01 Julho 2022
"E assim Erdogan, contando com a aquiescência nossa e a de Washington, avança com a 'sua' guerra contra os curdos. O que nós, naturalmente, como mesquinhos alquimistas de duplo padrão, fingimos não ver", escreve o filósofo italiano Alberto Negri, em artigo publicado por Giornale, 30-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os curdos iraquianos tinham vindo defender suas posições. Diante do avanço do ISIS, aos curdos turcos, em perene conflito com Ancara, eram os jihadistas, apoiados pelos serviços turcos que cortavam as gargantas. Naquela época, os curdos eram nossos heróis, aclamados como defensores contra a barbárie, mas agora, para permitir a entrada da Suécia e da Finlândia na OTAN, vendemos para Erdogan as suas sortes e os tão aclamados valores ocidentais. Porque é disso que se trata quando se lê o memorando assinado pelos ministros do Exterior da Turquia, Suécia e Finlândia. O ponto 8 do documento prevê, "com base em informações fornecidas pela Turquia", a extradição de membros do PKK, como supostos terroristas, mas também de membros de organizações filiadas como o YPG curdo-sírio, as milícias que protegem a existência de Rojava, um experimento político leigo, multiétnico e multirreligioso que deveríamos preservar.
Mapa mostra território reivindicado pelos curdos (Fonte: Wikimedia Commons)
Em tudo isso, não há a mínima menção ao fato de a Turquia ocupar partes do território sírio e iraquiano, que bombardeia sistematicamente não apenas as milícias armadas, mas também os civis, curdos, sírios, iraquianos, inclusive os yazidis, justamente aqueles que mais sofreram pelos massacres e estupros dos jihadistas. A Finlândia e a Suécia também vão acabar com a proibição de venda de armas para Ancara.
Em poucas palavras, trata-se de uma luz verde para Erdogan fazer o que quiser no norte da Síria, no Iraque e, obviamente, também no Curdistão turco onde no passado foram arrasadas cidades como Cizre. Recomendo o documentário “Kurdbûn - Ser curdo”, dirigido pelo diretor curdo-iraniano Fariborz Kamkari, há meses nos cinemas italianos. Entende-se que entre um Putin e um Erdogan não haja muita diferença. Por outro lado, Erdogan usa os helicópteros italianos Agusta (Leonardo) para bombardear os curdos e chantageia a Europa com seus três milhões e meio de refugiados sírios, pelos quais a União Europeia paga 6 bilhões de euros para que os mantenha bem longe de nós. Chama-se, para os valores ocidentais, "externalização das fronteiras" e dos seres humanos. O sultão da OTAN instalou as tropas permanentemente e ocupou o território de outros estados sem que ninguém ouse levantar sequer uma sobrancelha. É ele quem decide, com a nossa cumplicidade, quem somos, o que é realmente a Aliança Atlântica e sobretudo também o destino dos curdos, sírios e iraquianos, a serem trocados na mesa de negociações pela entrada da Suécia e da Finlândia na OTAN.
Algumas manchetes de jornais italianos como esta fazem sorrir amargamente: "Erdogan cede às exigências dos aliados". No mínimo, é o contrário. E logo o perceberá também o ministro Draghi, que é esperado na Turquia para um acalorado encontro bilateral. Nós, pelo que nos diz respeito, já cedemos aos pedidos turcos: pedimos permissão a Ancara inclusive para exercer o direito adquirido de perfurar na área grega de Chipre com os navios da Eni, algo que naturalmente enfureceu os gregos. Imaginem quando teremos que discutir a zona econômica exclusiva traçada entre a Turquia e a Líbia por Erdogan em 2019, que na época salvou o governo de Trípoli das tropas do general Haftar às portas da capital.
Mapa mostra onde estão os curdos, que territórios ocupam hoje e quais as organizações que governam (Fonte: Aljazeera)
Mas a Itália não tem muitas cartas para jogar, a não ser pedir ao sultão que nos ajude a colocar alguma ordem entre as facções comandadas também pelos turcos e trazer para casa alguns barris de petróleo e gás líbio, já que à ex-colônia nos liga um oleoduto com uma vazão de 30 bilhões de metros cúbicos, que representaria mais de um terço do nosso consumo anual. A Itália, desde a queda de Kadafi em 2011, tornou-se nos últimos anos o país mais exangue do Mediterrâneo: não há problema em reconstruir a Ucrânia, mas talvez fosse mais da nossa competência iniciar uma ação de governo e diplomática, mesmo que tímida, para uma realocação digna do país onde sempre esteve geograficamente.
Na realidade, estamos dando ao assassino de curdos Erdogan toda a satisfação que ele quer. Enquanto o sultão poder se gabar de ter trazido Suécia e Finlândia para a OTAN - tornando-as aos seus olhos aliados "razoáveis" - ao mesmo tempo ele está conversando com Washington para uma nova frota de caças F-16 e talvez os Estados Unidos também desbloqueiem para ele o F-35, se renunciar a outros suprimentos de baterias antimísseis S-400 de Moscou. E assim Erdogan, contando com a aquiescência nossa e a de Washington, avança com a "sua" guerra contra os curdos. O que nós, naturalmente, como mesquinhos alquimistas de duplo padrão, fingimos não ver.
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Erdogan dá luz verde ao massacre dos curdos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU