02 Março 2017
A nomeação dos bispos católicos chineses representa o “problema crucial” que a China Popular e a Santa Sé devem resolver. E os “resultados preliminares” do diálogo em andamento entre ambas as partes fazem “ter boas esperanças” em um “possível acordo” sobre as modalidades como serão eleitos e nomeados os candidatos chineses ao episcopado. As informações são do cardeal chinês Joseph Tong, bispo de Hong Kong, e constam em um ensaio dedicado ao “futuro do diálogo entre a China e a Santa Sé do ponto de vista eclesiológico”. Algumas semanas depois da sua publicação, o artigo do temperado cardeal chinês se perfila cada vez mais como uma ocasião preciosa (apesar de ser menosprezada e sabotada por várias facções) para favorecer um saudável salto de qualidade na análise sobre a negociação que estão tendo a China e a Santa Sé.
A reportagem é de Gianni Valente e publicada por Vatican Insider, 28-02-2107. A tradução é de André Langer.
Em seu artigo, muito pacientemente, Tong descreveu as razões e os critérios que guiam a Sé Apostólica em seu pressuroso afã de resolver o “nó” das ordenações episcopais chinesas. Explicou novamente que a comunhão hierárquica entre o Sucessor de Pedro e os bispos católicos chineses, assim como acontece com todos os outros, tem a ver com a própria natureza da Igreja, representa um elemento no qual não se pode renunciar à sua própria catolicidade e, portanto, distingue-se até de importantes direitos reivindicativos em nome da liberdade religiosa. Porque anular ou impedir qualquer manifestação da liberdade religiosa, por mais desejável que seja e por mais defensável que seja, em si não anula e não desvirtua a catolicidade da Igreja de Roma, como documentam milênios de história do cristianismo.
E há uma urgência dominante que impulsiona a Sé Apostólica a verificar a possibilidade de um acordo com as autoridades civis chinesas em relação à questão das nomeações dos bispos; a exigência de certificar e garantir que, no futuro, a legitimidade das ordenações dos bispos católicos chineses e a eficácia da salvação dos sacramentos por eles administrados já não se vejam ofuscadas nem mesmo pelas sombras efêmeras da dúvida e da suspeita. Esta preocupação sugere e determina também as decisões que é preciso tomar na negociação com as autoridades chinesas.
No acordo em que se está trabalhando, sugeriu o cardeal Tong, o consenso do Sucessor de Pedro para as nomeações dos novos bispos chineses é explicitamente reconhecido como “conditio sine qua non”, elemento imprescindível e vinculante na dinâmica própria das ordenações episcopais católicas. O acordo proposto por Tong em seu artigo respeita tudo o que a Tradição, com base na Sagrada Escritura, manteve, definiu, guardou e defendeu como essencial em relação à eleição dos sucessores dos Apóstolos.
Os detratores do possível acordo entre a China e o Vaticano, para continuar com suas “guerrinhas”, se veem obrigados a ocultar (às vezes, com vergonhoso desprezo da inteligência alheia) um dado emblemático mais que evidente: os critérios de discernimento eclesial seguidos pela Santa Sé nas negociações em andamento com os governantes chineses são os mesmos que guiaram outros Papas e seus colaboradores que deviam tomar decisões delicadas e concretas diante de outras dificuldades parecidas e inclusive mais graves em relação à Igreja na China. Como aconteceu, por exemplo, em meados da década de 1980, quando a Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo então cardeal Joseph Ratzinger, recebeu a incumbência de verificar se as ordenações episcopais ilegítimas (celebradas na China com pressões dos organismos “patrióticos” e sem o consenso do Papa) podiam ser consideradas válidas ou ser eram somente paródias sacrílegas construídas por uma Igreja reduzida a um departamento religioso do aparelho civil. Uma história do passado que ilumina o presente. E que o Vatican Insider pode percorrer, acrescentando detalhes inéditos.
As auto-ordenações episcopais democráticas, que não têm o consenso do Bispo de Roma e que são celebradas sob a direção da Associação Patriótica dos Católicos Chineses, começaram em 1958. Durante muitos anos, sob as pressões do poder civil, nos próprios ritos de consagração eram incluídas algumas fórmulas inadequadas e eram omitidas algumas das costumeiras, como para insistir que tais ordenações episcopais se davam sem nenhuma “interferência vaticana” na vida religiosa do país.
Depois do “apagão” total com o cruel parêntese da Revolução Cultural, as ordenações episcopais “democráticas” recomeçaram durante a década de 1970, quando sacerdotes e bispos voltaram a atuar nas dioceses depois de terem sido libertados dos campos de reeducação e dos campos de trabalhos forçados. Durante esses anos, alguns católicos chineses da área “clandestina”, que se negava a qualquer compromisso com a política religiosa do Partido Comunista, voltaram a levantar algumas dúvidas sobre a própria validade das consagrações episcopais que não contavam com a aprovação do Papa.
Se as ordenações dos bispos “patrióticos” não eram verdadeiras ordenações episcopais, isso significava dizer que também as ordenações sacerdotais administradas por esses mesmos bispos eram inválidas. Assim, se teria negado o valor e a eficácia também dos sacramentos celebrados nas igrejas que o governo começava a permitir, depois da Revolução Cultural. Se teria dissipado o tesouro da graça e do consolo cristão ao qual finalmente muitos fiéis podiam ter acesso com certa facilidade, após anos muito difíceis.
Enquanto isso, chegavam a Roma também as cartas enviadas pelos bispos chineses ordenados no começo da década de 1980 sem mandato Pontifício, que pediam o reconhecimento como bispo legítimo da Sé Apostólica. Então, a Congregação da Propaganda Fidei submeteu a questão a João Paulo II, que encomendou o estudo do caso para “esclarecer dúvidas que poderiam eventualmente subsistir sobre a própria validade da ordenação”. Em 1983, esse pedido de esclarecimentos doutrinais foi apresentado à Congregação para a Doutrina da Fé. O trabalho, coordenado pelo já falecido Jean Jérôme Hamer, então secretário do dicastério vaticano que depois seria criado cardeal, durou dois anos e se serviu dos “votos de três autorizados canonistas apreciados pelos dicastérios vaticanos”: o atual cardeal José Saraiva Martins, o jesuíta Gianfranco Ghirlanda (que depois foi Reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana) e dom Antonio Miralles, da Prelazia Pessoal da Opus Dei, professor de Teologia Dogmática na Pontifícia Universidade da Santa Cruz. Em 1985, caíram todas as reservas: a Santa Sé reconheceu como válidas as ordenações episcopais na China, além de qualquer dúvida razoável. E isto aconteceu em virtude de considerações e argumentações surpreendentemente em sintonia com o “modus operandi” da Santa Sé na atual fase das negociações sino-vaticanas.
Na primeira metade da década de 1980, os funcionários e assessores do ex-Santo Ofício não se puseram a medir os fatos partindo da premissa de que tudo estava em ordem. Pelo contrário, trataram de verificar se as ordenações episcopais chinesas “patrióticas” tinham sido realizadas com as condições essenciais exigidas para a validade sacramental.
A Igreja católica reconhece que somente os varões batizados podem ser sacerdotes e bispos, e que só os bispos que receberam a sucessão apostólica válida podem, por sua vez, transmiti-la. A este respeito, verificou-se minuciosamente toda a nominata dos consagrantes de cada uma das ordenações ilegítimas celebradas entre 1958 e 1982, para documentar que as linhas de sucessão apostólica não tinham sofrido nenhuma interrupção.
A Congregação para a Doutrina da Fé, reunindo também as versões de testemunhas oculares, verificou que todas as ordenações dos bispos “patrióticos” chineses tinham sido celebradas segundo o Pontifical Romano, nas antigas versões latinas, tanto antes como depois da Revolução Cultural. A Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis, de Pio XIII (de 1947), indicou que eram elementos irrenunciáveis para considerar válida uma ordenação episcopal a imposição das mãos do bispo consagrante sobre o eleito e a recitação de algumas palavras do “Praefatio” (a oração da consagração), isto é, a fórmula “Comple in sacerdote tuo ministerii tui summum, et ornamentis totius glorificationis instructum coelestis unguenti rore sanctifica” (“Cumpre em teu sacerdote a plenitude do teu ministério e reveste-o com as insígnias da mais alta dignidade, santifica-o com a vitalidade do bálsamo celestial”).
Nas ordenações ilegítimas chinesas, algumas partes do ritual eram omitidas ou manipuladas. Na fórmula de juramento eram omitidas todas as referências ao Papa e à Sé Apostólica. Eram incluídas fórmulas de caráter nacionalista e “patriótico” ou referências ao “princípio de independência”, para garantir a declarada obediência ao governo. Apesar de todas as manipulações e mudanças significativas, a análise meticulosa dos textos feita pelo ex-Santo Ofício confirmou que as omissões e as inserções arbitrárias, mesmo no caso de se verificar a presença de todas efetivamente durante a celebração das ordenações, afetaram aspectos não essenciais em relação à validade do sacramento.
A outra condição necessária para a validade da ordenação episcopal é que a consagração aconteça segundo a intenção de “fazer o que a Igreja faz” quando consagra um bispo (“intentio faciendi quo facit Ecclesia”). Tanto na China continental como em Hong Kong, alguns sustentavam que tal condição estava em contradição com as afirmações de “independência” e da absoluta ausência de referências aos vínculos com o Bispo de Roma. Mas também sobre este ponto as informações reunidas pelo ex-Santo Ofício excluíram que se pudesse evocar o “defeito de intenção” para colocar dúvidas sobre a validez das ordenações chinesas.
Em particular, com respeito à questão da intenção, alguns especialistas consultados citaram uma passagem da Apostolicae Curae (de 1896), a carta apostólica de Leão XIII sobre a invalidez das ordenações anglicanas. Nessa passagem, insistia-se no princípio segundo o qual, ao a Igreja não poder julgar a intenção interior, quando se respeitavam a forma e a matéria exigidas para a administração do sacramento, presumia-se que tanto o consagrante como o consagrado teriam pretendido “fazer o que a Igreja faz” quando consagra bispos.
Um dos assessores consultados indicou a este respeito que a própria profissão do Credo por parte dos bispos “patrióticos” durante a liturgia de ordenação demonstrava sua intenção de confessar a mesma fé da Igreja de Roma. Desta maneira, reconhecia-se e afirmava-se que a comunhão hierárquica dos bispos chineses com o Bispo de Roma fundava-se e estava incluída na confissão da mesma fé.
E assim, para afastar qualquer suspeita sobre o “caso chinês”, bastava ter familiaridade e consonância real com a doutrina católica consolidada durante séculos, além de ter em conta como foram enfrentados casos análogos, inclusive na história recente da Igreja. Desde São Gregório Magno até o Concílio Ecumênico Vaticano II, desde Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino até o Código de Direito Canônico, promulgado em 1983, o Magistério e a teologia clássica reconheceram válidos os sacramentos administrados inclusive por ministros heréticos e cismáticos, sempre e quando existiram as necessárias condições de validade, com base em que “a virtude de Cristo que age nos sacramentos é dificultada pela condição indigna do ministro” (Papa Atanásio II). As sanções canônicas que afetam os bispos consagrados sem o consenso da Sé Apostólica anulam os atos jurisdicionais e de magistério que administravam. Mas não podem invalidar os atos sacramentais administrados em virtude da “potestas ordinis” ou “potestas sanctificandi” que é ontológica à pessoa. E, depois, pode-se realmente pressupor que os protagonistas destes casos têm realmente uma intenção cismática?
Nunca Papa algum reconheceu a consumação de um verdadeiro cisma no difícil caso da catolicidade chinesa. E, a partir dos últimos anos da década de 1970, multiplicaram-se os testemunhos de bispos que diziam ter pronunciado as fórmulas “independentistas” “apenas com os lábios, mas não com o coração”. Muitos descreviam inclusive os “truques” que utilizaram para não pronunciar as fórmulas mais ambíguas, omitindo-as com a aprovação do consagrante. Muitas vezes, o órgão da Igreja começava a tocar com maior intensidade, enchendo a igreja com seu som potente, para que ninguém conseguisse ouvir as palavras exatas utilizadas nas fórmulas de juramento...
Desde a década de 1970, as cartas que os bispos ilegítimos enviavam a Roma pedindo para serem legitimados reforçavam no Vaticano a percepção de que seus casos deviam ser julgados tendo presente as circunstâncias concretas em que esses bispos tinham sido ordenados. Todos se declaravam absolutamente convencidos da validade da ordenação recebida. Todos afirmavam ter aceitado a ordenação sem mandato pontifício somente para garantir, em tais circunstâncias, a continuidade da Igreja na China, com a esperança da chegada de tempos melhores. Por isso, apesar de deixar a última decisão ao Papa, também a Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo então cardeal Joseph Ratzinger, expressou um parecer favorável à reintegração dos bispos que pediam a legitimação no pleno exercício do próprio ministério episcopal, apelando à “suprema lex” que é “a salvação das almas”. Nem mesmo a colaboração destes bispos com os organismos patrióticos sob o controle do Partido Comunista era apresentada como um dado que anulasse esta possibilidade.
Depois dessa análise, os Papas que antecederam Bergoglio sempre reconheceram que a sincera vontade interior de comunhão com a Sé de Roma era o fator determinante para considerar caso por caso a situação de cada um dos bispos chineses e também os pedidos e as propostas que enviavam ao Vaticano. “Se querem a comunhão”, repetia João Paulo II aos seus colaboradores que o mantinham a par das “coisas chinesas”, “eu a concedo em um instante. Sou o Papa! A única verdadeira pergunta é: querem verdadeiramente a comunhão?” E Bento XVI, no livro-entrevista Luz do Mundo do jornalista Peter Seewald, insiste em que “o vivo desejo de estar em união com o Papa sempre esteve presente nos bispos ordenados de maneira ilegítima. Isto permitiu a todos trilhar o caminho rumo à comunhão, ao longo do qual foram acompanhados pela obra paciente que se fez com cada um deles individualmente”.
Os critérios pelos quais a Sé Apostólica se guiava quando reconheceu a validade das ordenações episcopais chinesas refletem os critérios seguidos pelo cardeal John Tong em seu último artigo sobre o futuro do diálogo entre a China e a Santa Sé. Empenham-se em ocultá-lo os pequenos grupos virtuais que, inutilmente, com suas “chantagens doutrinais”, tratam de pressionar a Sé Apostólica em relação à questão chinesa. Mas, bastaria um mínimo de respeito pela Tradição e pela própria natureza da Igreja, ou pelo menos ter presente a fantasia que se utilizou ao longo da história para proteger a sucessão apostólica, para reconhecer que agora, nas condições atuais, é o mesmo “sensus fidei” que sugere (como escreveu Bento XVI na Carta aos Católicos Chineses de 2007) a oportunidade e a conveniência de chegar a “um acordo com o governo para resolver algumas questões relativas seja com a escolha dos candidatos ao episcopado, seja com a publicação da nomeação dos bispos, seja ainda com o reconhecimento – para os efeitos civis, enquanto necessários – do novo bispo por parte das autoridades civis”.
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Quando Ratzinger disse que todos os bispos chineses são “válidos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU