01 Fevereiro 2018
Em 30 de janeiro de 1948, Mohandas Karamchand Gandhi foi assassinado por um radical hindu. O magnicídio perpetrado por um dos seus foi o epílogo paradoxal de uma vida dedicada ao ahimsa — a não violência —, a noção incorruptível que havia conduzido 255 milhões de súditos a se rebelarem contra dois séculos de domínio britânico.
Conquistada a independência, o pai da Índia quis enfrentar os maiores desafios do país: erradicar a tradição dos intocáveis e pacificar muçulmanos e hindus. Ambos os desafios, imperdoáveis para seus inimigos, são ainda hoje questões pendentes.
A reportagem é de Ángel L. Martínez Cantera, publicada por El País, 31-01-2018.
“Ele mesmo aceitou seu fracasso”, reconhece seu bisneto, Tushar Gandhi. “O sistema de castas estava tão arraigado nesta cultura que os fustigamentos continuam 70 anos depois”, explica de sua residência em Mumbai, onde ocorreu o último enfrentamento entre castas no início do ano. “Pensar que seu povo havia entendido sua mensagem foi seu maior erro”, opina Tushar Gandhi. A máxima que melhor define seu bisavô, para ele, é esta: “Minha vida é minha mensagem”. Seu legado inspirou Martin Luther King, Nelson Mandela e Lech Walesa.
Rebatizado Mahatma — alma grande —, Gandhi transformou o anticolonialismo elitista indiano em um movimento de massas pela independência. Depois de viver na África do Sul, no seu retorno à Índia em 1915 deixou seu traje de advogado londrino e se vestiu com um humilde dhoti (a tanga tradicional) para viajar pelo imenso subcontinente. A mensagem transcendeu então as fronteiras religiosas e toda tarde, durante três décadas, seus comícios eram dosados com passagens dos livros sagrados do hinduísmo, islamismo, cristianismo e sikhismo. Desse modo fez um chamado aos desapoderados da sociedade, de todas as religiões, para participarem de uma luta travada até então em escaramuças intermitentes contra o poder britânico e em debates políticos.
Desarmados ante a superpotência do século XIX, Gandhi reforçou sua mensagem com a arma moral da satyagraha, a insistência na verdade. A resistência pacífica, uma estratégia política sem precedentes, impossibilitou a repressão dos insurretos. “A imagem benfeitora do colonialismo britânico desmoronou. Quantas pessoas podem ser punidas quando há centenas de milhares insubmissos?”, pergunta retoricamente Mridula Mukherjee, doutora em História na Universidade Jawaharlal Nehru (JNU), de Nova Délhi. Coautora de India's Struggle for Independence (A Luta da Índia pela Independência), Mukherjee ressalta o papel das mulheres nas revoltas como protagonistas de piquetes contra o consumo de álcool e o uso de têxteis britânicos em detrimento da produção indiana, o que no final desmantelou a economia colonial.
Assim, a mensagem de Gandhi conseguiu que mulheres e homens de todas as classes e condições contribuíssem para o sucesso da independência. Mas fracassou em sua tentativa de eliminar a discriminação entre castas. Em uma sociedade dividida em centenas de línguas, mais de 4.000 etnias e um complexo sistema de segregação, Gandhi dignificou os mais párias entre os pobres. Desde 1910, quando forçou os brâmanes — castas altas — a limpar latrinas, um trabalho imposto até então aos dalits — intocáveis. Além disso, em 1933 viveu com dalits e desafiou os brâmanes a demonstrar que as escrituras sagradas hindus pregavam a marginalização das castas baixas.
“Ele nunca quis que os dalits mudassem suas ocupações, mas, sim, enobrecê-las”, explica Valerian Rodrigues, historiador da Universidade de Ambedkar, de Délhi. Já Bhimrao Ramji Ambedkar, dalit de nascimento e advogado, “lutou para empoderar os intocáveis”. Enfrentou Gandhi com veemência, defendendo que os dalits escolhessem seus representantes políticos com independência do restante do eleitorado, um privilégio que o Raj Britânico [a lei da Coroa na Índia] havia dado antes aos muçulmanos indianos. Gandhi defendia um modelo de cadeiras reservadas para os representantes dos dalits, mas escolhidos por todos os eleitores. Usando a greve de fome, Gandhi impôs seu critério contra o de Ambedkar.
Hoje, a Constituição da Índia, da qual Ambedkar foi arquiteto, protege legalmente os dalits, que também contam com um sistema de quotas em educação e empregos públicos. A visão de Gandhi sobre os intocáveis, porém, continua sendo foco de dura crítica social. Uns reprovam seu conservadorismo, acusando-o de curvar-se às classes dominantes. Outros entendem a posição do pai da nação, que vivia horrorizado com a ideia de que a mesma divisão política que conduziu à dolorosa partição da Índia para criar o muçulmano Paquistão acabasse com a cultura hindu.
Assim, induzidos pela estratégia britânica de fragmentar a Índia em suas diferentes identidades religiosas, os líderes muçulmanos exigiram um Estado próprio. A libertação colonial se transformou por fim no desmembramento do subcontinente. “O que há para comemorar?”, escreve Gandhi sobre a “vivissecção da Mãe” enquanto as elites políticas festejam a independência em 15 de agosto de 1947. Em três anos, 14,5 milhões de pessoas cruzaram as fronteiras entre índia e Paquistão em um dos maiores êxodos da história. Meio milhão de muçulmanos e hindus morreram assassinados.
“A situação o torturou. Sentiu que sua vida e sua mensagem tinham sido em vão. Seus jejuns buscavam pôr fim à violência. Mas também mortificá-lo porque se sentia responsável pelo que ocorrera”, explica o bisneto. Dirigentes de todo o país recorreram ao quase octogenário Gandhi para frear as matanças. Até esse momento, a vontade inquebrantável do Mahatma e suas greves de fome haviam conseguido deter a violência pelo menos em quatro ocasiões.
Durante seu último jejum em Nova Délhi, porém, os radicais pediam que o deixassem morrer de fome. A capital da Índia independente se transformara em refúgio de um milhão de hindus chegados do Paquistão. Enquanto isso, o primeiro conflito na Caxemira se agravava pela controvérsia sobre a divisão de bens entre as duas novas nações.
Gandhi tinha prometido dividir a compensação econômica britânica com o vizinho Paquistão, agora inimigo de guerra.
Gandhi cumpriu o pactuado — o equivalente a 28 milhões de reais. Algo inaceitável tanto para brâmanes, que se consideravam atacados por seu ideário de respeito aos intocáveis, como para os radicais religiosos que ansiavam por um Estado hindu distante do secularismo. Das fileiras desses grupos saiu o homem entre a multidão que disparou contra Gandhi na hora da reza há 70 anos completados nesta terça-feira. O precursor do ativismo sem violência não pôde pacificar os seus. Mas seu assassinato deu origem a uma década sem hostilidades religiosas na Índia.
No final de 1946, Gandhi se traslada para Noakhali (Bengala Ocidental), onde 5.000 hindus tinham sido assassinados. Ali ocorre um dos episódios mais controversos de sua vida. Ele mesmo contou que dormiu nu com suas discípulas, menores de idade.
“Gandhi conecta a violência com sua capacidade de autocontrole. Busca respostas ante seu fracasso. E põe à prova o poder sobre seu corpo”, justifica Mukherjee. Para a historiadora, Gandhi duvida do próprio exemplo como homem de paz e de sua capacidade para dominar seus desejos, incluído o brahmacharya — celibato —, ao qual foi fiel desde 1906.
Por sua vez, Tushar Gandhi não sabe explicar a motivação desses atos, mas ressalta o inusitado tratamento entre seu bisavô e as mulheres de seu entorno. “Manuben Gandhi [uma das meninas com as quais fez a experiência] se referia a ele como ‘minha mãe’. As relações com o Mahatma transcendiam as questões de gênero.”
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A luta inacabada de Gandhi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU