16 Março 2024
"A atitude profética da Igreja emana de um convite à profundidade, na contramão da superficialidade corriqueira da sociedade. Profundidade consigo, com Deus e com os outros. Essa atitude nos faz como Igreja constantemente sair de nossa zona de conforto pastoral, pessoal e comunitária, especialmente em nossa relação com as juventudes", escreve Gleison Pereira, jesuíta, com graduação em Filosofia e pós-graduação em Gestão de Pessoas. Atualmente ele atua em missão na Diocese de Roraima, junto à migração e juventudes.
Qual tem sido a voz profética da Igreja em meio a um contexto social pós-pandêmico, de hiperconexão, com o grande crescimento das relações interpessoais online; onde as relações, muitas vezes, são tecidas baseadas na cultura do consumo e do descarte, repletas de indiferença e insegurança? Contexto em que o ávido consumo de novas experiências, rápidas e superficiais, alimenta a ideia de que o acúmulo, seja material ou experiencial, oferecerá uma nova e inexplorada oportunidade de realização e satisfação pessoal. Entretanto, a consequência dessa eterna busca por satisfação e realização tem gerado um grande vazio existencial e falta de sentido na vida, principalmente entre as juventudes. Diante dessa realidade, ecoam em nosso meio diversas perguntas: como apresentar a novidade da vida de Jesus como profecia diante dessa realidade? Qual pode ser o papel da Igreja na colaboração para o encontro de sentido pessoal para a vida? Como podemos ajudar os jovens nesse caminho?
Esse contexto de superficialidade e busca constante por satisfação e realização pessoal tem exposto especialmente os jovens a condições de extrema desumanização, pelas pressões em relação à imagem pessoal, sucesso profissional e financeiro, padrões de beleza, entre outros. Essa exposição pode favorecer a busca por diferentes estímulos e consumo como uma forma de preencher uma lacuna existencial. Por isso, vemos um crescimento em relação às redes sociais, que de certo modo expõem uma "vida de satisfação e realização, não real". Da mesma forma, o excessivo consumo de bebidas, o modismo, o trabalho descontrolado e sem descanso, a intensidade por preencher esse vazio e a busca por um sentido no consumo e na aparência social das redes podem intensificar um sofrimento, podendo conduzir à perda de sentido existencial.
Nos últimos anos, temos observado o crescimento dos casos de depressão, ansiedade e transtornos relacionados a questões emocionais. Esses casos têm afetado cada vez mais as pessoas, principalmente os jovens. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil é o país com o maior número de pessoas ansiosas, com 9,3% da população, além de que uma em cada quatro pessoas no país sofrerá com algum transtorno mental ao longo da vida. Essa situação também é preocupante em relação à depressão entre os jovens, pois quase dobraram os números antes mesmo da pandemia, era de 5,6% em 2013 para 11,1% em 2019, conforme o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. Nesse sentido, segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 700 mil pessoas cometem suicídio todo ano, sendo a maioria jovens entre 15 e 29 anos.
Não podemos afirmar uma relação direta entre depressão, ansiedade e suicídio, mas os dados nos colocam diante de um sofrimento real em nossa sociedade. Diante disso, somos interpelados pela capacidade de Jesus de ler os sinais dos tempos. Essa realidade nos conduz a repensar nossa atitude profética, a partir da vida de Jesus e sua capacidade de promover experiências profundas de encontro consigo mesmo, como no encontro junto à Samaritana no poço (Jo. 4, 7-26), ou em sua conversa com o cego de Jericó (Lc. 18, 35-43). Ou seja, nosso chamado profético emana da novidade de Jesus, novidade de humanização.
Por isso, uma das atitudes proféticas da Igreja junto aos jovens perpassa nossa capacidade de iluminar e apontar caminhos para um mergulho na própria história pessoal, favorecendo um encontro consigo, com a realidade social e, desse modo, com o encontro de um sentido para a vida. Esse caminho deve ser construído a partir da escuta dos próprios sonhos e desejos que ecoam no coração. Somente assim, poderemos colaborar para acender a lanterna da esperança em nossa sociedade, como nos convida o Papa Francisco.
Mas como a Igreja colabora efetivamente para o encontro de sentido para a vida?
Podemos imaginar a vida como um quebra-cabeça, onde as peças são as próprias experiências, sonhos, desejos e afetos. Quando estamos montando as peças, algumas podem faltar, e isso pode demandar tempo para encontrar as peças que faltam. É aqui que a Igreja entra em cena, oferecendo aos jovens outros caminhos para contemplar as peças do quebra-cabeça da própria vida, com formas de olhar além do aparente, possibilitando compreender no mais profundo o sentido de cada peça. Para que cada jovem possa montar e encontrar a posição correta de cada peça e seu sentido.
Ao nos questionarmos como podemos ajudar os jovens, observamos que diversos são os instrumentos que a Igreja possui para colaborar nesse processo pessoal da juventude, entre eles se destacam a espiritualidade, a reflexão e meditação, e o serviço aos irmãos e irmãs.
- Espiritualidade: É o grande diferencial da Igreja, pois favorece o mergulho na própria história pessoal. Podemos recordar os escritos de Santa Teresa D’Ávila, onde a espiritualidade é um jeito para trilhar um caminho seguro de intimidade em nossos castelos interiores, lugares ímpares de dignidade por serem habitados por Deus. Do mesmo modo, muitos outros místicos apresentam o autoconhecimento como a chave para a humildade, a porta para a caridade e espaço de comunhão com Deus. Deste modo, todo o conhecimento de Deus passa pelo conhecimento de si mesmo. Assim, a espiritualidade é o caminho para esses encontros, iluminada pela vida humana de Jesus. Podemos pensar caminhos a partir da ótica da experiência de aproximação afetiva com Jesus, a partir da contemplação de sua vida, além de buscar narrar nossa teografia, revisitando nossas memórias e história, a partir da ótica da reconciliação e aceitação pessoal, favorecendo o conhecimento em profundidade da personalidade, qualidades, limitações, aspirações e desejos. Proporcionando uma experiência de "beber do próprio poço", encontrando Deus na própria história pessoal.
- Reflexão e meditação: Estes estão muito próximos da espiritualidade, no entanto, podem favorecer a reflexão e meditação sobre a realidade e contextos atuais da sociedade, como os diversos sofrimentos, migração, desigualdade, entre outros. A Igreja tem um papel crucial na colaboração para a leitura dos sinais dos tempos, e os jovens podem experimentar e contemplar as realidades no entorno, pois uma das formas de encontrar o sentido pessoal para a vida é através da alteridade, ao nos tirar do isolamento e nos abrir ao diferente, por meio da responsabilidade e reciprocidade.
- Serviço aos irmãos e irmãs: A experiência do autoconhecimento e da contemplação da realidade social nos leva ao terceiro aspecto, que é uma resposta pessoal a essa vivência interior. A Igreja pode oferecer caminhos para que a solidariedade e a esperança possam ser pilares importantes no encontro de sentido para a vida, que sempre se dá fora de nós e na saída de si mesmo. O serviço aos mais necessitados e vulneráveis pode completar o tripé que sustente o processo de integração no mundo. A vida de Jesus, mais uma vez, ilumina esse encontro do sentido para a vida, através de suas atitudes de compaixão, acolhimento, escuta e doação de si. Deste modo, podemos pensar caminhos pastorais a partir da experiência de imersão e voluntariado, que possibilitem esse encontro com as realidades de sofrimento, como o Samaritano que não foi indiferente a dor do próximo (Lc. 10, 25-37).
Esses três aspectos podem apontar um caminho para a Igreja colaborar no encontro de sentido para a vida, como "a voz que clama no deserto" (Jo. 1,23), o deserto do descarte, da falta de sentido, do individualismo e do consumismo. A Igreja pode ser a voz da humanização, que colabora na formação de discípulos e discípulas missionários conscientes de si e profundamente envolvidos no seguimento de Jesus.
A atitude profética da Igreja emana de um convite à profundidade, na contramão da superficialidade corriqueira da sociedade. Profundidade consigo, com Deus e com os outros. Essa atitude nos faz como Igreja constantemente sair de nossa zona de conforto pastoral, pessoal e comunitária, especialmente em nossa relação com as juventudes.
A novidade de Jesus é permanentemente profética, principalmente diante da superficialidade das relações. Por isso, a Igreja é chamada constantemente a levar essa novidade humanizadora de Jesus, narrada nos evangelhos, às diversas realidades de sofrimento e falta de sentido para a vida, pois somente profundamente conscientes de si, podemos seguir fielmente o chamado "Vem e Segue-me" (Mt. 9,9).
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Transtornos mentais e adoecimentos no ambiente de trabalho. Disponível aqui. Acesso em: 10 març. 2024.
DOM JOÃO SANTOS CARDOSO. A ética da alteridade e o sentido da vida além do eu. Disponível aqui. Acesso em: 9 març. 2024.
INSTITUTO DE ESTUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE. Depressão entre jovens. Disponível aqui. Acesso em: 10 març. 2024.
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PAPA FRANCISCO. Alegres na esperança. Mensagem aos jovens na Jornada Mundial da Juventude 2023. Disponível aqui. Acesso em: 9 març. 2024.
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O chamado profético junto às juventudes. Artigo de Gleison Pereira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU