Chico de Oliveira e o ovo do ornitorrinco

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Por: Cesar Sanson | 16 Junho 2015

"O clássico Crítica à razão dualista de Chico de Oliveira traz como argumento central a crítica ao dualismo defendido pela Cepal que via no Brasil um setor avançado e um setor atrasado. Chico contraria esta lógica, ao sustentar que aquele atraso é integrado ao setor avançado, Ele mostra que vão se criando trabalhadores precarizados, porém funcionais para o capitalismo brasileiro. É um capitalismo atrasado, que por não conseguir competir no mercado internacional, promove o rebaixamento da mão de obra para que possa se reproduzir. Esta é a grande tese de Chico de Oliveira". O comentário é de Flávio da Silva Mendes em tese que aborda as diferentes fases da trajetória do sociólogo pernambucano.

A reportagem é de Luiz Sugimoto e publicada pelo Jornal da Unicamp, 15 de junho a 21 de junho de 2015.

O ornitorrinco é um ensaio do sociólogo Francisco de Oliveira, que recorreu ao estranho animal dotado de bico de pato – considerado ao mesmo tempo réptil, pássaro e mamífero – como metáfora do Brasil enquanto nação presa a um impasse evolutivo. Figura importante e polêmica das ciências sociais, Chico de Oliveira tem a sua trajetória resgatada em tese de doutorado abordando desde o início eufórico com a utopia desenvolvimentista de Celso Furtado, passando pela maturação no Cebrap e na criação do Partido dos Trabalhadores, até a decepção com a derrota de suas apostas políticas e a percepção de um país sem rumo – daí o pessimismo nos ensaios dos últimos anos e a pecha de rancoroso, por críticas àquelas instituições e antigos correligionários.

O ovo do ornitorrinco: a trajetória de Francisco de Oliveira” é o título da tese de Flávio da Silva Mendes, orientada pelo professor Marcelo Siqueira Ridenti e defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).“A trajetória dele como intelectual e militante é impressionante. Conheci sua obra no início da graduação e desde então cresceu meu interesse e admiração pelo que escreve, mas também tenho minhas críticas. Ele passou por centros importantes de produção e de crítica e, a partir desta trajetória, obtive uma visão geral de toda a sua geração”, afirma o autor da tese, que também fez, juntamente com seu orientador, uma entrevista com o personagem.

Nascido no Recife em 7 de novembro de 1933, Chico de Oliveira trabalhou ao lado de Celso Furtado na Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) nos anos anteriores ao golpe de 1964; preso uma primeira vez, ao ser solto, fugiu do país. Retornou em 1969 para atuar no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) com Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni. Peça importante na oposição ao regime militar, foi novamente preso e torturado em 1974. Nos anos 80 engajou-se na luta pela redemocratização e na criação do PT. Um dos maiores críticos dos governos de FHC nos 90, rompeu também com o PT após a eleição de Lula em 2002.

Flávio Mendes afirma que O ornitorrinco é um ensaio curto, publicado juntamente com a reedição do clássico Crítica à razão dualista (2003), servindo como metáfora da sociedade brasileira que guarda profundas aberrações, entre o arcaico e o mais moderno, entre a extrema miséria e o luxo ostensivo. “O ‘ovo’ no título da tese é a melhor metáfora que encontrei sobre a origem e para onde aponta o pensamento de Chico de Oliveira, que se traduz na decepção com os rumos do desenvolvimento do país e na postura política e intelectualmente pessimista. Sua crítica continua presa aos valores desenvolvimentistas do período de Celso Furtado.”

Segundo o autor da pesquisa, a metáfora condensa a ideia de um Brasil que avançou em vários aspectos, tornando-se uma das maiores economias do mundo, mas com uma indústria que, ainda que avançada, não atinge a nova era molecular e digital. “Chico de Oliveira aponta avanços e atrasos, como na imagem do ornitorrinco, animal que não é nem uma coisa nem outra e está preso a um impasse evolutivo. Na visão dele, não é mais possível pensar o Brasil em termos do desenvolvimentismo do passado, nem propor outra forma de desenvolvimento para superar o estado que chama de ‘desenvolvimento truncado’”.

Crítica ao dualismo

Flávio Mendes elege Crítica à razão dualista, publicado primeiramente como ensaio em 1972, como marco inicial da trajetória intelectual de Chico de Oliveira. “Cabe destacar que ele não é formado na Faculdade de Filosofia da USP, centro de debate marxista onde estavam Fernando Henrique, Octávio Ianni e Roberto Schwarz, que vão formar o Cebrap no final dos 60, quando expulsos da universidade pelo AI-5. O Cebrap, portanto, é muito marxista e muito paulista, ao passo que Chico é de fora deste contexto, do núcleo do desenvolvimentismo, tendo chegado a convite de Ianni para participar de um projeto específico sobre desenvolvimento nacional.”

Mendes acrescenta que é um pouco em função deste projeto no Cebrap, e de críticas à postura de Fernando Henrique sobre o que significou o golpe de 64, que o sociólogo vai elaborar Crítica à razão dualista. “Nesse texto, Chico faz uma conversão do desenvolvimentismo para o marxismo acadêmico, trazendo aspectos novos, como a questão regional, para um núcleo que pensava o desenvolvimento capitalista a partir de São Paulo. Ele inova mostrando que aonde mais se sentia as características do desenvolvimento do país não era no polo avançado, e sim na periferia, que é o Nordeste.”

De acordo com o pesquisador, o clássico de Chico de Oliveira traz como argumento central a crítica ao dualismo defendido pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), que via no Brasil um setor avançado e um setor atrasado. “Vem daí a proposta da Sudene de industrializar o Nordeste, eliminando-se o setor agrário exportador, que mantinha resquícios arcaicos (os latifúndios); industrializando a região, o país se nivelaria e superaria o atraso.”

Mendes diz que Chico de Oliveira contraria esta lógica, ao sustentar no ensaio que aquele atraso é integrado ao setor avançado, dando o exemplo do trabalho informal, em que o vendedor de latinhas torna-se fundamental para a comercialização da Coca-Cola. “Ele mostra que vão se criando outros trabalhadores precarizados, porém funcionais para o capitalismo brasileiro. É um capitalismo atrasado, que por não conseguir competir no mercado internacional, promove o rebaixamento da mão de obra para que possa se reproduzir. Esta é a grande tese de Chico de Oliveira, exposta no livro que se mantém como referência até hoje.”

Outro texto que Mendes considera importante é “Elegia para uma re(li)gião” (1977), uma análise crítica da atuação da Sudene. “A Sudene levou industrialização para o Nordeste, mas os donos daquela indústria são de São Paulo ou do capital estrangeiro; industrializou-se a região, mas manteve-se a dominação. Esses dois textos da década de 70, que julgo os principais, fazem crítica também ao modelo de desenvolvimento da ditadura (o ‘milagre econômico’): de que o país crescia economicamente, mas em nada evoluía no campo social.”

Criação do PT

O pesquisador lembra que, na década de 80, o sociólogo vai se envolver principalmente com a criação do PT, ao mesmo tempo em que a unidade dentro do Cebrap começa a se desfazer. “Fernando Henrique era favorável à continuidade da oposição à ditadura no âmbito do MDB [Movimento Democrático Brasileiro], enquanto Chico, Ianni e outros intelectuais defendiam a criação de um partido com perfil mais à esquerda. E Chico aposta no PT como um partido que, de alguma forma, retomaria um modelo de desenvolvimentismo social, apesar da nova conjuntura internacional.”

Entre 1982 e 84, Chico de Oliveira faz um estágio de pesquisa na França, no início do primeiro governo do socialista François Mitterrand. “Na volta ao Brasil, ele passa a defender o modo de produção socialdemocrata, pregando que a grande tarefa da esquerda brasileira era construir uma socialdemocracia, ainda que fosse uma caricatura do modelo europeu. Tal postura resultou em certo distanciamento do PT, que nascera com um discurso classista – este distanciamento ficou claro quando o partido se posicionou contra a participação no Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves em 85, e Chico adotou uma posição mais moderada, a favor da Frente Ampla.”

Na avaliação de Flávio Mendes, os textos do sociólogo na década de 80 se equilibram entre o clima otimista proporcionado pela conjuntura nacional e as preocupações com as transformações do capitalismo mundial. “A decepção vem durante os anos 90. A derrota de suas apostas políticas e o avanço de uma democracia de corte liberal aprofundaram o tom pessimista de seus trabalhos e alimentaram o diagnóstico do Brasil como uma nação presa a um impasse evolutivo, como sugere a metáfora apresentada em ‘O ornitorrinco’. Ele se torna um crítico bastante duro do governo de Fernando Henrique, de quem tinha sido muito próximo no Cebrap.”

Mendes observa uma reaproximação entre o sociólogo e o PT quando o partido passa a rever seu discurso com a derrota de Lula na eleição presidencial de 89. Chico, no entanto, acabou saindo do PT em 2003, dentre outros motivos, por brigas internas que acarretaram inclusive em processos movidos por José Dirceu e outros militantes. “Se ele já era um dos maiores críticos do governo FHC, passou a ser crítico também do governo do PT. Hoje, o argumento central de sua crítica é que o país retornou ao desenvolvimento truncado e que a política está anulada neste processo, com o debate nacional dominado pela economia (controle da inflação, crescimento econômico), sem que se toque em questões políticas fundamentais".

Roda Viva

Chico de Oliveira vai fazer 82 anos e Flavio Mendes, juntamente com o professor Marcelo Ridenti, teve a oportunidade de entrevistá-lo em 2012 – entrevista publicada no caderno CRH (Centro de Recursos Humanos, da UFBA) e disponível na internet. “A conversa foi muito oportuna porque se deu logo depois de sua participação no programa ‘Roda Viva’, da TV Cultura, em que os jornalistas procuraram tirar dele o que queriam ouvir: alguns queriam que falasse mal do Lula e do PT, e conseguiram, pois ele fala o que pensa.”

O pesquisador se refere às declarações do sociólogo que tiveram forte repercussão, como “Lula não tem caráter” e “Lula é um oportunista”. “Nesse entrevero há muitas questões envolvidas, pessoais e políticas, mas é fato que Chico gosta de polemizar. A sua postura é um pouco de espetáculo, não que busque o holofote, mas por não ter receio de falar o que pensa – e isso tem um custo alto, tanto do ponto de vista intelectual como político. Entrevistando pessoas mais próximas, ouvi críticas com as quais não concordo, como a de guardar rancor. Pessoalmente, vejo coerência no seu pensamento, coerência esta que busquei na tese.”

Mendes conta que em sua entrevista, visando traçar a trajetória de Chico de Oliveira, ficou claro como evoluiu seu pensamento até a decepção com os rumos do desenvolvimento nacional. “Por trás de sua postura há toda esta decepção com um projeto desenvolvimentista que não deu certo, com o processo de democratização dos anos 80 e com o PT. A perspectiva de Chico é de que existe uma estrutura maior impedindo que suas apostas se efetivem, levando-o a uma postura de anulação, de estar em beco sem saída. Não vejo sentido em creditar esta postura a rancor ou decepção pessoal. É diminuir um raciocínio rico, que conta a história do Brasil de forma rica. Concorde-se ou não com ele, Chico nos faz pensar.”

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