30 Agosto 2016
"Quando comecei acompanhar de perto o '11 de setembro' , dediquei-me a analisar esta nova onda de terrorismo surgida depois da Segunda Guerra Mundial. A primeira onda caracterizava os anos setenta, com sequestros de aeronaves e outros atos terroristas, por exemplo, da parte dos palestinos do Setembro Negro. A terceira onda, esta de hoje, diz respeito ao Isis e difere das anteriores (por exemplo do Al Qaeda) por duas razões. Em primeiro lugar, os terroristas conduzem a guerra num vasto território, que pretendem identificar como 'Estado' e que eles mesmos chamam de 'Islâmico'. Em segundo lugar, identificam sua ideologia totalitária como uma espécie de fundamentalismo Islâmico. É a partir deste território que estabelecem seus inimigos: todas as outras religiões, incluindo parte do Islã, e a 'cultura ocidental totalmente podre'", escreve Agnes Heller, filósofa húngara, em artigo publicado por Lettura - Corriere della Sera, 21-08-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
No calor de verão, em férias nas montanhas da Hungria, uma das maiores vozes contemporâneas decide dedicar seu tempo ajudando uma pesquisadora universitária interessada em investigar as falsas argumentações sobre o fundamentalismo e o terrorismo de raiz islâmica. Foi exatamente o que aconteceu com Ágnes Heller, filósofa húngara, nascida em 1929, expoente da "Escola de Budapest", corrente filosófica da chamada dissidência dos "Países do Leste Europeu". Heller também foi aluna e assistente do filósofo e crítico literário György Lukács, representante do marxismo humanista.
Em Heller dá atenção à humanidade frágil, mas honesta, aquela de que também fala na Bellezza della persona buona (Ed. Diabasis), quando propõe retornar à categoria clássica de união entre o Belo e o Bom, que tão violentamente foi separado da filosofia moderna. A brutalidade da era pós-moderna, constantemente em ânsia devido à precariedade do cotidiano, por causa do terror golpeando por toda parte, indica, de acordo com Heller, a necessidade de um indivíduo que manifeste suas boas ações, de modo que estas, uma vez evidentes, expandam a verdadeira beleza. Nos sucessivos diálogos com Ágnes Heller, de Budapeste, falamos sobre a humanidade que sente necessidade dos grandes gestos do Papa Francisco, como aquele em que se pôs silenciosamente em contemplação diante do campo de extermínio de Auschwitz. É preciso retornar ao método do discernimento aristotélico, desenrolar os vários argumentos e tomar conhecimento, com espírito crítico, de quantos erros de raciocínio carregamos conosco. Precisamos de Aristóteles que nos ajude a ler a realidade.
A reflexão é esta, mas feita com a perícia de uma das vozes mais autorizadas da cultura Europeia, que no passado, dedicou algumas páginas, quase completamente desconhecidos na Itália, a Aristóteles e o mundo grego (um pequeno script que deve ser traduzido e publicado pela sua beleza). A filósofa será hóspede da Sociedade Filosófica de Verbania, dia 07 de setembro, quando falará das grandes utopias do nosso tempo.
Heller propôs um texto, pensado ao longo dos anos, e atualizado nos últimos dias, ao público do "Lettura", que nos permitir compreender, a partir deste cenário de terror, à qual ideia de progresso estamos caminhando. Foi publicado recentemente o volume de Carlo Altini, Progresso (Edizione della Normale), que nos ajuda a refletir sobre esta categoria moderna, que não se liga apenas ao ciclo de vida natural, mas dirige-se ao aperfeiçoamento do gênero humano.
Ora, o que vai acontecer ao "progresso", se o processo de autoafirmação da razão se encontra no espaço vazio dos fundamentalismos? E qual papel deveria ter a filosofia? Heller respondeu afirmando que a filosofia agora está enfraquecida no seu papel de formação da consciência civil: para alguns, se transforma num jogo. No entanto, ressaltou: "A filosofia nunca se tornará uma distração, como alguns gostariam. Será sempre poderosa, sempre assustará os fundamentalismos. O que não significa, porém, que os filósofos poderão dar vida a uma visão ou moralidade do Estado, pois neste caso, originaria intolerância e outra forma de terror, promovido pelos intelectuais. Nossas democracias nunca poderão ter uma moral do Estado, como aconteceu com Robespierre, que imaginou uma única moralidade para todos os franceses. Não é esta a tarefa da filosofia e da política; além do mais, a vontade jacobina não tinha nada a ver com o Estado imaginado por Platão: uma utopia reacionária, em vez de revolucionária". O convite de Heller, hoje, como ontem, é de manter-se fiel à linha de Aristóteles também com a moral: respeitar neste campo o dever da imanência.
Quando comecei acompanhar de perto o “11 de setembro” , dediquei-me a analisar esta nova onda de terrorismo surgida depois da Segunda Guerra Mundial. A primeira onda caracterizava os anos setenta, com sequestros de aeronaves e outros atos terroristas, por exemplo, da parte dos palestinos do Setembro Negro. A terceira onda, esta de hoje, diz respeito ao Isis e difere das anteriores (por exemplo do Al Qaeda) por duas razões. Em primeiro lugar, os terroristas conduzem a guerra num vasto território, que pretendem identificar como "Estado" e que eles mesmos chamam de "Islâmico". Em segundo lugar, identificam sua ideologia totalitária como uma espécie de fundamentalismo Islâmico. É a partir deste território que estabelecem seus inimigos: todas as outras religiões, incluindo parte do Islã, e a "cultura ocidental totalmente podre". Desta forma, o Isis acredita ter direito de realizar atos terroristas a qualquer momento e em todos os lugares, atacando primeiramente os Estados Europeus mais vulneráveis, como França e Bélgica. Estes Estados são mais vulneráveis porque sua população muçulmana é terreno fértil para radicalização. Os terroristas de hoje estão também em solo Europeu, o que, infelizmente, gera muita confusão, porque alguns políticos (o que deve preocupar os cidadãos) falam dos refugiados como se fossem terroristas. Esta correlação é resultado de uma abordagem superficial e ignorante da realidade. Por quanto eu sei, nenhum refugiado sírio participou dos ataques terroristas mais letais. Seria uma vergonha para a Europa negar hospitalidade a homens e mulheres sobreviventes de violência, acusando-os de uma violência que nunca cometeram!
Os últimos fatos mostram que o Isis, em breve, será derrotado. Mas o terrorismo não o será, absolutamente. Os totalitarismos reaparecem com novas ideologias, propagandeados pelos Estados, movimentos e grupos. O mundo sempre foi um lugar perigoso e ainda o é.
Alguns anos atrás, escrevendo um texto para Oxford, depois de ter assistido diretamente a segundo onda de terrorismo - aquela seguida aos ataques das Torres Gêmeas - tentei destacar os elementos críticos numa tentativa de compreender as raízes do fenômeno, e desmascarar os falsos arrazoados a respeito. O que vemos hoje nas fronteiras na Turquia, no Iraque, nos cenários da Líbia, tudo isso faz parte de um mundo diferente da primeira e da segunda onda de terrorismo. Nos alegra o retraimento do Isis, mas não compreendemos que cenários de terrorismo podem ainda ser abertos, quais estão sendo fechados, onde irão confluir.
Quando se fala de terrorismo, geralmente, se gira em torno dos mesmos argumentos.
Em primeiro lugar há a questão da "globalização", a distribuição escandalosamente desigual das mercadorias, o crescente fosso entre ricos e pobres e da pobreza no mundo, provocando fúria nas pessoas desfavorecidas. Terror, para alguns, é uma resposta às injustiças, assim como foi demonstrado nas grandes manifestações em Seattle ou Gênova, há alguns anos atrás. E, é claro, o terrorismo acrescenta uma resposta insensata.
Podemos contornar o terrorismo, dizem alguns, somente pondo fim a globalização, quebrar o poder dos negócios internacionais e tentando recuperar os mercados locais.
Além disso, o terrorismo é uma resposta ao capitalismo, dizem outros, e este é um absurdo "sistema" anticapitalista (embora seja flagrantemente errado). O capitalismo destrói as formas tradicionais de vida, a religião e a moral. É hedonista e decadente. Envenena o meio ambiente. Partindo deste ponto de vista, a ideia é que poderíamos pôr fim ao terror por meio da introdução de tecnologias alternativas.
Em segundo lugar, há um outro argumento usado frequentemente: "os Estados Unidos são culpados". Este argumento é útil em todas as estações. Diz-se: a) os Estados Unidos sempre foram historicamente culpados, especialmente nas relações com o mundo árabe e muçulmano, que foram constantemente humilhados pelos Estados Unidos: defenderam, de fato, no passado, os ditadores militares no Paquistão; quiseram sustentar os fundamentalistas (incluindo Bin Laden) no Afeganistão, contra os soviéticos; conduziram uma inesquecível (negativo) guerra contra o Iraque; continuam a ajudar os regimes reacionários do mundo árabe e nunca deixaram de sustentar Israel contra os palestinos. Além disso: b) a América é fonte de abominação moral, uma vez que tolera a homossexualidade, a amoralidade das mulheres, drogas, alcoolismo e promove a cultura de massa.
Em terceiro lugar, há o argumento do "fundamentalismo islâmico". Este arrazoado é muito complexo, mesmo à luz do que foi Al Qaeda e do que é o Isis. Esta argumentação pressupõe que a guerra principal da modernidade seja uma guerra cultural. As culturas europeias e a muçulmano não podem coexistir. O Islã é inferior à cultura europeia, mas alega, do seu ponto de vista, ser superior. A fúria, o ressentimento e o ódio do Islã são componentes essenciais dos ataques terroristas.
Nenhum dos argumentos acima citados realmente explicam os atos terroristas, porque não é correto partir exclusivamente da enumeração das causas. Ou seja, elas explicam o evento (que é o ataque terrorista), um evento contingente, com suas causas suficientes. Este procedimento é obviamente um contrassenso filosófico, já repudiado por Aristóteles na Metafísica.
Mesmo que se pudesse enumerar as causas suficientes de um acontecimento histórico, algo impossível, o evento permaneceria ainda contingente e não totalmente compreendido. Aristóteles dizia que é preciso conhecer a causa final e a causa formal, ou seja, a essência e a função de alguma coisa, a fim de poder explicá-la ou entendê-la.
Os diferentes arrazoados apresentados acima, portanto, não se sustentam. Aristóteles os teria imediatamente refutado. Por exemplo, duvido que a globalização seja responsável por todos esses males. A diferença entre Países pobres e ricos é realmente um problema geral, e é por isso que deve ser enfrentado em nível global - e não antiglobal. É evidente que apenas um tipo de política democrática e de redistribuição social seria capaz de resolver a questão, embora com esperança mínima de sucesso. Além disso, não os pobres, mas alguns entre os mais ricos são as mentes que estão por trás do terrorismo global e mesmo aqueles que realizam materialmente os ataques são frequentemente filhos de classe média.
Ora, que o capitalismo destrói muitas precedentes formas de vida é verdade. Por exemplo, destrói as monarquias tradicionais, as aristocracias tradicionais, bem como a autossuficiência do mundo rural. No entanto, se olharmos mais atentamente aos líderes e aos membros das organizações terroristas, especialmente no segundo tipo de terrorismo – o que seguiu o “11 de setembro” -, fica-se logo impressionado ao ver que são eles os verdadeiros beneficiários do capitalismo, pois devem sua posição à desconstrução das estruturas tradicionais. Voltando um pouco para trás, ao longo dos anos, não creio que tenhamos esquecido que o pai de Bin Laden, por exemplo, não era um príncipe, ou filho de príncipes, mas um self-made man, um burguês, como era Atta, o número três do terrorismo global, o protagonista dos ataques de 2001.
Na fase anterior, os melhores amigos dos terroristas eram os ditadores, como os da Síria, Iraque e Líbia. Nesta época, os terroristas eram leninistas, ou seja, fundamentalistas laicos (e alguns ainda o são); hoje, são quase todos muçulmanos fundamentalistas, incluindo os terroristas do terceiro tipo, entre os quais inserimos o Isis. Do nosso ponto de vista, no entanto, é ainda o mesmo, não mudou nada. Há fundamentalismos somente quando não há mais fundamentos.
Obviamente, o argumento dos Estados Unidos serem culpados pode ser facilmente refutado (e eu o fiz, em detalhes, em outro lugar). Mas o que é este fundamentalismo que está na base do terrorismo? Vejamos concretamente em Aristóteles.
É preciso proceder de maneira lógica e não se aventurar em previsões. Não sabemos que tipo de extremismo se manifestará no futuro. Agora devemos enfrentar a virulência do Isis que, como todos os terrorismos, tem um inimigo comum: não é o capitalismo, nem é a tecnologia moderna. É a democracia liberal, os direitos humanos e a laicidade. Por laicidade entendo a capacidade de escolher entre ter uma fé ou não tê-la. O inimigo inerente à democracia e à laicidade é a liberdade. A modernidade baseia-se na liberdade, um fundamento que não entra no fundamentalismo. Em liberdade pode-se optar para ir contra a liberdade, pode-se escolher livremente a não liberdade. Tal é a escolha dos fundamentalistas. Eles não renunciam a modernidade; eles não renunciam o capitalismo ou a tecnologia moderna, antes o contrário, o Isis faz com que ela seja um instrumento de poder. Renunciam à liberdade e aos valores do iluminismo. O fundamentalismo é um fenômeno moderno, oferece fundamentos num mundo onde não há nenhum. Mas os fundamentalismos estão por toda parte, no mundo moderno, mesmo entre os liberais. O fundamentalismo também pertence à história (passado e presente) dos Estados Unidos. Um sistema fechado de crenças (laicas ou religiosas) é um pressuposto do terrorismo moderno, mas é apenas um, entre muitos.
A segunda condição é uma organização totalitária. A organização totalitária foi inventada por Lênin, em 1903, no Congresso do Partido Socialdemocrata Russo, onde fundou a facção Bolchevique. Lênin criou um sistema partido capaz de funcionar como o exército. O centro emite os comandos e cada unidade hierarquicamente estruturada da organização, em todos os níveis, obedece. Um tal partido, argumentou Lênin, é capaz de operar de modo seguro e subterrâneo, ilegalmente. A organização é uma totalidade, porque se baseia numa verdade compartilhada. Na visão de Lênin, cada membro deve aceitar a doutrina marxista como Verdade absoluta. E acrescentou mais duas características importantes para a imagem do seu poder. Democracia e liberalismo são inimigos absolutos, entre outras razões, porque os liberais falam somente de ideais, enquanto os revolucionários sabem e devem agir. O partido totalitário de Lênin foi, de fato, uma nova invenção, e tornou-se, na história, o modelo para os totalitarismos e os fundamentalismos sucessivos, como os partidos comunistas da Europa ou da Ásia, o nazismo e os partidos fascistas na Europa, no Médio Oriente e na América Latina.
É terrivelmente difícil para nós hoje, com cenários obscuros e redes terroristas complexas – conduzir-se entre o fundamentalismo e o niilismo, entre o fanatismo e o cinismo, entre visões do mundo completamente fechadas e o relativismo total. Não há dúvida, no entanto, que base sólida para o terrorismo é uma visão niilista do mundo e da humanidade. Por que nós –democratas e liberais – temos que pedir desculpas por estarmos absolutamente convencidos de que o tesouro da vida moderna é a possibilidade aberta de navegar num mundo mais respeitoso dos direitos individuais? Por que tantas vezes fugimos de dizer simplesmente "não!", sem sofisticação e intelectualismo, sempre que este tesouro, como a democracia e a liberdade, torna-se alvo de ódio, cada vez que salvadores autoproclamados tentam destruir estes valores?
Em resposta ao desafio do terror global podemos, mais uma vez, recorrer ao Iluminismo. Diante de um assassinato por fanatismo religioso, Voltaire dirigiu-se aos compatriotas com a ordem: "Ecrasez l’infame!" Esmagai o infame.
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Aristóteles contra o Isis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU