04 Novembro 2008
É um Jesus que luta contra a injustiça. E, portanto, também contra as “mentiras” e os “danos” da encíclica de Paulo VI que proibiu a anticoncepção artificial. Assim afirma o ex-arcebispo de Milão em seu último livro. Mas, enquanto isso, em outro livro, duas estudiosas delineiam de modo diferente o espírito desse documento.
A reportagem é de Sandro Magister, publicado em seu sítio Chiesa, 03-11-2008. A tradução é de MoisésSbardelotto.
Em seu último livro-entrevista que foi publicado primeiro na Alemanha e agora na Itália, o cardeal Carlo Maria Martini se autodefine não como um antipapa, como freqüentemente é apresentado pelos meios de comunicação, mas sim como “um ante-Papa, um precursor e preparador para o Santo Padre”.
Segundo o que se lê no livro, são muitos os pontos sobre os quais o cardeal Martini se apresenta muito distante do Papa reinante e de seus últimos predecessores.
Se compararmos, por exemplo, o “Jesus de Nazaré” de Bento XVI e o Jesus descrito pelo cardeal Martini nesse livro, a distância é impressionante. Quem o diz é o jesuíta alemão que faz as vezes de entrevistador, padre Georg Sporschill, sem esconder a quem dá a sua preferência:
“O livro do pontífice é uma profissão de fé no bom Jesus. O cardeal Martini nos coloca frente a Jesus desde outra perspectiva. Jesus é o amigo do publicano e do pecador. Escuta as perguntas da juventude. Gera confusão. Luta junto a nós contra a injustiça”.
É exatamente assim. Nas palavras do cardeal, o Sermão da Montanha é uma carta dos direitos dos oprimidos. A justiça é “o atributo fundamental de Deus” e “o critério de distinção” com os quais Ele nos julga. O inferno “existe e está sobre a terra”: na pregação de Jesus era “um chamado” a não produzir muito inferno aqui. O purgatório é também “uma imagem” desenvolvida pela Igreja, “uma das representações humanas que mostra como é possível que você se preserve do inferno”. A esperança final é “que Deus acolha a todos nós”, quando a justiça ceda o passo à misericórdia.
O estilo expressivo de Martini é como sempre o claro-escuro, o difuso, desde o título deste seu último livro: “Conversações noturnas em Jerusalém. Sobre o risco da fé”. Sobre o celibato do clero, por exemplo, diz e não diz. Igualmente sobre as mulheres sacerdotes. E sobre a homossexualidade. E sobre os preservativos. Também quando critica a hierarquia da Igreja, não diz nomes, nem das pessoas, nem das coisas.
Mas desta vez há uma exceção. Em um capítulo do livro, o alvo explícito é a encíclica de Paulo VI de 1968, “Humanae vitae”, sobre o matrimônio e a procriação. Martini a acusa de ter produzido “um grave dano” com a proibição da contracepção artificial: “muitas pessoas se afastaram da Igreja, e a Igreja, das pessoas”.
Martini imputa a Paulo VI o fato de ter escondido deliberadamente a verdade, deixando que depois fossem os teólogos e os pastores os que remediassem a situação, adaptando os preceitos à prática.
“Eu conheci bem a Paulo VI. Com a encíclica, queria expressar consideração pela vida humana. Ele explicou a alguns amigos sua intenção, valendo-se de uma comparação: ainda que não se deva mentir, às vezes, não é possível agir de outra maneira; talvez seja necessário esconder a verdade, ou seja inevitável dizer uma mentira. Compete aos moralistas explicar onde começa o pecado, sobretudo nos casos em que existe um dever maior que a transmissão da vida”.
Com efeito, prossegue o cardeal, “depois da encíclica ‘Humanae vitae’, os bispos austríacos e alemães, e muitos outros bispos, seguiram, com suas declarações de preocupação, uma orientação que hoje poderíamos levar adiante”. Uma orientação que expressa “uma nova cultura da ternura e uma aproximação da sexualidade mais livre de preconceitos”.
Depois de Paulo VI, veio João Paulo II, que “seguiu o caminho de uma rigorosa aplicação” das proibições da encíclica. “Não queria que surgissem dúvidas sobre esse ponto. Parece que pensou inclusive em uma declaração que gozasse do privilégio da infalibilidade papal”.
E depois de João Paulo II, veio Bento XVI. Martini não diz seu nome e não parece confiar nele, mas aventura esta previsão:
“Provavelmente, o Papa não retirará a encíclica, mas pode escrever uma nova sobre a matéria, que seja a sua continuação. Estou firmemente convencido de que a direção da Igreja pode mostrar um caminho melhor daquilo que a ‘Humanae vitae’ não conseguiu. Saber admitir os próprios erros e a limitação das próprias visões de ontem é sinal de grandeza de ânimo e de segurança. A Igreja voltará a adquirir credibilidade e competência”.
Até aqui, Martini. Mas quem se limita a ler seu último livro, não aprenderia nada nem da letra, muito menos do espírito daquela tão criticada encíclica.
Muito mais instrutivo, desde esse ponto de vista, é o discurso que o Papa Joseph Ratzinger dedicou à “Humanae vitae” no dia 10 de maio deste ano. Ilustrando seus conteúdos, afirmou que, “40 anos depois de sua publicação, essa doutrina não só segue manifestando sua verdade, como também revela a clarividência com que se enfrentou o problema”.
E ainda mais interessante – para entender o contexto próximo e remoto em que a “Humanae vitae” tomou forma – é a leitura de um livro publicado na Itália pouco antes que o do cardeal Martini.
O livro é intitulado “Dos en una carne. Iglesia y sexualidad en la historia” [Dois em uma carne. Igreja e sexualidade na história]. E tem como autoras duas estudiosas, ambas militantes femininas nos anos 60, ambas historiadoras, uma laica e outra católica: Margherita Pelaja e Lucetta Scaraffia.
Essa última dedica um amplo capítulo à “Humanae Vitae”, reconstruindo sua gênese, os conteúdos e os desenvolvimentos. Segue aqui a parte final do capítulo:
* * * * *
E chegou o método dos esposos Billings
por Lucetta Scaraffia
Paulo VI não chegou a se fazer entender, a se fazer escutar, “pelos homens do nosso tempo”, porque suas palavras não chegaram a superar o muro de desilusão e de protesto que se levantou contra a “Humanae vitae” de maneira imediata inclusive entre os católicos. O diálogo entre os inovadores decepcionados e a Igreja, ao relê-lo hoje, parece um diálogo de surdos, tanto que esta encíclica se tornou a menos lembrada pela própria Igreja entre as encíclicas do século XX, quase um feio incidente que se deve esquecer.
Isso não exclui o fato de o magistério da Igreja nos anos sucessivos tenha retomado a tese da encíclica. A condenação à intervenção humana na procriação, estabelecida nela com clareza – mas, de resto, já antecipada sem ambigüidades por João XXIII na encíclica “Mater et magistra” de 1961 –, constituirá um precedente importante para a moral católica não só com relação ao controle dos nascimentos, mas também com relação às técnicas de fecundação artificial e de manipulação dos embriões que se afirmariam no final do século XX. E a concepção de lei natural, expressada na encíclica, uma concepção de caráter personalista, mas ligada a uma idéia de natureza humana que deve ser respeitada porque foi criada por Deus à sua imagem e semelhança, será retomada e desenvolvida por João Paulo II.
Um dos mais oportunos e valentes defensores da encíclica foi precisamente, de fato, o cardeal KarolWojtyla, que havia sido um dos consultores de Paulo VI. Wojtyla, além disso, era um dos poucos cardeais que havia se ocupado da moral sexual, em um livro intitulado “Amor e responsabilidade”, publicado em polonês em 1960 e depois traduzido a outras línguas européias. No livro, Wojtyla enfrenta temas como “análise da palavra gozar”, “a libido e o neomalthusianismo”, “análise da sensualidade” e “a castidade e o ressentimento”, com uma clareza e falta de preconceitos na linguagem a que a tradição católica certamente não estava acostumada.
Sua definição da tendência sensual se contrapõe a “um espírito hipnotizado pela ordem biológica” e dá amplo espaço à inteireza da pessoa: “A tendência sexual é a fonte do que se verifica no homem, dos diversos acontecimentos que ocorrem em sua vida sensorial ou afetiva sem a participação de sua vontade. Isso prova que ela faz parte do ser humano total e não somente de uma de suas esferas ou faculdades. Impregnando todo o homem, ela tem o caráter de uma força, que se manifesta não apenas através do que se verifica no corpo do homem em seus sentidos ou sentimentos, sem a participação da vontade, mas também através do que também se forma com seu concurso”.
O futuro Papa critica o conceito freudiano de libido por sua estreita correlação “com a atitude utilitarista”, que confere ao ato sexual um significado tipicamente egocêntrico: “A sensualidade só não é, pois, amor e pode também muito facilmente se tornar o contrário do amor”.
Mas ele não condena por isso a sensualidade nem o corpo: “Convém precisar que existe uma diferença entre o amor carnal e o amor do corpo, porque o corpo, enquanto elemento da pessoa, pode também ser objeto do amor e não somente da concupiscência”.
Em conclusão, depois de ter denunciado o erro de uma cultura que “rejeita reconhecer o grande valor da castidade para o amor”, se lança a refutar a idéia cada vez mais difundida de que “a falta de relações sexuais é nociva para a saúde do ser humano em geral, e para a do homem em particular. Não se conhece uma só doença que possa confirmar a veracidade dessa tese”, enquanto “as neuroses sexuais são, sobretudo, conseqüência dos excessos na vida sexual e se manifestam quando o indivíduo não se conforma à natureza e seus processos”.
Esse livro demonstra como Wojtyla, mesmo antes da encíclica, havia visto o perigo – que a “Humanae vitae” colocaria de guarda – de deixar o problema do ato conjugal e da procriação fora da esfera ética e de tirar, assim, o homem da responsabilidade de ação profundamente radicada em sua estrutura pessoal. No artigo que escreveu em defesa da encíclica no L`Osservatore Romano do dia 05 de janeiro de 1969, Wojtyla retoma a interpretação personalista do ato conjugal e sustenta que não há identificação entre o amor conjugal e sua expressão privilegiada, o ato sexual: “Esse amor se expressa também na continência – também periódica –, porque o amor é capaz de renunciar ao ato conjugal, mas não pode renunciar ao dom autêntico da pessoa”.
Dez anos depois, pouco antes de ser eleito Papa, Wojtyla escreve de novo sobre a encíclica, tratando de explicar “a visão integral do homem” da qual Paulo VI fala e de mostrar no que consiste a “dignidade da pessoa”: o homem não é um ser dividido, porque “o ser e o valor devem constituir juntos o princípio hermenêutico do homem”. O homem e a mulher, portanto, devem viver o ato conjugal na verdade: essa verdade interior do ato que está indicada pelo texto da encíclica.
Consciente do mal-estar que acompanhou a aparição da “Humanae vitae”, mal-estar ainda vivo dez anos depois, apenas eleito Papa, Wojtyla realiza o projeto de Paulo VI de convocar um sínodo sobre a família, que ocorre em setembro de 1980. No curso da assembléia sinodal, tem a ocasião de retomar as teses da tão criticada encíclica, que define como profética, e de apresentar as que seriam as proposições da exortação apostólica “Familiaris consortio”, dada no ano de 1982. Nela, desenvolve em chave personalista os argumentos da encíclica: o amor envolve o homem como um todo; a sexualidade “não é algo puramente biológico, mas concerne à pessoa no que tem de mais íntimo”; o matrimônio tem caráter sagrado porque toca a mais profunda essência do homem, o ponto em que está unido com Deus. O vocabulário dos fins do matrimônio é colocado de lado definiticamente, enquanto a concepção de sexualidade que emerge do documento é plenamente humana, ligada à pessoa, que não pode jamais ser usada como objeto. Nesse contexto, o corpo adquire um sentido positivo total, ligado ao espírito na unidade: o princípio personalista implica que todas as dimensões do ser humano participem da dignidade pessoal e, portanto, sejam objeto de respeito e nunca consideradas como simples instrumentos. Para João Paulo II, a sexualidade, intimamente ligada à pessoa, é o sinal corporal da doação total da pessoa em seu colocar-se em relação com outra pessoa.
Também testemunham a atenção do Papa a esse tema as catequeses que manteve a partir de maio de 1984 sobre o tema “o amor humano no plano de Deus”, em que busca colocar em relação a verdade e a ética percorrendo as raízes da concepção do corpo na tradição da Escritura.
Durante o pontificado de João Paulo II ocorreu também a revolta na investigação científica desejada por Paulo VI na “Humanae vitae”, isto é, o descobrimento de um método de regulação dos nascimentos, baseado no período infértil mensal, fácil de aplicar e seguro. Mas a notícia no mundo desenvolvido não saiu além do ambiente católico, e também ali não foi suficientemente difundida nos países ocidentais como a Itália, enquanto que teve muito êxito no Terceiro Mundo.
Nos países ocidentais, de fato, os métodos naturais seguiram sendo considerados não somente totalmente ineficazes, mas também incômodos e difíceis de aplicar. Além disso, têm também outra característica, não mencionada, que contribuiu com seu menosprezo: o fato de serem gratuitos. Nenhuma companhia farmacêutica tinha interesse em financiar pesquisas sobre essa forma de controle de natalidade, que convinha mais cobri-la de ridículo e de descrédito.
Mas um casal de médicos australianos de Melbourne – Evelyn e John Billings, ele de antiga ascendência católica irlandesa, ela convertido ao catolicismo com o casamento – dedicou a vida a essa investigação, obtendo, desde 1964, resultados importantes. O novo método natural que levou o nome deles não era complicado e escassamente eficaz – como são os da temperatura e do ritmo ovulatório, que foram experimentados até o momento – mas, pelo contrário, eram simples e seguro. Trata-se de um método muito simples, sem custo algum, baseado no conhecimento que toda mulher deveria estar em condições de ter de seu próprio corpo. Para quem se lembra das campanhas das feministas pelo descobrimento do aparelho sexual feminino – nos anos 60, aconselhava-se as mulheres a pegar um espelho e explorar seu próprio sexo – o método Billings parece perfeito: a mulher controla sua potência criadora por meio do conhecimento de si mesmo, sem a mediação de médicos e remédios, com perfeita autonomia. Na realidade, as feministas sempre o trataram com desprezo.
Mas, enquanto isso, o método Billings difundiu-se no mundo: o casal australiano chegou a fundar centros inclusive na China, onde o governo imediatamente entendeu a utilidade de um método gratuito e sem efeitos colaterais para a saúde das mulheres; e na Índia, onde o método foi ensinado pela madre Teresa de Calcutá e por suas religiosas. O escasso entusiasmo que o método parecia despertar nos ricos e modernos países ocidentais, talvez, pode ser explicado também observando o modelo de comportamento sexual considerado favorável: o método Billings, de fato, pressupõe uma fidelidade do casal, uma sexualidade vivida juntos e com responsabilidade por ambos, muito distante do mito da completa liberdade sexual e da separação entre sexualidade e procriação que se enraizou nas sociedades ocidentais.
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Os livros:
Carlo Maria Martini, Georg Sporschill, "Conversazioni notturne a Gerusalemme. Sul rischio della fede" [Conversações noturnas em Jerusalém. Sobre o risco da fé], Mondadori, Milano, 2008, 128 páginas; 17 euros.
Margherita Pelaja, Lucetta Scaraffia, "Due in una carne. Chiesa e sessualità nella storia" [Dois em uma carne. Igreja e sexualidade na história], Laterza, Roma-Bari, 2008, 324 páginas; 18 euros.
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O Jesus do cardeal Martini nunca escreveria a "Humanae Vitae" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU