02 Janeiro 2008
Em lembrança à memória de Dom Aloísio Lorscheider, 83, arcebispo emérito de Aparecida (SP) e ex-presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), falecido em 23-12-2007, a IHU On-Line conversou, por telefone, com o padre Ermanno Allegri, que relembrou alguns momentos de sua convivência com Dom Aloísio. Os dois trabalharam juntos na Diocese de Fortaleza (CE), por aproximadamente sete anos. “Dom Aloísio representa o sentido humano, como Cristo representava o humano e o divino ao mesmo tempo”, comenta Allegri, sacerdote italiano, naturalizado brasileiro desde 1974.
Na entrevista a seguir, o ex-coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) também destaca a perseverança de Dom Aloísio no período da ditadura militar, sua luta pelos direitos humanos e sua capacidade humanística. “Na Igreja deveriam existir mais pessoas com essa coragem e essa clareza, que não vêm de ingenuidade ou de irresponsabilidade, mas vem de um olhar teológico e uma sensibilidade humana fora do comum, como a que cercava a vida de Dom Aloísio”, considera.
Dom Aloísio Lorscheider ocupou cargos importantes na Igreja brasileira. Foi bispo de Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul e arcebispo de Fortaleza, no Ceará e Aparecida, em São Paulo. Atuou também como Secretário-Geral e presidente da CNBB, além de ter sido presidente do Celam (Conselho Episcopal Latino-Amercano) e da Cáritas Internacional.
D. Aloísio Lorscheider, um perfil. Entrevista especial com Mário de França Miranda, teólogo, professor da PUC-Rio, foi publicada no dia 31-10-2007. A IHU On-Line, no.124, 22-11-2005, publicou a entrevista com D. Aloísio Lorscheider, " A centralização da Igreja é um dos problemas que ainda persistem". A entrevista está disponível nesta página, em word e pdf, para download.
Depois de quatro internações apenas neste ano, o arcebispo foi internado no dia 28-12-2007 devido a problemas de insuficiência cardíaca. O quadro clínico se agravou em 11-12-2007, e, na madrugada do dia 23, ele faleceu no Complexo Hospitalar da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, na capital gaúcha.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como foi sua convivência com Dom Aloísio Lorscheider?
Ermanno Allegri - Eu convivi com Dom Aloísio num trabalho pastoral em Fortaleza por sete anos. Nesse período, eu sempre apreciei duas coisas ao trabalhar com ele. A primeira era a sua confiança nas pessoas e no trabalho pastoral que desenvolvia. Ao conversar sobre um determinado assunto, após ouvir e sugerir algumas coisas, ele dizia: “agora você vai lá e trabalha”. Essa atitude demonstrava a confiança que tinha nas pessoas para a execução de tarefas. Nesse sentido, nós nos sentíamos de fato sustentados com a sua presença. A segunda coisa que eu observava e também ouvia de outros colegas era sobre o seu aspecto humano, ou seja, eu penso que a grandeza de Dom Aloísio era ser simplesmente humano. Na relação com os outros, ele sabia ouvir, conversar, prestava atenção no que tinham a dizer. Essa atitude nos ajudava a perceber como o nosso trabalho poderia, sobretudo, ajudar o próximo. Afinal, se não partimos dessa humanidade, todo o discurso de fé cai por terra ou se torna um discurso que fica pairando no ar, sem uma sustentação real.
Outro momento em que eu tive a sorte ter a presença de Dom Aloísio foi na Itália, quando celebrei 25 anos de padre. Na época, eu fui à diocese de origem, onde nasci, no norte da Itália, e Dom Aloísio estava lá realizando algumas palestras. Foi impressionante a simplicidade com que ele lidava e conversava com as pessoas e a proximidade que teve com os meus irmãos e familiares. Em cada encontro, parecia que sempre tínhamos conversado com ele. Inclusive, antes de ir embora, todos queriam tirar um retrato com o arcebispo. Eu lembro que ele disse: “Não sei por que todo mundo quer bater retrato comigo. Eu não sou nada de especial. Só procuro ser uma pessoa humana”. Quando ele falou isso, eu perguntei a ele: "Dom Aloísio, você acha que isso é pouco?. Veja a dificuldade que nós temos hoje de encontrar pessoas assim, com a humanidade mais direta, que facilita a relação".
Quando ele falava de Jesus Cristo, nós percebíamos que não era um Jesus lá nas nuvens. Era um Jesus Cristo histórico, que viveu na terra, e, portanto, percorreu uma estrada que nos devíamos percorrer. Era possível percorrer essa estrada, com toda a dificuldade que poderia ter. Cristo foi uma pessoa humana, e Deus, exatamente, foi um humano perfeito. A convivência com Dom Aloísio, para mim, foi muito enriquecedora. Ao recordar desses momentos, percebemos que essa é a grande herança que fica no nosso coração.
Em qualquer canto que ele se encontrasse, no campo, com o pessoal da roça, na periferia ou com autoridades, ele sempre era aquela pessoa simples. Inclusive, nos tempos de regime militar do Brasil, foi uma pessoa de referência para todos aqueles que sofriam com a repressão e que foram perseguidos. E, ao mesmo tempo, foi objeto de ódio, por parte dos militares, daqueles setores que sustentaram a ditadura. Mas o jeito dele era de pessoa firme, pessoa de fé, que ia direto aos problemas. É, sem dúvidas, a grande riqueza que nós temos até hoje no coração.
IHU On-Line - Que papel Dom Aloísio representou para a Igreja Católica no Brasil?
Ermanno Allegri - Ele representou um papel tão importante, que hoje é difícil encontrar alguém para substituí-lo. Percebo que na Igreja Católica, atualmente, em nível de episcopado, nós não temos as pessoas da altura de muitos bispos. E Dom Aloísio, com certeza, foi um deles. A sua figura deve ser uma referência, em razão desta confiança que colocava nas pessoas e por essa atitude de aproximação humana. Acredito que dentro do episcopado do Brasil nunca mais teremos pessoas desse nível. O episcopado deveria ter presente como base, como alicerce, um pouco essas atitudes que Dom Aloísio teve durante sua vida. Então, para mim, ele representa uma referência à questão humana. Dom Aloísio representa o sentido humano, como Cristo representava o humano e o divino ao mesmo tempo.
IHU On-Line - Dom Aloísio dedicou sua vida em prol dos direitos humanos. Para o senhor, qual é a importância dessa luta para as vitórias que os direitos humanos têm alcançado, no Brasil?
Ermanno Allegri - Aqui em Fortaleza, um dos trabalhos que Dom Aloísio encorajou muito foi, exatamente, a Comissão dos Direitos Humanos. E essa Comissão ainda existe. Sobretudo, é uma Comissão dirigida não tanto a pessoas que não tinham recebido salários, mas que assumia as lutas, por exemplo, por moradia. Em Fortaleza houve muitas ocupações no passado e houve, também, muita repressão por parte dos governos, não só pelos militares. E, para essas categorias, a Comissão dos Direitos Humanos representou uma referência e uma força que as ajudou a construir as suas casas, e, sobretudo, a se organizar para chegar a requerer políticas públicas, em relação à moradia. No bairro onde trabalho, há favelas bem miseráveis. Lá, a Comissão dos Direitos Humanos formou um grupo de 25 moradores e realizou um curso para que eles aprendessem a se dirigir diretamente aos governantes e solicitarem o que precisam. De fato, nós conseguimos uma transferência da favela para outras casinhas. A Comissão dos Direitos Humanos foi o que levou adiante esse trabalho.
Referência para a sociedade
O trabalho de Dom Aloísio encaminhava propostas, e as pessoas da Pastoral tinham a confiança dele para levar certas soluções aos setores sociais que mais precisavam. Na Pastoral Carcerária, certa vez ele ficou como refém. Foi um momento dramático para a sociedade e para as pessoas que o tinham como uma referência, porque todo mundo ficou com medo, à medida que sua vida estava em perigo. Isso ajudou a perceber outro aspecto da vida de Dom Aloísio. Ele era uma referência não só para as pessoas da Igreja, mas para setores sociais e para a sociedade.
Lembro que um dia o Movimento dos Sem Terra (MST) ocupou uma Avenida em Fortaleza. Quando eram 10 horas da noite e chegaram a Tropa de Choque e a Cavalaria para reprimir este movimento, nós nos espantamos e imaginamos que ia acontecer ali uma carnificina. Eu logo telefonei para Dom Aloísio. Naquele dia, ele, que tinha problemas de coração, não estava bem de saúde. Quando falei da situação, ele me pediu para buscá-lo, pois iria até lá. Fui buscá-lo e o levei na Avenida Bezerra de Menezes. Ele pegou o microfone, na frente da Secretaria de Desenvolvimento Agrário, e fez um discurso. Naquela noite não aconteceu nada. Ele não interferia a todo o momento nas coisas, mas em ocasiões importantes ele estava disposto a intervir.
IHU On-Line - Dom Aloísio sempre foi muito querido pelo povo brasileiro, mas sempre foi alvo de muita polêmica, dentro da Igreja. Como o senhor percebe essas defesas que Dom Aloísio fez, como a ordenação dos padres casados e a reforma agrária?
Ermanno Allegri - Dentro da Igreja, sempre existe esse problema: há quem aceite uma linha de trabalho e há quem não aceite. Nós sabemos que o documento de preparação para a V Conferência em Aparecida foi complementado por várias conferências episcopais. E o Brasil enviou, especificamente, o texto em que se referia aos padres casados, da ordenação das mulheres e da questão da autoridade dentro da Igreja. Esses textos simplesmente foram ignorados. As pessoas que prepararam esse documento não queriam tocar nesses assuntos, mas Dom Aloísio tinha uma clareza muito forte, nesse sentido. Ele sabia que se pretendem renovar a Igreja, há decisões que devem ser tomadas rapidamente. Não se pode dizer que a eucaristia é o maior valor na Igreja, quando se deixa milhares de comunidades sem a celebração eucarística, só porque os padres não devem ser casados e não se podem ordenar pessoas já casadas. Inclusive, nesses dias, nós publicamos uma carta que foi feita no Rio Grande do Sul, onde mais de cem leigos colocaram essa questão para a Cúria Vaticana. Isso mostra que o que Dom Aloísio falava tem um respaldo real, ou seja, lidava com uma necessidade que muitas pessoas sentem.
Dentro da Igreja, a reforma agrária era uma necessidade, como o ar que se respira. Um trabalhador sem terra é como um construtor de casas sem ferramentas. Na Igreja, deveriam existir mais pessoas com essa coragem e essa clareza, que não vêm de ingenuidade ou de irresponsabilidade, mas de um olhar teológico e uma sensibilidade humana fora do comum, como a que cercava a vida de Dom Aloísio.
IHU On-Line - Como o senhor analisa o tempo em que Dom Aloísio esteve à frente da Arquidiocese de Fortaleza?
Ermanno Allegri - Como sempre, existem pessoas que se aproximam mais e pessoas que se acomodam. Com certeza, para a Diocese de Fortaleza foi um tempo muito enriquecedor. Foi um tempo em que a Teologia da Libertação tinha um espaço forte com as comunidades eclesiais de base, com as pastorais. Dom Aloísio era uma pessoa que marcava presença. Ele ia para uma reunião e ficava um período breve, e quando nós tínhamos algum problema podíamos conversar com ele. Internamente, na Igreja, ele estava muito preocupado com a formação das pessoas. Inclusive, tentava solicitar aos seminaristas e aos teólogos que participassem de atividades pastorais, para estarem presentes na realidade da sociedade de Fortaleza e do Ceará. Se nós tivéssemos muitos Dom Aloísios, a Igreja, no Brasil, teria outro rosto.
IHU On-line - Como o senhor avalia o tempo em que Dom Aloísio e Dom Ivo estiveram à frente da CNBB?
Ermanno Allegri - Para quem conhece a história da CNBB, há algumas pessoas na história da conferência episcopal dos bispos do Brasil que se confundem com a história da Igreja no Brasil. Não era só uma conferência episcopal, mas era uma Igreja que estava tomando consciência nova, antes do Concílio de Medellín. Uma consciência que estas pessoas conseguiram dinamizar. Eu lembro que, certa vez, quando veio visitar a nossa pastoral, ele disse o seguinte: “A grande intuição do Papa Paulo VI foi de fazer bispos novos”. Ele mesmo foi bispo aos 38 anos. Muitos bispos como Dom Hélder Câmara, Dom Celso, são padres que foram feitos bispos com 40 anos. Então, Dom Aloísio dizia: “Se você entra numa diocese, com 40 anos, você tem uma projeção de vida na frente”. Não quero desprezar os mais velhos, mas eu também já passei dos 60 anos e não teria fôlego e condições para assumir um cargo desses. O Papa Paulo VI teve a grande intuição de criar uma Tropa de Choque de bispos, e eu digo isso no sentido positivo, lá pelos 40 anos de idade. Foi assim que nasceram a CNBB, os planos pastorais qüinqüenais, os projetos que de fato renovaram e dinamizaram a Igreja no Brasil.
Dom Aloísio e Dom Ivo, e eu não destacaria apenas os dois, mas todo aquele grupo que levou a diante por uns 40 anos a Igreja no Brasil, tinham uma sensibilidade humana, um sentido profundo de fé, procurando escutar e perceber o espírito de Deus que fala à Igreja. Esses homens responderam ao chamado do Espírito Santo para conseguir, eu diria, até salvar uma sociedade. Um exemplo disso foi a repressão feroz que ocorreu no Brasil, momento em que a Igreja ajudou a sustar a violência com a palavra forte. No nosso país, a Igreja fez um serviço real, autônomo e foi uma boa samaritana, assumindo uma postura de fé. Portanto, isso de fato, se deve muito a Dom Aloísio, Dom Ivo e ao grupo de bispos que trabalharam em prol da sociedade e das atitudes cristãs verdadeiras.
IHU On-Line - Qual foi o maior legado que Dom Aloísio deixou durante sua trajetória?
Ermanno Allegri - Uma herança que ele deixou foi essa capacidade que de se colocar com atenção aos problemas da sociedade. Mas o seu legado fundamental foi, com certeza, essa disposição que ele tinha de se colocar dentro da história, da realidade como Igreja, como bispo, atuando com diferentes cristãos, se dando bem com pessoas de boa vontade. Essa atitude de buscar junto com os outros um caminho que de fato dignifique a pessoa humana, valorize o sentido profundo da humanidade, deve continuar, mesmo sem Dom Aloísio, a crescer dentro da Igreja.
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"A grandeza de Dom Aloísio era ser simplesmente humano". Entrevista especial com Ermanno Allegri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU