07 Dezembro 2017
Final de ano se aproximando. O Conselho da Aty Guasu Kaiowá Guarani sentiu a necessidade de realizar um momento forte de muita reza e luta, especialmente para enfrentar os poderosos inimigos e avançar na reconquista de seus territórios tradicionais, os tekoha - lugar onde se é.
As informações são de Egon Heck, secretariado Nacional do Cimi, e Adalto Guarani e Kaiowá, publicadas por Conselho Indigenista Missionário – CIMI, 06-12-2017.
Foi também um momento de memória das importantes lutas, avanços e derrotas, com o assassinato de dezenas de lideranças. Foi escolhido a Terra Indígena Pirakuá, pelo seu forte simbolismo, pois em torno da recuperação desse tekoha se deu o início de uma longa caminhada de luta pela terra.
É uma das poucas terras com o processo de regularização concluído e totalmente ocupado pelos Kaiowá Guarani. Boa parte da terra ainda está coberta de mata nativa. Essa foi a segunda Aty Guasu realizada nesta aldeia, em quase 40 anos. Foram mais de 400 participantes indígenas do Brasil, Argentina e Paraguai.
(Foto: Eon Heck | CIMI)
Um momento de tensão aconteceu quando no final do segundo dia apareceu um grupo do Fórum dos Caciques, que é uma divisão do movimento indígena no Mato Grosso do Sul, forjado na Assembleia Legislativa por ocasião da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o Conselho Indigenista Missionário (CPI) - que teve seus encaminhamentos absurdos arquivados por falta de provas das acusações absurdas feitas contra a entidade.
Depois dos 12 indígenas Terena, Kinikinau e Ofaié se apresentarem e manifestarem seu desejo de participação nos dois últimos dias da Aty Guasu, uma forte e contundente manifestação contrária a essa presença indesejável foi encabeçada pelas mulheres. Questionaram o fato de serem subvencionados e se sentarem ao lado dos notórios inimigos dos índios. “Quem senta ao lado de criminosos é criminoso também, afirmou um das mulheres Kaiowá Guarani. Após falas contundentes, a decisão inconteste: “Vocês não vão ficar na nossa Grande Assembleia. Podem ir embora”.
Atanásio Kaiowá Guarani, beirando os 90 anos, continua sendo figura central nessa Aty Guasu. Como Nhanderu é o mais procurado para abençoar os inúmeros indígenas que vão buscar a sua benção, e conduzir os rituais realizados com muita força e intensidade espiritual. O primeiro e mais importante dia da Grande Assembleia foi conduzido pelos líderes religiosos que conduziram os rituais e depoimentos dos Nhanderu e Nhandesi. Atanásio falou sobre o território: “Temos reza para amenizar a dor e as feridas espirituais".
O velho Nhanderu acrescentou: “O pai (pa’i kuara) e nosso grande deus vão nos ajudar. Meu pai me ensinou para fazer o bem para os Guarani e Kaiowá. Mas os brancos não. Muitas vezes temos muita misericórdia dos brancos e os brancos nunca tiveram de nós. Para que os jovens, crianças, possam seguir os caminhos de antes, ajudar o povo e saber lutar contra o branco é preciso perguntar aos mais velhos como são as coisas em nossa cultura.”
Para Atanásio, é preciso “viver direito e praticando sempre a nossas rezas; todas as noites, manhãs, tardes. Por exemplo, quando a mulher vai ter um filho ela procura o médico ao invés de procurar o rezador que lhe dirá como é ter e criar um filho na cultura Kaiowá e Guarani. Para que as lideranças não morram na retomada das terras, tem que consultar primeiro o rezador.”
O Nhanderu Lico Nelson Guarani e Kaiowá assim expressou seu apelo: “sim, nos rezadores somos sempre simples e humildes e somos os advogados dos advogados, os juízes dos juízes, mas somos humildes e não temos orgulho ruim. Não nos exibimos e nem nos achamos maiores que o povo".
"Hoje falo e peço para os jovens e novas lideranças que estão à frente da Aty que acompanhem muito a luta, pois nós já estamos partindo e quem sofrerá são nossos filhos e nossos netos. Saibam que a cultura dos brancos nunca vai nos salvar: nem a terra, nem nossas vidas. Por isso todos têm que aprender o caminho da reza. Nós temos a maior das armas. A reza, o mbaraká e temos que estudar a escola da reza. Às vezes, o próprio indígena não tem fé no mbaraká deixando nossos rezadores para trás sem poder ajudar na batalha. As igrejas influenciam muito as pessoas e nunca vai entender que temos uma cultura e espiritualidade própria que pode e deve ser manifestada por nós. Acredito que nós não vamos mais permitir que a cultura dos brancos invada nosso modo de viver”, discursou Nhanderu Lico Nelson Guarani e Kaiowá.
Alda Nhandesi explicou como foi feito a retomada do Pirakuá. Lembrou que foi uma das rezadoras que participou da retomada. “Pirakuá se chamava Puente Kyhá e eu ajudei a liderar a reza. Quem tava junto era Lico, Rosalino, Carlito, Amilton Lopes. E hoje eu vim de novo nesta comunidade, depois de 30 anos. Queria dizer para os novos que estão nessa luta para conversar mais com os rezadores e valorizarem o que deixamos para eles, nossa cultura e nosso modo de viver e a língua. Quando vamos por nosso caminho, é preciso ir rezando durante a caminhada. Eu estive muito tempo nessa resistência e em meu tempo nós valorizamos muito os rezadores, por isso conseguimos demarcar. Qualquer liderança que for retomar, favor procurar os anciões”.
Rivarolla Guarani Mbya, cuja aldeia fica na Argentina, falou da importância da união dos esforços e da lutar conjunta: “Sempre estamos pensando em unificar os quatro países para que possamos comunicar melhor e também para que os povos originários sempre possam serem vistos como uma grande nação. De hoje em diante precisamos fazer documentos que iniciem esta articulação. Penso que no futuro nossos netos e nossos filhos precisam desta memória. De que somos uma nação independente das fronteiras. E que juntos poderemos fazer uma luta mais forte".
Para o Mbya a luta não pode ser separa. "Quando ouço os Kaiowá e vejo as imagens do genocídio isso me dói. Não posso permitir que isto aconteça. Nestes tempos cada governo de cada país, juízes, polícia têm que respeitar nossa organização social. O problema Kaiowá é um problema internacional, pois me incluo na sua luta e desejo sempre uma boa vida aos irmãos do Brasil. Seguimos juntos". Eliseu Lopes Kaiowá Guarani concluiu uma de suas falas dizendo: “Não é tempo de ter medo ou dúvida, agora é hora de seguir com toda força. Temos que ter isso na cabeça. Agora temos que pensar: É enfrentar ou morrer”.
(Foto: Egon Heck | CIMI)
Nós, povo Guarani e Kaiowá reunidos na Aty Guasu, nos dias 27/11 a 01/12/2017 na Aldeia Pirakuá, semente de nossa luta e reconquista de nossa terra, razão pela Marçal Tupa’i foi assassinado enquanto lutava pelo seu povo.
Essa Aty Guasu foi marcada pela participação de nossos parentes Guarani Nhandeva, M’bya e Pa’i tavy terã da Argentina e do Paraguai, além da presença solidária de aliados, entre os quais a UNILA (Universidade Latino americana).
Para nós a Aty Guasu foi um grande momento celebrativo, memória dos que tombaram na luta pelo nosso Território tradicional realizado com muito ritual, muita emoção e lágrimas. “Nossos mortos têm voz”. A Aty Guasu foi um momento forte para fortalecer e valorizar nossos Nhanderu e Nhandeci, nossos mestres tradicionais e que estiveram presente em número significativo.
Essa Aty Guasu, depois de 40 anos, vem mostrar que esse é o único e mais eficaz caminho para conquistar nossos territórios e garantir os nossos direitos. Desde a retomada de Pirakuá em 1982 até hoje foram mais de 40 retomadas realizadas, cujo processo de regularização deveria estar sendo realizado pela FUNAI.
Em 2002 o governo através da FUNAI assumiu a demarcação das terras dos povos Guarani e Kaiowá como prioridade do órgão. Porém, nos cinco anos seguintes nada foi feito. Foi então que as nossas lideranças junto com o Ministério Público decidiram ir a Brasília para pressionar a demarcação de suas terras. Nesta ocasião foi assinado o TAC (Termo de ajustamento de conduta) em que a FUNAI se comprometia a identificar todas as terras Kaiowá e Guarani nos anos seguintes. Passaram-se dezoito anos e a maior parte das terras não foi regularizada e pelo menos cinco das lideranças que assinaram o TAC já morreram.
Essa omissão do governo é a razão do quadro extremo de violência e genocídio em que passa os kaiowá e Guarani. Situação que gera muita indignação e revolta em todos nós. Nossas lideranças continuam sendo perseguidas, criminalizadas e assassinadas. Toda essa situação causa danos físicos e psicológicos nas pessoas levando em muitos casos a dependência química e ao suicídio.
Não resta às nossas comunidades outro caminho a não ser a retomada das terras tradicionais.
- Repudiamos a tradição das PECs no Supremo Tribunal e no Congresso Nacional, não aceitamos a tese do Marco Temporal. Ele é um decreto de morte para nosso povo;
- Repudiamos o discurso preconceituoso e discriminatório do deputado Eduardo Bolsonaro contra os povos indígenas e comunidades tradicionais;
- Repudiamos a justiça brasileira, segunda instância de São Paulo que colocou em liberdade os cinco fazendeiros responsáveis pelo assassinato de Clodiodi no massacre de Caarapó;
- Repudiamos as ações violentas praticadas contra nosso povo, os assassinatos e ocultação dos corpos de Rolindo Vera e Nísio Gomes e que a justiça até agora não se pronunciou;
- Repudiamos o decreto baixado pelo presidente Michel Temer autorizando o porte de armas para a defesa da propriedade privada porque isso estimula a violência e os ataques aos povos indígenas e comunidades tradicionais.
- Denunciamos a destruição da natureza com o uso abusivo de agrotóxicos que poluem o ar, a terra e as águas atingindo nossas comunidades. Estamos adoecendo cada vez mais. Não aguentamos mais, voltaremos às nossas terras para dela cuidar e viver com dignidade. Continuaremos denunciando essa situação em nível nacional e internacional como um dos piores quadros vividos hoje no Brasil e no mundo;
- Denunciamos o Estado brasileiro pela omissão em relação aos nossos direitos e pela prática de violência contra nosso povo, de modo especial a agressão às nossas crianças que estão sendo retirada das nossas comunidades para colocar em abrigos encaminhadas para adoção;
- Denunciamos as práticas colonizadoras genocidas e etnocidas que continuam cooptando lideranças, provocando divisões e conflitos entre os povos indígenas;
- Denunciamos os ataques agressivos praticados pela polícia federal, militar, civil, rodoviária, DOF, bombeiro, ambulâncias e funerárias nas ações de reintegração de posse;
- Denunciamos os fazendeiros, sindicato rural, FAMASUL que além de invadir as nossas terras fomentam os ataques paramilitares e mantêm pistoleiros vigiando e dando tiros em cima de nossos tekohas;
- Repudiamos e denunciamos o poder judiciário pelas constantes ações de despejos em nossos tekohas.
- Fortalecer a nossa luta através dos nossos rituais, da nossa cultura. Nós continuaremos resistindo para conquistar e defender nosso território, apenas tendo nosso corpo como escudo. Se caso persistir a reintegração de posse o Estado brasileiro será responsável, pois haverá morte coletiva do povo Guarani e Kaiowá, nós resistiremos até o fim;
- Unificar a nossa luta como nação Guarani, hoje presente em cinco países: Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai com 280 mil habitantes e 1400 comunidades.
Resistimos na esperança, crescemos na união fazendo nascer de nosso chão, regado com nosso próprio sangue e com as lágrimas dos nossos sentimentos, novos guerreiros.
Aldeia Pirakuá, 01 de dezembro de 2017
Aty Guasu - Povo Guarani, Grande Povo
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Aty Guasu: "Temos misericórdia dos brancos e os brancos nunca tiveram de nós", afirma Guarani Kaiowá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU