28 Abril 2017
Conjunto de medidas do Executivo, Legislativo e Judiciário é considerado como a maior ofensiva aos direitos indígenas desde a ditadura. Povos se articulam para resistir às mudanças.
A reportagem é de Maurício Hashizume, publicada por Repórter Brasil, 26-04-2017.
“Os ataques estão vindo de todos os lados, de todos os poderes”. Verbalizada pelo advogado Terena e assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Luiz Henrique Eloy, a descrição reflete como o movimento indígena percebe a onda de medidas que ameaçam a vasta sociodiversidade no país. O Brasil tem 305 etnias, totalizando quase 900 mil indígenas, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Passadas três décadas da promulgação da Constituição Federal de 1988, esses povos estão sob a mira de artilharia classificada por organizações indígenas, indigenistas e acadêmicos como a mais pesada desde o fim da ditadura militar.
O modo como esses povos estão sendo excluídos dos processos de decisão sobre medidas que têm impactos diretos sobre suas vidas contraria ainda compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
A diferença principal que caracteriza a intensificação recente dos ataques, prossegue Luiz Henrique, está no avanço do governo federal sobre a garantia do direito fundamental aos territórios tradicionais, costumeiramente colocado na berlinda nos Poderes Legislativo e Judiciário. Desde que Michel Temer assumiu a Presidência, em maio de 2016, 13 processos de demarcação foram remetidos de volta à Fundação Nacional do Índio (Funai). Esses processos envolvem 17 etnias em 11 Estados, impactando sobre a demarcação de 1,5 milhão de hectares. O governo do peemedebista criou ainda um grupo que dá poderes a representantes do governo de fora da Funai para declarar limites e desaprovar identificações de terras indígenas.
Essas interferências nos procedimentos estabelecidos por decreto anterior provocaram contestações de várias entidades, inclusive do Conselho Nacional de Política Indigenista, principal fórum com participação direta indígena instituído em âmbito governamental, e da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais) do Ministério Público Federal. Levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) contabilizou 153 terras indígenas em fase de estudos ou já identificadas que poderão ser diretamente afetadas pela interferência desse grupo intragovernamental.
No paralelo às mudanças, a entrada de Osmar Serraglio na chefia do Ministério da Justiça foi interpretada como um risco para esses povos, já que o ministro teve notória atuação na defesa dos interesses dos ruralistas como relator da PEC 215, uma das matérias mais contestadas pelo movimento indígena. A mesma preocupação foi levantada com a indicação do pastor Antônio Costa (PSC) para o comando da Funai, um político sem acúmulo nem legitimidade na área indigenista.
A sintonia entre os três Poderes da República produz consequências desastrosas, avalia Cleber Buzzatto, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). A percepção é de que prevalecem os interesses de empreendimentos bancados por setores extrativistas e exportadores de matéria prima, grupos com alto poder político e econômico que travam uma disputa desigual pelos recursos naturais com os povos tradicionais. “Terras indígenas estão sendo loteadas, vendidas, invadidas e desmatadas, inclusive as já demarcadas”, declara o representante do Cimi.
O balanço anual de “Conflitos no Campo”, feito pela Comissão Pastoral da Terra, assinala 13 assassinatos de indígenas entre as 61 mortes em 2016. O documento aponta para uma morte a cada seis dias, num aumento de 22% em relação a 2015. Em seu último relatório sobre “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, com dados de 2015, o Cimi somou 54 assassinatos. Nem todos se deram diretamente por conta de conflitos agrários, como no levantamento da CPT.
Observa-se nos últimos anos, ainda, uma série de estratégias que visam a fragilização estrutural e ao sucateamento da Funai, principal órgão estatal dedicado à política indigenista. Nota técnica do Instituto de Estudos Socioeconômicos já previa em 2016 que os cortes orçamentais impostos pela PEC 55, que determinou um teto de gastos públicos pelos próximos 20 anos, implicariam numa “encruzilhada” para as políticas indigenistas. Um decreto em março confirmou a previsão ao extinguir 347 cargos da Funai e fechar 50 Coordenações Técnicas Locais, postos de atendimento que deixaram de facilitar a interface daqueles que estão na ponta.
Só em janeiro deste ano, a APIB divulgou quatro notas públicas denunciando os ataques aos direitos indígenas, como as interferências no andamento das demarcações, que têm causado calafrios não só aos indígenas, mas ao seu arco de apoiadores. A associação representa uma parte da articulação dos movimentos indígenas do Brasil. Embora divididos em povos de origens e culturas diversas, muitos se unem para reivindicar os direitos. A APIB é formada por uma grande rede que inclui a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), pela Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpin Sudeste), pela Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), pela Comissão Guarani Yvyrupa, pelo Conselho do Povo Terena e pela Grande Assembleia do Povo Guarani (Aty Guasu).
Ainda em julho de 2016, a mesma APIB esteve à frente, com servidores da Funai, de 35 ocupações pelo país no “Ocupa Funai”. Em defesa do órgão e contra as paralisações e revisões das demarcações, as manifestações também deram espaço ao repúdio às violências impostas aos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, e às manobras em torno da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A motivação principal, porém, se deu na possibilidade de militarização da Funai, diante da iminência da nomeação do general Roberto Sebastião Peternelli para a sua presidência. O militar tinha o suporte da bancada social cristã da Câmara Federal, liderada por André Moura (PSC-SE) e considerada como “dona” do cargo pelo ministro Serraglio e do influente ex-presidente da Funai, senador Romero Jucá (PMDB-RR). Frente às mobilizações contrárias, porém, a sua nomeação não se consumou. Outro aspirante ao cargo, o também militar Franklimberg Rodrigues de Freitas, do Comando Militar da Amazônia, acabou sendo nomeado como Diretor de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável.
Na prática, o “Ocupa Funai” e as outras convocações sucessivas da Mobilização Nacional Indígena (puxadas pela APIB e parceiros) ao longo de anos recentes fazem parte de um leque de ações que tem no Acampamento Terra Livre o principal ato no ano. A 13ª edição do evento, que se estenderá nesta última semana de abril em Brasília, promete ser o maior da história até aqui e deve reunir entre 1,5 mil e 2 mil lideranças e participantes indígenas em torno de uma programação variada, que inclui desde marchas a debates e sessões culturais, em defesa dos povos e contra os ataques em curso.
“Será um momento importante para reunir povos e unir forças, mostrando a nossa força”, antecipa Maria Betânia Mota de Jesus, do povo Macuxi, recém-eleita secretária do Movimento de Mulheres do Conselho Indígena de Roraima. Ela faz parte de uma comitiva de cerca de 20 lideranças do estado que tratarão de questões gerais e específicas, como por exemplo a regularização de terras indígenas que foram fragmentadas, deixando comunidades excluídas do usufruto de seus territórios. “Nossa trajetória na luta pelas demarcações é longa. Tivemos vitórias, mas a preocupação continua”, emenda Maria Betânia, que é da comunidade Aningal, da terra indígena de mesmo nome.
“Sem dúvida, este é o momento mais crítico quanto à manutenção dos direitos indígenas consagrados da Constituição de 1988”, aponta o antropólogo e servidor de carreira da Funai, Artur Nobre Mendes, que tem longa trajetória acompanhando as políticas indigenistas e presidiu a fundação em duas ocasiões. Em consonância com lideranças indígenas que temem “emendas que acabam com os direitos dos povos indígenas”, Artur vê o Congresso Nacional como fonte primordial da ofensiva.
As principais ameaças são, no entender dele, a PEC 215, que retira do Poder Executivo a conclusão das demarcações de terras indígenas, além de outros projetos de lei que procuram agilizar os procedimentos de licenciamento ambiental de grandes obras de infraestrutura.
Segundo levantamento do ISA que consta da recém-lançada publicação “Povos Indígenas no Brasil 2011/2016”, no final do ano passado havia um total de 189 proposições registradas no Legislativo federal “para restringir os direitos indígenas, especialmente os territoriais”.
Cleber, do Cimi, sublinha que esses direitos passaram a entrar mais na mira de congressistas após a aprovação da reforma do Código Florestal, no segundo semestre de 2011. A concentração de esforços se materializou na retomada e na aprovação da PEC 215 na Comissão de Constituição e Justiça em 2012. Após idas e vindas, parecer favorável à PEC foi aprovado no final de 2015, quase concomitantemente com a criação da CPI da Funai e do Incra, assinada pelo então presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) no final de outubro do mesmo ano.
“A CPI da Funai e do Incra vem sendo indefinidamente renovada como forma de pressão permanente e de ameaça contra os dois órgãos assim como contra as entidades indígenas e indigenistas ou de apoio à causa quilombola que se veem numa situação de ataque permanente e sistemático contra a sua forma de atuar”, analisa Artur. Recriada pelo atual presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) em agosto de 2016, a CPI deve seguir sua agenda neste primeiro semestre de 2017. A expectativa geral é de que siga como palanque aberto para o discurso ruralista até que seja finalizada, com relatório com potencial para criminalizar lideranças, órgãos públicos e entidades da sociedade civil que atuam em prol das causas indígenas.
Entre todos os pontos em disputa, um deles, a cargo do Judiciário, ocupa posição privilegiada por conta de seu potencial de influência, com prováveis irradiações para além de sua esfera: a chamada tese do “marco temporal”. Segundo essa contestada interpretação, o reconhecimento dos territórios tradicionais seria exclusividade dos povos que ocupavam suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição de 1988.
Derivada de uma interpretação da sentença do Supremo Tribunal Federal (STF) que garantiu a demarcação em área contínua da Terra Raposa Serra do Sol, com o ministro relator Carlos Ayres Britto, a fixação dessa data tem sido apresentada como base para um conjunto de decisões judiciais em primeira instância.
Há também interpretações contrárias ao “marco temporal”. Em parecer, o jurista José Afonso da Silva argumenta ainda que considerada o marco temporal um “desrespeito às próprias regras e princípios constitucionais que dão proteção aos direitos indígenas”.
O “marco temporal” mereceu críticas também da relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para direitos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, em visita no Brasil em 2016. Ainda assim, apresenta-se como um instrumento-chave contrário aos direitos territoriais dos povos não apenas no âmbito da Justiça, mas também no Executivo e no Legislativo. Caso passe a PEC 215, o critério a ser adotado pode ser igualmente o mesmo do “marco temporal”, especialmente se a jurisprudência vier a ser consolidada no STF.
Daí que a transferência de Alexandre de Moraes do Ministério da Justiça para o STF tenha sido entendida como um risco a mais pelos movimentos indígenas e indigenistas, que temem pela atuação incisiva do novo ministro para a confirmação da tese do “marco temporal”. “Seria a legitimação de todo esbulho e de toda violência que foram cometidas até o dia anterior à promulgação da Constituição de 1988”, analisa o secretário-executivo do Cimi. Na perspectiva dele, existe a possibilidade de que o STF coloque o tema do de forma mais definitiva em votação ainda este ano por meio de algum caso envolvendo terra indígena ou até num julgamento em bloco de processos pendentes na corte.
Além da violência física que ameaça a vida dos povos indígenas em seus territórios, declarações de representantes do Executivos assustaram o movimento. Enquanto Osmar Serraglio tentava diminuir a importância dos territórios indígenas ao declarar que “terra não enche barriga”, o presidente da Funai Antônio Costa chegou ao ponto de dizer que os índios estão “parados no tempo”.
“A violência contra os povos indígenas não me é surpreendente. O que me surpreende é que as pessoas ainda se surpreendam tanto”, diz o antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). “A relação com os povos indígenas revela o pior do Brasil”.
Antonio Carlos realça que existe uma articulação histórica de diversos setores da sociedade que extrapola os interesses do chamado “ruralismo”, que ele considera mais ostensivo no cenário legislativo, e envolve todo o setor de infraestrutura, de grandes obras à mineração. Um dos exemplos é a usina de Belo Monte, que teve profundo impacto sobre diversos povos indígenas do rio Xingu, no Pará, e que foi construída durante governo do PT. Mais à vontade ainda com o governo Temer, na opinião de Artur, esses setores veem as questões indígenas e quilombolas “como uma ameaça a seus interesses e à expansão dos seus negócios”.
Em resposta a questionamentos formulados pela Repórter Brasil sobre as denúncias da ofensiva contra os direitos indígenas, o Ministério da Justiça encaminhou uma nota genérica em que afirma que foram repassados R$ 49,9 milhões à Funai, em 2016, a propósito da “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas”. Com o “balanço de todas as ações do Governo Federal voltadas para promoção, proteção e defesa dos direitos indígenas”, o documento, dá ênfase às realizações de outras áreas, como saúde, educação, moradia, transferência de renda, assistência técnica e extensão rural. “O ministro Osmar Serraglio enfatiza a diversidade de ações que importam em melhoria da qualidade de vida dos indígenas e concorda plenamente com a necessidade de se cumprir o que preconiza a Constituição Federal e a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação ao regime de demarcação de terras”, diz o documento.
Em artigo que também consta da publicação do ISA “Povos Indígenas no Brasil 2011/2016”, Juliana de Paula Batista e Maurício Guetta, da equipe de advogados do ISA, questionam essa sobreposição. “Se a sobrevivência física e cultural dos indígenas depende necessariamente de estarem na posse de suas terras tradicionais, tal como estabelece a própria Constituição, anular os processos de demarcação com base no marco temporal, além de se mostrar juridicamente questionável, tem como efeito direto e inexorável condenar os indígenas ao relento da assimilação forçada, paradigma que, este sim, a Constituição quis deliberadamente estancar”. Em adição, o ministro defende em nota ainda que “a política indigenista não fique restrita à questão das reservas indígenas, até porque já correspondem a 13% do território nacional. Comparativamente, a população indígena é de 0,4% da população brasileira”. Em suma, repete, com outras palavras, o bordão de que há “muita terra para pouco índio”.
Desenha-se, na concepção do professor Antonio Carlos, um cenário de acirramento de conflitos. Isso porque, ao mesmo tempo em que “a crueza da sociedade brasileira” se mostra cada vez mais “do jeito que ela é” no modo como se relaciona com os povos indígenas, o movimento tem mostrado uma reorganização. Há uma transição geracional, com a participação cada vez mais ativa de uma juventude indígena que mantém contatos e intercâmbios frequentes, por via de diversas tecnologias e com as dinâmicas sociais como a das cidades ou a das universidades. Essa articulação tem resultado, em muitos casos, em variadas maneiras de reação por meio do fortalecimento nos diversos territórios.
Nota da redação: no dia 26 de abril, os textos sobre as fotos com os títulos “marco temporal” e “grupo técnico” foram alterados para melhorar o entendimento.
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Sob ataque dos três poderes, movimento indígena reage à maior ofensiva contra seus direitos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU