O apogeu da resistência alegre e da consciência política na passarela do samba. Entrevista especial com Orlando Calheiros

Encerramento do desfile da Mangueira | Foto: Divulgação - Mangueira

Por: João Vitor Santos | 13 Março 2019

Desde a última Quarta-Feira de Cinzas, 06-03-2019, quando a Liga das Escolas coroou a Estação Primeira de Mangueira como campeã do carnaval carioca, uma espécie de catarse tomou conta das rodas de conversa e das redes sociais. Todo mundo queria opinar sobre o samba-enredo História para Ninar Gente Grande, em que a agremiação faz uma crítica contumaz à “história tradicional” que elenca heróis que, na verdade, dizimaram outros, os verdadeiros heróis, que até hoje fazem resistência. Até quem não é do samba vibrou com o desfile e disse que a Mangueira despertou a consciência política do brasileiro que, pelo que parece, até bem pouco tempo flertava com a extrema direita racista, misógina e homofóbica. Mas o professor Orlando Calheiros não concorda com essa análise. Para ele, “o samba não faz despertar uma consciência política, o samba é a própria consciência política já desperta desses ‘pobres e periféricos’”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele observa como a questão deve ser invertida: não é o carnaval, o desfile e o samba da Mangueira que fazem o povo acordar. Na verdade, tudo isso é fruto do sentimento do povo, já está lá e o que ocorre na avenida é apenas a materialização desses sentimentos. “Acho que já passou da hora de abandonar essa repisada tese da ‘falta de consciência do populacho’ que herdamos de algumas interpretações clássicas da sociologia e da história. Beth Carvalho já falou muito, e muito bem, sobre isso (e não apenas ela)”, constata Orlando. “O que importa, para mim, é compreender que se trata de esforços deliberados na direção, na elaboração de uma crítica por meio da poesia, por meio da música, por meio de uma estética. Bezerra da Silva falava disso explicitamente quando afirmava que o ‘o morro só apanha e o samba é a sua defesa’”, completa.

O professor ainda lembra que o carnaval se faz resistência em sua essência. Haja vista que ele deriva dos próprios terrenos e batuques dos negros muito mais do que da gala dos luxuosos bailes. “O toque das escolas de samba deriva diretamente dos toques dos barracões de candomblé e umbanda. E sabemos bem como estes ‘batuques’ foram – e ainda são – perseguidos pelo Estado”, detalha. E observa: “o simples ato de executá-los diante de uma sociedade que não apenas os condena, como se mobiliza para destruí-los, a coragem que isso demanda, não pode ser diminuída, encarada como um ‘anestésico’ ou como ‘alienação’”.

Calheiros ainda faz questão de destacar que, embora se tenha essa origem comum de resistência, o carnaval no Brasil não pode ser compreendido apenas como as escolas do Rio, mas sim em sua multiplicidade, da Bahia a Pernambuco, passando pelos blocos de rua de muitas cidades. O que, sopesa ele, não significa considerar que nessa festa são só plumas, glitter e diversão. “Não estou aqui querendo produzir uma imagem idílica do universo do samba e do carnaval, eles também são atravessados e atualizam violências, machismo, racismo, etc… Apenas quero mostrar que ele dá vazão, oferece espaço para fluxos contestatórios, nos permite inscrever trajetórias minoritárias”, esclarece.

Orlando Calheiros (Foto: João Vitor Santos | IHU)

Orlando Fernandes Calheiros Costa é doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/Museu Nacional, onde coordenou o Grupo de Estudos da Ciência e Tecnologia e permanece como pesquisador do Núcleo de Antropologia Simétrica - NAnSi. Trabalhou como pesquisador sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, coordenando o Grupo de Trabalho Araguaia na Comissão Nacional da Verdade. Atuou ainda como pesquisador colaborador do Programa de Pesquisa em Biodiversidade - PPBio do Ministério da Ciência e Tecnologia. Realizou pós-doutorado no Departamento de Filosofia da PUC-Rio, onde também atuou como professor visitante.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia o desfile da Mangueira? O que mais lhe chamou atenção?

Orlando Calheiros – Um acontecimento puro no sentido forte do termo. Mas se engana quem pensa que se trata de um acontecimento único, singular, muito pelo contrário. Diria que se trata de um acontecimento puro, ritualístico e cíclico, que se atualiza ano a ano durante o carnaval. Melhor, durante os carnavais (pois existem carnavais e carnavais).

E digo isso mirando não apenas no desfile das escolas de samba, mas no carnaval de rua, nos blocos – veja a potência do Cacique de Ramos no Rio de Janeiro, dos Filhos de Gandhy na Bahia e inúmeros outros ao redor do Brasil – ou até mesmo de forma individual. Esse é o ponto para mim, justamente, o Carnaval – e alguns dos ritmos que lhe servem de base, como o samba e o axé music – produz acontecimentos puros. Rio que passa em nossas vidas, parafraseando a belíssima descrição de Paulinho da Viola sobre o desfile da Portela.

E essa me parecer ser uma forma muito refinada de resistência política (re-existência), algo que durante muito tempo uma certa esquerda, fascinada, enfeitiçada mesmo, diria, por uma certa teleologia, foi incapaz de apreender enquanto tal. Quer dizer, muitos ainda são incapazes de fazê-lo. E, no geral, quando o fazem, acabam adotando um discurso condescendente com relação a isso, digo, ao carnaval e aos ritmos que lhe servem de base.

 

A Mangueira, o samba, a potência

Mas o que eu estou dizendo com isso? Que quando o Marquinho Art’Samba – intérprete oficial da escola – entoou “Mangueira, tira a poeira dos porões” fez emergir, libertou certos fluxos do desejo, devires-menores/minoritários com os quais se pode inscrever um presente absoluto, isto é, um momento a partir do qual tanto o passado quanto o futuro se transformam. Tem coisas que invadem o coração, diria parafraseando João Nogueira, o desfile da Mangueira trouxe estas coisas consigo. Mas esse é o ponto, não apenas ele (o desfile). Esta é uma qualidade fundamental do samba quando bem feito – o que não significa ter um conteúdo político óbvio –, trazer consigo, fazer emergir algo que escapa e que nos arrebata, produzindo um efeito de superfície. Fluxos do desejo, podemos dizer em um vocabulário reconhecível pela nossa filosofia, enfim, o que nos importa é que isto que o samba traz consigo nos permite inscrever (e por isso experimentar) os termos de uma outra história (ainda que por um breve momento). Nesse caso, não mais a história do triunfo dos modernos sobre a natureza, sobre outros povos, trata-se aqui da história dos heróis dos barracões, dos negros e dos indígenas. Uma outra história, portanto, um outro mundo possível.

Vão me chamar de idealista, romântico, etc… Mas insisto nesse ponto, essa é a potência do samba, trazer consigo algo que escapa e nos arrebata, e por meio desse algo experienciar os termos de uma outra história. Quando João da Baiana cantava “Batuque na cozinha / Sinhá não quer / por causa do batuque eu queimei meu pé” em 1917, ele não estava fazendo outra coisa que trazendo à tona, fazendo emergir, o sofrimento do povo negro, sua perseguição.

A música – e aqui compro a tese do antropólogo Marcos Altivo – é essencialmente um ato insurrecional, uma caracterização da forma como a república velha perseguia os chamados “batuques” (uma perseguição que, podemos dizer, é uma tradição brasileira, vem, pelo menos, de meados do século XVIII). Poderíamos dizer que o samba não fora o primeiro a fazer isso, pelo contrário, que herda isso, essa capacidade de fazer emergir a dor do povo negro, do lundu. Vide, por exemplo, o famoso Lundu do Pai JoãoQuando iô tava na minha tera / Iô chamava generá / Chega na Terra dim baranco / pega o cêto vai ganhá”.

Como diz o “Canto das Três Raças” de Mauro Duarte, imortalizado na voz de Clara Nunes, o samba traz consigo aquilo que “ninguém ouviu”. Esse é o ponto, o samba, o carnaval, os carnavais – poderíamos estar falando aqui do Ile Aiyê, por exemplo, sem nenhum problema –, trazem consigo, fazem emergir esses fluxos do desejo, devires-menores, com os quais podemos – e muitos o fazem cotidianamente – inscrever uma forma de re-existência (para nos utilizarmos do feliz neologismo cunhado por Viveiros de Castro). Ele codifica, dá forma e propaga a possibilidade de se contar uma outra história, e por meio dessa outra história constituir, ainda que momentaneamente – a duração não importa – uma outra forma de vida, um outro mundo. O desfile da Mangueira foi isso, uma atualização cristalina dessa potência do samba e do carnaval, um acontecimento puro.

IHU On-Line – Qual deve ser o efeito da vitória da Mangueira e a popularização de seu samba-enredo na vida cotidiana das pessoas pobres e periféricas? Podemos afirmar que seu samba faz despertar uma consciência política?

Orlando Calheiros – Esse é o meu ponto, justamente, o samba não faz despertar uma consciência política, o samba é a própria consciência política já desperta desses “pobres e periféricos”. Acho que já passou da hora de abandonar essa repisada tese da “falta de consciência do populacho” que herdamos de algumas interpretações clássicas da sociologia e da história. Beth Carvalho já falou muito, e muito bem, sobre isso (e não apenas ela). Pegue, por exemplo, a letra de “Ô Isaura”, escrita pelo Rubens da Mangueira – “Tia Maria tem sete filhos / Todos sete pra comer / A panela é pequenina / Dividir que eu quero ver.” – ou de “Quando o Povo entra na Dança” – “A cuíca chora/ Pois há roubo na balança” – ambas gravadas pela própria Beth Carvalho. O conteúdo político dessas músicas me parece bastante óbvio, é o povo denunciando a própria penúria, a exploração, o sofrimento. Mais uma vez, o samba traz consigo a mensagem que “ninguém ouviu”.

E não é de agora, vide que uma das versões de “Pelo telefone”, o primeiro samba gravado, já denunciava, por exemplo, a permissividade da polícia com relação à contravenção – “O Chefe da polícia / Pelo telefone / manda me avisar / Que na carioca tem uma roleta para se jogar”.

E não podemos ser condescendentes com relação a isso. Digo isso para não cairmos na ideia de que eles estão apenas “cantando a sua realidade”, pois eles poderiam cantar sobre inúmeras outras coisas. E de fato o fazem. Enfim, o que importa, para mim, é compreender que se trata de esforços deliberados na direção, na elaboração de uma crítica por meio da poesia – arte por meio da arte da vida, como se dizia sobre Nelson Cavaquinho –, por meio da música, por meio de uma estética. Bezerra da Silva falava disso explicitamente quando afirmava que o “o morro só apanha e o samba é a sua defesa”. Mesmo músicas aparentemente insuspeitas como “Deixa a vida me levar”, do Serginho Meriti e do Eri do Cais, eternizada na voz do Zeca Pagodinho, podem ser lidas nessa chave. Toda obra do Cartola…

Se formos olhar para o carnaval, para a história dos desfiles, vamos perceber exatamente isso, a quantidade de enredos que falam, justamente, da situação do povo negro, da escravidão, da desigualdade, dos seus sofrimentos. Reitero, desfiles que trazem à tona esses fluxos do desejo que nos permitem experienciar os termos de uma outra história, e por meio desta experiência inscrever uma forma de vida que resiste aos fluxos do capital. O samba nos permite inscrever uma outra forma de vida.

Além do “anestésico do povo”

Sei que muitos vão me odiar por falar isso, mas, enfim, só mesmo o racismo estrutural explica a forma como uma parcela significativa do nosso “pensamento social e político” ignora a potência dessas elaborações, reduzindo-as a anestésicos do povo e/ou manifestações folclóricas.

Se você for pensar, a própria forma, a estética do samba pode ser compreendida como um ato de “reexistência”. Um exemplo, sua rítmica é essencialmente centro-africana, o toque das escolas de samba deriva diretamente dos toques dos barracões de candomblé e umbanda. E sabemos bem como estes “batuques” foram – e ainda são – perseguidos pelo Estado. O simples ato de executá-los diante de uma sociedade que não apenas os condena, como se mobiliza para destruí-los, a coragem que isso demanda, não pode ser diminuída, encarada como um “anestésico” ou como “alienação”. Por favor, o João da Baiana fora preso inúmeras vezes apenas por fazer samba.

Não é possível que as pessoas esqueçam que o sonho do escravocrata era a redução dos negros a meros utensílios, ferramentas dos brancos. E eles resistiram a isso. Que se esqueça que o projeto eugenista da república buscava obliterar qualquer coisa que remotamente pudesse ser associada ao povo negro, seus corpos, inclusive. E ainda assim eles persistiram.

Histórica consciência política do samba

Como isso, essa persistência, contra tudo e contra todos pode ser ignorada? Como isso pode não ser “consciência política”? Chega-se a ignorar fatos que deveriam ser óbvios até para uma perspectiva sociológica mais tradicional. Por exemplo, que o samba, tem décadas, toca em pautas políticas que só hoje a esquerda (ao menos parte dela) considera fundamental. Um exemplo: em 1963, o Salgueiro já falava sobre a importância e o protagonismo da mulher negra com um desfile sobre Chica da Silva. Em 1963. Inclusive, é fundamental lembrar que em 1957, veja só, em 1957, a Unidos da Ponte já possuía uma presidenta, dona Carmelita Brasil.

Veja, eu não estou aqui querendo produzir uma imagem idílica do universo do samba e do carnaval, eles também são atravessados e atualizam violências, machismo, racismo, etc… Apenas quero mostrar que ele dá vazão, oferece espaço para fluxos contestatórios, nos permite inscrever trajetórias minoritárias.

Consciência política do samba

Mas não vamos nos estender por aqui, não agora. O que me parece fundamental é fugir desse vício de que consciência política se mede pelo voto, pela adesão à agenda política de partidos supostamente à esquerda. A consciência política do samba é de outra ordem, quase cosmológica, diria, sua “consciência”, sua resistência política consiste em dar voz àqueles que a sociedade tenta calar. Trazer consigo aquilo que “ninguém ouviu”. Bezerra da Silva não poderia ser mais explícito quanto a isso quando cantou: “E se não fosse o samba quem sabe hoje em dia eu seria do bicho? / Não deixou a elite me fazer marginal / E também em seguida me jogar no lixo”.

Reitero, o samba, o carnaval, é um ato deliberado de resistência à máquina genocida (etnocida) do Estado. Por isso eu digo, ele é a própria consciência política do excluído (assim como o rap). Ele é a voz do morro, como dizia Ze Keti e tantos outros. Isso não quer dizer que essas pessoas não sejam capazes de elaborar outras formas de resistência política, de se organizarem em partidos políticos, de adotarem um discurso sociológico-acadêmico, muito pelo contrário. Apenas que o samba não pode ser reduzido ao termo folclore, a uma manifestação sem importância, um anestésico. Isso é racismo, é epistemicídio.

Para os que ainda insistem nisso é sempre bom lembrar no quanto o samba era condenado e perseguido pelo Estado. Se o samba fosse algo sem importância ele seria apenas ignorado. Mas não, ele incomoda e muito. E assim o faz pois tem uma natureza revoltosa. Um exemplo disso: em meados de 1940, o samba “O Bonde de São Januário”, composto por Wilson Batista e interpretado por Ataulfo Alves, foi censurado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, que exigiu que sua letra original – “O bonde de São Januário/leva mais um sócio otário/só eu não vou trabalhar” – fosse alterada por manifestar valores contrários aos do governo de Getúlio Vargas. Acabou se tornando “O bonde São Januário / Leva mais um operário / Sou eu que vou trabalhar”.

Por fim, eu inverteria essa questão. Gostaria de ver o efeito que isso tem sobre certa intelligentsia [1] à esquerda, essa que insiste na repisada tese de que é preciso imbecilizar o debate político para atingir os populares. Espero que ela olhe para o samba da Mangueira e aprenda alguma coisa sobre ouvir a voz dos excluídos, dos “heróis de barracões”. De fato, gostaria que ela aprendesse a ouvir.

IHU On-Line – Analisando o samba-enredo da Mangueira em suas redes sociais, você faz uma relação entre os rituais do candomblé e a preparação para o Carnaval. Gostaria que detalhasse e aprofundasse essas relações dessa festa com as religiões, especialmente de matriz africana.

Orlando Calheiros – O samba, sua história, é indissociável das religiões de matriz africana. Pegue, por exemplo, o papel fundamental das chamadas tias baianas na origem do samba. Tratava-se de mulheres negras que chegaram ao Rio de Janeiro pelo fim do século XIX, a maior parte delas iniciadas no Candomblé – para quem não sabe, elas são as homenageadas na ala das baianas. Tia Ciata, a mais famosa dessas mulheres, por exemplo, era iyakererê – mãe pequena – na casa de João Alabá (um babalorixá bastante proeminente na história do candomblé). Enfim, foi ao redor destas mulheres, de suas casas, seus terreiros, foi da convivialidade inscrita pelas festas que elas promoviam que emergiram as primeiras rodas e composições do samba. Não é coincidência que “Pelo Telefone” tenha sido criada neste contexto, no quintal da casa de Tia Ciata. Lúcia Silva e Luís Antônio Simas já escreveram sobre o papel dessas mulheres no samba; recomendo a leitura desses trabalhos.

Enfim, o samba carioca nasce desse contexto. Diria, ele é esse contexto desdobrado – como já falamos. Se avançamos no tempo, veremos – e mais uma vez isso não é coincidência – que originalmente as baterias eram majoritariamente compostas por curimbeiros, isto é, ogãs atabaqueiros (aqueles que são responsáveis pela execução dos tambores e cantos durante os rituais de candomblé e umbanda), alebês, calofés, berês… Esse, inclusive, era um dos motivos pelos quais apenas homens compunham essas formações – tradicionalmente, apenas homens podem ser ogãs. Algo que foi quebrado já em 1938 por Dagmar da Portela, a primeira mulher a tocar surdo em uma bateria de escola de samba. Enfim, essa origem das baterias como atreladas aos terreiros explica o porquê da maioria dos toques das baterias modernas serem derivações diretas dos toques das religiões de matriz africana, como o agueré (ou quebra-prato) para Oyá do candomblé ou o Congo de Ouro da umbanda. Dito isto, não parece estranho que muitas escolas de samba conservem uma relação fundamental com estas religiões, inclusive, que algumas destas, suas quadras, tenham seu próprio gongá (altar das religiões de matriz africana). De fato, o que hoje chamamos de quadra até bem pouco tempo era conhecido como terreiro.

Orixás no carnaval

Os orixás aparecem nas músicas, nas alegorias, nas fantasias, pois eles estão no centro e na origem das escolas de samba. Mais do que isso, são comuns relatos de pessoas incorporando entidades ou sofrendo irradiações durante os desfiles – tem coisas que invadem o coração –, por exemplo em 1976 durante o desfile da Império Serrado, “Lendas das Sereias”, e 1994, durante o desfile da Grande Rio, “Os Santos que a África não viu”.

Sobre o samba da mangueira, o ponto que eu gostaria de salientar é que a expressão heróis de barracões não se refere apenas aos que trabalham nos barracões do samba, mas também aos (viventes e entidades) que trabalham nos barracões de axé. Barracão, para quem não sabe, é uma das palavras utilizadas para se referir às casas de candomblé e umbanda.

IHU On-Line – O Carnaval é uma festa dita pagã e tem suas origens na Antiguidade, sendo até hoje realizado em diversas partes do mundo. Mas, do ponto de vista antropológico, quais são as particularidades do carnaval brasileiro? E podemos falar em “carnavais” (no plural) brasileiros? Por quê?

Orlando Calheiros – Eu diria que a originalidade do carnaval brasileiro, melhor, de alguns dos carnavais brasileiros se dá, justamente, por conta da influência, da potência que emana da matriz africana do nosso substrato populacional. É justamente essa rítmica, esse outro pensamento, que controla a invenção carnavalesca. Isso ocorre ao menos em dois dos carnavais famosos do país, o carioca e o baiano.

É importante abandonar esse vício do nosso pensamento eurocentrado que busca, a cada esquina, emular a Renascença Italiana. Como se o elemento europeu preponderasse sobre tudo e sobre todos. Muito pelo contrário, se você pega o carnaval carioca, o ritmo que embala sua apoteose, os desfiles das escolas que ocorre na Praça da Apoteose – veja só –, você vai encontrar – um termo que o Luiz Antônio Simas adora usar – uma enzima africana. Lembro, a bateria, o coração de uma escola, carrega o DNA dos “heróis de barracões”. É uma manifestação do pensamento africano – e a invenção musical é uma das estéticas desse pensamento – que se aproveita de alguns elementos estéticos, da forma e do calendário europeu.

Isso fica claro quando você olha para o carnaval carioca e vê como as Grandes Sociedades Carnavalescas, nascidas na alta sociedade, desapareceram e foram substituídas pelas Escolas de Samba, de origem popular, negra. São as escolas de samba, nascidas dos terreiros, que fagocitam, se apropriam e transformam alguns dos elementos estéticos das Grandes Sociedades Carnavalescas (as alegorias, por exemplo) herdadas do carnaval europeu e não o contrário. Nos desfiles isso fica bem evidente, é a bateria, portanto os toques afros, que comandam, ditam o ritmo da evolução das escolas. Esse ato me parece uma descrição bastante precisa do samba (e do carnaval carioca, ao menos de sua apoteose).

Eu sei que muitos vão discordar de mim nisso, mas insisto que a potência do samba, e do carnaval que ele produz, que ele inventa, é a de fazer emergir, trazer à tona fluxos do desejo que nos permitem inscrever, experienciar os termos de uma outra história e por meio dela um outro mundo. Um mundo em que o elemento europeu não é o preponderante, dominador, mas é dominado, arrebatado pela potência que emana das rítmicas – e, portanto, das filosofias – africanas. Justamente, essa outra forma de contar a história é a originalidade do samba carioca.

IHU On-Line – Que leitura você faz da história dos indígenas contada pela Mangueira?

Orlando Calheiros – Achei bastante adequada, sobretudo o ato de descolocar o papel dos bandeirantes. No lugar de heróis civilizadores, agentes da máquina genocida colonial. Esse é um ponto sensível, o reconhecimento de que o nosso país não foi constituído pelo mito das três raças, mas pelo “Canto das Três Raças”. Que a bisavó indígena não foi uma mulher que se enamorou por um estrangeiro, mesmo sem falar sua língua, mas que muito provavelmente foi uma escrava sexual. “Pega no laço”, como costuma-se repetir de maneira irreflexiva e cruelmente orgulhosa.

IHU On-Line – A historiografia contemporânea defende que o indígena é parte de uma História do Brasil, não vítima ou coadjuvante, mas parte dessa História. Como você analisa essa linha interpretativa? Quais os desafios ainda hoje para trazer à luz os indígenas como parte da história do país?

Orlando Calheiros – Eu diria que os esforços para reconhecer o papel dos indígenas no Brasil ainda são muito tímidos. Até mesmo por não se tratar apenas de reconhecê-los como agentes históricos, mas de aceitar que eles têm uma forma muito própria de contar a história e de inscrever, por meio dessa outra história, um mundo que nos é radicalmente estranho. Não me parecer suficiente ir até os indígenas, lhes perguntar sobre a sua “versão” dos eventos históricos apenas para, na sequência, submetê-los, sobrecodificá-los à luz da nossa própria epistemologia. “Veja! É assim que eles imaginam a experiência colonial”, “veja! É assim que eles experienciam a destruição de suas florestas pela máquina capitalista”.

Esforço condescendente e epistemicida, reduz o pensamento do outro ao erro, ao estado negativo do pensamento. É preciso ir além, é preciso compreender o pensamento que emana da cosmogonia destes povos, ouvir com atenção o que os filósofos indígenas, aquilo que gente como Davi Kopenawa e Ailton Krenak dizem sobre o mundo sem reduzi-los à ideia de “crença”. É preciso levar a sério a forma como estes povos inscrevem uma outra história, compreender os conceitos – no sentido forte do termo – que eles mobilizam e a matéria do real que eles propõem. Por fim, compreender que esse outro mundo, sua manutenção é a forma como estas populações re-existem continuamente, como re-existem a despeito dos esforços da nossa máquina genocida, etnocida e epistemicida.

Para mantermos o foco no tema original da entrevista. Em linhas gerais é o mesmo que eu proponho sobre o samba, sobre o pensamento que lhe dá origem. Quando Martinho da Vila descreve o corpo dos adeptos das religiões de matriz africana por meio da irradiação do axé em “Semba dos Ancestrais”, ele aciona uma série de conceitos, e com eles toda uma matéria do real distinta daquela professada pelo pensamento euro-americano (ou Moderno, para usarmos o conceito de Bruno Latour). É preciso levar isso efetivamente a sério.

Inclusive, um adendo necessário, essa música, como um todo, é uma bela definição do acontecimento puro do samba. “Se teu corpo se arrepiar / Se sentires também o sangue ferver / Se a cabeça viajar / E mesmo assim estiveres num grande astral.

Enfim, o ponto é que levar isso a sério é, justamente, compor com os elementos que emergem destas músicas (ou dos discursos proferidos por um xamã indígena) traz consigo outros mundos, mundos estranhos aos olhos da mitofilosofia ocidental. E que não existe apenas uma forma de se “inventar o mundo” (para usarmos uma expressão cunhada por Roy Wagner).

IHU On-Line – A mesma periferia em que a esquerda perdeu terreno e a extrema direita ganhou espaço fez do carnaval seu palco de protesto contra a conjuntura política atual. Como compreender esses cenários?

Orlando Calheiros – Primeiro, eu desconfio muito destas análises que jogam na conta dos “periféricos” (odeio o termo, inclusive) a ascensão do fascismo. Especialmente diante dos dados que mostram que o Bolsonaro eclodiu – de lá se espalhou – entre brancos escolarizados situados no topo da pirâmide de renda nacional. Então, é preciso ir com calma nessa generalização.

Segundo, é preciso fugir da lógica identitária que assola uma parcela desse entendimento. Lógica que determina se um determinado indivíduo é de direita ou de esquerda tendo em vista o seu voto. Por exemplo, quantos eleitores do Lula em potencial migraram para o Bolsonaro? Quantas destas pessoas ainda votariam no Lula caso ele tivesse concorrido? É necessário perguntar a essas pessoas o motivo de terem migrado ou mantido o seu voto.

Essa lógica identitária desaba quando, por exemplo, você vê que muitas pessoas são a favor de pautas que usualmente englobamos como “justiça social”, mas ao mesmo tempo são a favor de pautas conservadoras. Você pode encontrar evangélicos – e eu conheço alguns aqui no subúrbio carioca – que militam pela população carcerária, são a favor de cotas, mas são contra pautas LGBT e a legalização do aborto. Sobre qual prisma podemos declarar essa pessoa como sendo de “direita/extrema direita” ou de “esquerda”?

Campanha eleitoral

Seria preciso, ainda, compreender melhor como funcionam as campanhas políticas nessas regiões, trabalhos etnográficos bem elaborados que nos mostrem como este ou aquele candidato conseguiu conquistar o voto dessas populações. Por exemplo, a última eleição para prefeito no Rio de Janeiro, entre [Marcelo] Freixo e [Marcelo] Crivella, escancarou as dificuldades que a esquerda partidária enfrenta para se comunicar com essa parcela da população. E veja que aqui não estou falando apenas de problemas de segurança, como o domínio das milícias em diversas partes da cidade, estou falando de problemas de linguagem e tática. O próprio Freixo falou abertamente sobre isso ao fim das eleições.

Com efeito, hoje em dia, impulsionados por uma leitura racista e distanciada, muitos militantes, sobretudo na internet, defendem abertamente a imbecilização do debate político como uma tática para “conquistar os eleitores mais simples”. Quando você olha para a quantidade de pessoas defendendo esse absurdo você começa a compreender como a esquerda partidária perdeu espaço nessas regiões.

IHU On-Line – Na sua opinião, a esquerda compreendeu o recado, a mensagem passada pelas pessoas nesse carnaval, das escolas de samba do Rio e São Paulo, aos trios elétricos da Bahia, até os blocos pelas ruas de todo o país? Por quê?

Orlando Calheiros – Ainda é muito cedo para dizer, mas eu sou notoriamente pessimista quanto a isso. Ano após ano o samba, o carnaval que inventa, vem passando essa mensagem, ano após ano, e, parafraseando mais uma vez o samba, “ninguém ouviu”. Essa mensagem não é de agora. Pega aí toda a história do Ilê Aiyê… Só o fato de as pessoas acharem que o que aconteceu neste carnaval foi algo inédito já demonstra o quanto elas não estão ouvindo. Mas enfim, meu sonho é estar errado.

IHU On-Line – Quais os desafios para compreender o que o sujeito da periferia anseia? Em que medida as manifestações do carnaval, samba-enredo da Mangueira etc., são indícios desses desejos?

Orlando Calheiros – Você ter que me fazer essa pergunta é justamente um sintoma do problema, quem deveria respondê-la é justamente o sujeito da periferia, não eu. Eu não posso dizer o que eles anseiam, mas posso te garantir que tudo que eles menos querem é serem infantilizados e/ou tutelados no debate político. O que parece ser um vício das esquerdas partidárias, infelizmente.

E, como disse acima, o samba é a própria consciência dessas populações, é a sua voz.

IHU On-Line – O que o tuíte do presidente Jair Bolsonaro em que tenta depreciar o carnaval revela? Que estratégia há por trás dessas ações?

Orlando Calheiros – Bolsonaro não é o primeiro e nem será o último poderoso a se incomodar com o carnaval. A lista é longa. Ainda, não me parece coincidência de que ele tenha sido o principal alvo dos foliões. Quem esteve nas ruas viu como ele era alvo contínuo de chacotas. E desconfio que isso tende a aumentar nos próximos carnavais conforme sua popularidade diminuir – isto é, se ele continuar no cargo, o que já não parece tão certo dada a quantidade de escândalos que já se acumulam.

O que o tuíte dele revela? Bem, revela o óbvio, revela a personalidade obsessiva e autoritária – digo isso para não usar o equivalente freudiano – do presidente, uma pessoa que deliberadamente ignora os protocolos fundamentais do cargo que ocupa por motivos estritamente pessoais. Que não vê problema algum – e esse para mim é o maior dos problemas – em expor cidadãos, inclusive potencialmente à violência, apenas para se “defender” do contraditório popular. A estratégia é pueril e já começa a desgastá-lo, não é à toa que pouco tempo depois ele foi na internet, fez “uma live” se comprometendo a retirar imagens que considera pornográficas das cadernetas de vacinação.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Orlando Calheiros – Gostaria que as pessoas ouvissem mais o samba e isso é muito diferente de “apenas” ouvir samba.

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