situações mais variadas: desde possibilidades sexuais a ironias (e nem sempre uma agressão). Isso tem a ver com o anterior: sexualização, individualização, crítica de gênero fazem parte de um conjunto de transformações que temos que acabar de compreender e dimensionar.
Nos últimos tempos, Semán provou grande destreza para a redação de crônicas políticas. Ali, colhe todos os frutos e experiências de um treinamento etnográfico que põe o acento nos protestos sociais numa perspectiva sociológica e antropológica. O pesquisador-pedestre anda pelas ruas e constrói interpretações acerca das estratégias utilizadas pelos diferentes setores para expressar seus humores sociais, a partir de um conceito complexo de “política” que ultrapassa as urnas e as eleições.
Por que o senhor acha que os grupos sociais se mobilizam?
Atualmente, nós vivemos um processo marcado pelo surgimento de novos eventos políticos de massa. Não são insurreições inesperadas que transformam totalmente a ordem política, mas tampouco atos partidários, cujos organizadores sabem bem o que vai acontecer, porque não têm outras consequências senão fortalecer as fileiras do próprio grupo. Trata-se de acontecimentos que, entre outros fatores, respondem a uma mudança na escala demográfica da Argentina. Ainda continuamos a pensar como se fôssemos uma sociedade de 25 milhões de habitantes. Até mesmo as nossas ruas são projetadas para aquelas escalas.
De modo que o traçado urbano e a organização do transporte realçam o valor das multidões.
Concordo com isso. Por outro lado, entre esses fatores, situam-se as potencialidades das novas tecnologias da informação e comunicação que facilitam os processos de mobilização. São modos de se organizar que diluem a fronteira entre o espontâneo e o organizado. E, além disso, há o fato de que as mobilizações geram resultados concretos em termos das demandas dos grupos.
Ou seja, como o senhor muitas vezes assinala: “a rua dá resultado”.
Certo. Embora nem sempre sejam os mesmos fatores, sempre há mobilizações, e nos últimos 15 anos as pessoas comprovaram a eficácia da mobilização política e social. Paralelamente, cada um dos grupos que faz alguma reivindicação encontra em diferentes meios de comunicação os seus espelhos e amplificadores.
Se os protestos sociais não são homogêneos e os grupos que participam nem sempre estão unificados em torno dos mesmos interesses, de que maneira as heterogeneidades convivem?
Penso que a heterogeneidade é causa e, ao mesmo tempo, consequência da mobilização política. Grupos que por situações distintas se veem isolados em seus contextos e pretendem tornar visíveis suas demandas saem às ruas, embora suas reivindicações não possam ganhar massividade através do voto. Ao mesmo tempo, produz-se um processo de reconhecimento de particularidades e individualidades a partir de expressões parciais. Por exemplo, isso funcionou de maneira muito positiva durante a Lei do Casamento Igualitário. Sem individualismo não haveria reivindicações de gênero; por isso, nem todo o individualismo equivale a neoliberalismo.
Por último, para que pesquisar culturas populares?
Os objetos de estudo do que se costuma chamar de “culturas populares” permitem compreender e até certo ponto prever práticas coletivas com uma eficácia bastante maior do que outras linhas de estudo mais tradicionais. Eu estudo religiões, literatura de massa ou cúmbia porque são chaves na formação da sensibilidade social e política de boa parte da população argentina. Compreender as “culturas populares” para além do problema que o conceito tem é compreender parte importante da sociedade. Temas menores nas hierarquias estéticas dos pesquisadores são de primeira grandeza para compreender o que acontece em nossas populações. O centro de gravidade não está onde habitualmente acreditamos que deveria estar, mas em certas práticas e em certos simbolismos.
Eu acrescentaria que se as políticas públicas atendessem a esta classe de questões e não a percepções do senso comum sobre esses fenômenos, poderiam ser muito mais eficazes (a política educacional, por exemplo, se beneficiaria se utilizasse visões mais realistas para criticar ilusões que podem ser tanto tecnocráticas como militantes). Por último, creio que pesquisar nas ciências sociais deve contribuir para melhorar as discussões públicas. Localizar um ponto de comunicação recíproca para os atores que operam em diversos conflitos. Essa é uma possibilidade concreta de encontro entre os cientistas sociais e os executores de políticas educativas e culturais.
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“O centro de gravidade na sociedade não está mais onde habitualmente acreditamos que deveria estar”. Entrevista com Pablo Semán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU