A ecologia bíblica não diminui a criação, mas potencializa a responsabilidade humana para que a criação participe plenamente da obra redentora de Deus.
O comentário é de Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, publicado por Settimana News, 20-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Lorenzo Gasparro, exegeta da Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional, Seção San Luigi, em Nápoles, ressalta que o tema da relação entre o Jesus histórico e a criação, tal como está presente nos Evangelhos sinóticos, foi até agora pouco estudado em nível bíblico, excluindo-se alguns trabalhos de cristologia.
Em seu livro “Gesù e il creato. Parole di ecologia nei Vangeli” [“Jesus e a criação. Palavras de ecologia nos Evangelhos” , em tradução livre], no capítulo I (pp. 11-22), o estudioso lembra que, se nos Evangelhos falta o vocabulário técnico, o campo semântico está presente, constituído por uma constelação de metáforas e de imagens que se referem à criação. Os Evangelhos estão em substancial continuidade com o Jesus histórico, embora em distinção e com um cuidado redacional que pode ser constatado com clareza.
"Jesus e a criação. Palavras de ecologia nos Evangelhos", em tradução livre, novo livro de Lorenzo Gasparro (Foto: Divulgação)
Gasparro anota algumas reflexões de narratologia e de hermenêutica filosófica, lembrando que a narração do texto bíblico tem um impacto ético sobre o leitor, modelando e modificando as suas disposições. Deve-se também ter em mente que o Mediterrâneo constitui o quadro característico dentro do qual devem ser colocadas as palavras e as atitudes de Jesus.
No capítulo II do seu volume (pp. 23-46), Gasparro recorda que, na Escritura, se nota que a criação constitui a metáfora principal para falar da vida humana, das suas etapas e dos seus vários aspectos. A natureza e as plantas revestem-se de uma ampla gama de significados antropológicos: a fidelidade ou a infidelidade, a prosperidade ou a esterilidade, a exuberância florescente ou a dessecação etc. A natureza reflete o dinamismo cíclico do evento humano, mas também a sua finalização fundamental para um cumprimento escatológico.
O vocabulário bíblico da criação está bem presente no Antigo e no Novo Testamentos. Embora faltem os termos “cosmos”, “natureza”, “ambiente”, é claro o testemunho acerca do Deus criador do cosmos, entendido como o conjunto de todos os seres e as coisas, muitas vezes expressado com “céu e terra”, “todas as coisas”.
No Novo Testamento, “cosmos” assume o significado de ornamento, universo, terra, humanidade. A Escritura sempre se interessa pelo cosmos como obra de Deus e o universo do qual o ser humano faz parte. No Novo Testamento, a criação é compreendida e relida em chave cristológica, com referências tanto protológicas quanto escatológicas.
O Filho de Deus é o mediador da obra criadora e o fundamento da existência de toda a criação. É o princípio e anuncia o seu destino final.
A criação é sempre descrita de forma muito concreta, em relação com Deus que a cria e com o ser humano que dela usufrui; é uma obra criada que não pode ser divinizada ou temida.
Nos Evangelhos, o kosmos indica o mundo e a humanidade, às vezes hostil a Deus, mas nunca o “ambiente” ou a “criação” em sentido natural ou biológico como é entendido hoje. O texto bíblico não explica as várias realidades, mas mostra e expõe narrativamente, com uma teologia narrativa.
O autor relembra algumas coordenadas fundamentais sobre a criação bíblica. A criação é percebida como fundamentalmente boa e destinatária da bênção de Deus. Ela também é motivo de louvor e escola de humildade, pois recorda ao ser humano a sua origem do barro e a sua contínua necessidade da misericórdia divina.
A criação é um dom precioso destinado ao ser humano, da qual nasce o compromisso incontornável da sua custódia e proteção. A tarefa do ser humano é dominar a criação com sabedoria, como o rei que procura o bem dos seus súditos, mas sobretudo o de “cultivar” e de “guardar” o dom recebido de Deus e do qual ele não é dono. O dom de Deus só pode suscitar estupor e gratidão no ser humano.
Diante da criação, Jesus assume uma atitude de plena inserção nela, que se torna parte do seu ensinamento parabólico. Jesus mostra uma inegável familiaridade com o mundo da natureza, típico do mundo camponês e pastoral. Ele manifesta uma predileção específica e pessoal por esse âmbito, para expressar os conceitos mais caros a ele, de modo especial o do reino de Deus.
Jesus mostra um olhar atento e contemplativo sobre a natureza, as plantas, os animais, o trabalho do homem e da mulher que envolve a criação. As suas descrições deixam transparecer interesse, estupor e profundo respeito pelo mundo, percebido como fundamentalmente bom e benevolente para com o ser humano (cf. o amor de Deus pelo ser humano expressado por meio do exemplo do seu cuidado pelos pardais).
Alguns exageros ou estranhezas presentes nas parábolas são apenas hipérboles ou paradoxos que pretendem remeter à realidade profunda do Reino e da sua lógica. Jesus não tem uma concepção dialética e objetivista da natureza como a temos hoje, mas sim uma visão simbólico-holística típica das civilizações antigas.
A Bíblia não quer explicar a natureza e o seu funcionamento, mas sim compreender nela o sentido da existência do ser humano e do mundo, buscando aí a “estrutura arquetípica” ou uma espécie de programa daquilo que ambos são e devem ser.
Na Bíblia, a criação é mais contemplada do que explicada. Gasparro relembra algumas categorias e intuições fundamentais da narratologia bíblica.
A narrativa bíblica delineia ou constrói um leitor implícito ou modelo e assume como evidente o fato de que ele conhece algumas prerrogativas e conhecimentos essenciais, de modo que o destinatário possa captar os significados pretendidos e decisivos da história que está sendo contada.
Cada relato também delineia um mundo que oferece ao leitor para que dele se aproprie. O mundo do texto é entendido pelo autor de tal forma que chegue ao leitor e reconfigure o seu mundo através do projeto narrativo do autor. O mundo de vida do leitor completa e preenche o significado da própria obra.
A arte de contar é sempre uma mediação entre “descrever” e “prescrever”. Os relatos bíblicos prescrevem narrando, por meio de modelos negativos ou positivos. O relato não tem só um efeito de “espelho”, mas também pretende configurar e refigurar o leitor/ouvinte assimilando-o a si mesmo. O texto abre o leitor para uma compreensão nova de si mesmo e da realidade. O autor tem presente o leitor implícito como seu destinatário, um destinatário que ele tenta moldar por meio do ato narrativo.
“A narrativa bíblica e evangélica representa e propõe assim uma ‘realidade convertida’ em que o leitor é chamado a entrar ou à qual deve consentir para se tornar, por sua vez, uma pessoa diferente ou convertida’” (pp. 44-45).
Gasparro continua: “Lido assim, o relato bíblico não só descreve idealmente aquela que deveria ser a correta relação entre ser humano e natureza, mas precisamente por meio da narrativa opera para construí-la concretamente, agindo na consciência, na projetualidade, na percepção dos valores e na criação de uma nova identidade do leitor. A criação que os autores bíblicos põem em cena é, portanto, não apenas aquela que eles conheceram e na qual viveram, mas – mais profundamente – aquela que o texto quer tornar realidade, por ser correspondente ao projeto criador do Pai e a única em que o ser humano pode prosperar, realizando plenamente sua vocação de filho de Deus” (pp. 45-46).
Depois dos capítulos introdutórios de caráter geral, no capítulo III (pp. 47-90) Gasparro examina o tema da criação nos Evangelhos.
São muitíssimos os trechos que têm a natureza como protagonista direta ou indireta. O objetivo é captar os traços precípuos da relação Jesus-criação. O autor não pretende ler em nível exegético os trechos ou imagens examinadas, mas sim traçar algumas notas úteis para iluminar o tema investigado.
Concretamente, o estudioso examina seis parábolas ou semelhanças presentes nos Evangelhos sinóticos e a imagem da videira e dos ramos narrada no Evangelho de João.
A parábola da figueira é uma história ambientada no contexto agrícola palestino, mas mostra um mundo ao mesmo tempo verossímil e extravagante (três anos de improdutividade, sem necessidade de cuidados especiais como capina e espalhamento de esterco etc.). Jesus alude ao reino de Deus e à paciência do Pai, mas está presente na narrativa de Jesus uma normatividade e uma dimensão ecológica. O ser humano deve expressar cuidado, custódia e salvaguarda da criação. Somente se o ser humano corresponder ao projeto criador em um cuidado recíproco com a criação é que ele poderá prosperar e realizar a sua vocação de filho de Deus.
Os ditos sobre as aves do céu e os lírios do campo refletem o cuidado de Deus pela criação, que será muito maior pelo ser humano que pode confiar em Deus e não se preocupar obsessivamente com a própria vida.
Nos ditos, estão presentes uma perspectiva holística e um olhar atento à criação, ao qual Jesus convida os ouvintes. O seu olhar é contemplativo e sapiencial, e os ditos de Jesus pretendem sublinhar uma coerência fundamental entre a criação e o agir histórico de Deus.
Entre a lógica do Reino e a da natureza, existem evidentemente descontinuidades, expressadas com o paradoxo. Na mente de Jesus, porém, a criação é e continua sendo o âmbito mais adequado para ilustrar o senhorio de Deus sobre a história e sobre o mundo.
A parábola do joio, presente apenas em Mateus, evidencia o conhecimento de Jesus sobre o ambiente camponês. Evidencia-se a coexistência do bem e do mal no campo do mundo e da história. A semelhança entre a planta do trigo e a do joio convida a ter paciência ao querer extirpar o mal antes do fim, com o perigo de arrancar até aquilo que é bom.
Traços extravagantes são a disponibilidade da semente de joio na posse do inimigo e a colheita final pelos ceifeiros, e não pelos servos. A colheita do joio antes do trigo é uma prática incomum e, na escatologia judaica, remete à aniquilação prévia dos malvados, em oposição à persistência dos justos.
A criação parece ser descrita de modo realista: uma criação problemática, mas boa. “Ter paciência” é um verbo que remete ao de “respeitar”, à renúncia a escolhas precipitadas que arriscam comprometer um bem precioso. No mundo, é preciso intervir do modo menos invasivo possível e valorizar e tutelar ao máximo a natureza e o próprio ser humano.
A natureza é para o ser humano uma escola permanente de “interioridade” e “ulterioridade”. A natureza remete à presença de Deus e do transcendente, a um sentido oculto e profundo do mundo e das coisas. A natureza ensina a distinguir e a aprender a “sabedoria” divina e a responder adequadamente à dimensão “ulterior” presente na vida e na história.
A parábola do grão de mostarda, semente muito pequena que se torna a maior das plantas do jardim, trai o conhecimento do âmbito agrícola palestino, mas é empregada por Jesus como uma imagem adequada do Reino. Iniciado com dimensões muito pequenas e humildes pela pregação e pela obra de Jesus, terá um resultado de dimensões muito vastas, que oferecerá abrigo a todas as nações. Um exemplo hiperbólico, mas não inverossímil, baseado no fato de que a planta, devido às suas sementes saborosas e à sua rica folhagem, costuma atrair bandos de pássaros de vários tipos.
Para os rabinos, a planta de mostarda tem uma robustez proverbial e tem uma madeira própria para a construção de cabanas. Apresentando elementos realistas unidos a traços hiperbólicos, a parábola ilustra de modo sintético a missão de Jesus, que, a partir de inícios modestos, está destinada a se tornar uma grande árvore de salvação para todos os seres humanos.
A semente que “cai na terra” também assume um significado cristológico (cf. Jo 12,24). “Será na cruz, e mais especificamente no corpo/sangue de Jesus ‘caído por terra’, que o Reino será definitivamente ‘semeado’ como messe de salvação no campo da humanidade” (p. 71).
A parábola e a imagem da semente, aplicadas ao mistério do Reino e à pessoa de Jesus, expressam continuidade, mas também descontinuidade, que no âmbito evangélico e cristológico contempla também uma ruptura e a morte.
Gasparro destaca que, para a interpretação dos textos, não basta a análise histórico-crítica, mas também o conhecimento concreto do ambiente palestino inserido no contexto do Mediterrâneo.
O enunciado sobre os pardais que, embora valendo muito pouco no mercado, não são esquecidos por Deus, mais uma vez trai a observação atenta da natureza e do sentido simbólico que alguns elementos dela já receberam nas Escrituras de Israel.
O pardal remete à pequenez, à fragilidade e à incapacidade de se defender dos inimigos. É fácil de capturar, a sua carne era um alimento característico dos pobres. O pardal era também o símbolo da violência e da perseguição sofrida pelo justo (cf. Lm 3,52), além de ser imagem do perigo do qual se escapa graças à prontidão e à agilidade do voo.
Gasparro nota que o sentido “simbólico” do dito se enraíza estritamente na “materialidade” do elemento concreto. O símbolo bíblico sempre nasce das qualidades peculiares de um objeto (significante) e dos significados particulares nele percebidos pelo ser humano. O ser humano entrevê nos objetos concretos uma significatividade ulterior que os faz parecer espontaneamente um ícone do mundo e do transcendente que o habita.
O dito revela que Deus cuida de toda a criação, e não apenas do ser humano. Os dois elementos estão estreitamente conectados. Na visão cristã, o interesse pelo ser humano não pode ser desvinculado do interesse por um cuidado adequado em relação à criação.
O dito sobre a árvore (boa e “má”) e os seus frutos (bons e “maus”) (Mt 7,15-20) expressa um critério para reconhecer os verdadeiros profetas dos falsos. Para o ser humano, ao contrário da árvore, porém, sempre existe a possibilidade da conversão. O que é impossível para a árvore é possível para o ser humano, que é chamado à transformação da sua natureza interior. Para o ser humano, tornam-se decisivos a vontade e o seu poder de se decidir ou de mudar radicalmente de direção.
Ao lado da árvore, aparecem também animais como a ovelha e o lobo, bem conhecidos na Bíblia, e a uva e os figos, símbolos de abundância e de bênção de Deus. Espinhos e sarças representam, em vez disso, a inutilidade e a infecundidade.
Os ditos parabólicos são um convite a um sério discernimento sobre a possível camuflagem e engano operados por aqueles que fingem ser enviados por Deus e oferecem o critério ulterior da correspondência ou correlação entre a natureza da pessoa e os gestos que põe em prática.
Mais uma vez, a natureza sobe na cátedra e oferece critérios de discernimento para a vida do ser humano. É preciso distinguir as aparências da natureza profunda e observar atentamente a correlação obrigatória entre aquilo que se é e aquilo que se produz.
Há uma conaturalidade ou correspondência entre o ser e o agir (agere sequitur esse, Tomás de Aquino). Mais uma vez, a natureza funciona tanto como ilustração quanto como banco de prova. Jesus mostra um conhecimento contemplativo da natureza e indiretamente incita o leitor/ouvinte a fazer o mesmo.
A imagem joanina da videira e dos ramos (Jo 15,1-8) parte da descrição daquilo que ocorre na natureza, mas assume uma dimensão claramente teológica. A videira personaliza e cristologiza a imagem da vinha usada para descrever o povo de Israel (cf. Is 5). Agora representa Jesus na sua missão histórica e na sua relação com os discípulos-ramos. A imagem do vinhateiro também pertence ao registro botânico-agrícola, mas define a relação específica que liga o locutor a Deus.
Na carne de Jesus, é oferecida a possibilidade de uma passagem da infecundidade ao fruto abundante de uma nova fidelidade. O enxerto que permite que os ramos permaneçam na videira está na escuta-cumprimento da palavra de Jesus, acima de tudo o mandamento do amor (cf. vv. 9-17).
A metáfora botânica permite ao narrador articular duas relações específicas entre eles, a de Jesus com o Pai e depois aquela com os fiéis, passando por uma designação que soa altamente cristológica. O narrador revela desde o início a natureza metafórica da descrição e torna Jo 15 “um condensado de todo o quarto Evangelho e das diretrizes que ele desenvolve” (p. 83).
Da vinha passa-se à videira. Uma mudança terminológica que se torna porta-voz de uma mudança soteriológica, que diz respeito à história da salvação e ao agir de Deus dentro dela.
O autor recorda que a natureza e o texto bíblico são os dois horizontes paralelos de decifração, dois modelos explicativos a se levar em conta na interpretação dos textos. Depois de ter aplicado esse princípio à vinha no mundo agrícola e no mundo bíblico, ele recorda que a ecologia evangélica remete à estreita relação entre ser humano e criação, a partir da iniciativa humana.
O vinhateiro poda a videira para que dê mais frutos. O ser humano deve cuidar da natureza, para que ela possa dar fruto abundante, sem com isso cair no arbítrio de uma exploração total e insana dela.
O enraizamento do ramo na videira também pode ser lido como figura de uma lógica de comunhão e de integração que habita toda a natureza. Tudo está “interligado”, e uma exploração insana pode causar consequências desastrosas.
A natureza é amiga por excelência do ser humano, mas, por egoísmo e ignorância, pode se tornar a concorrente ou a primeira vítima de um suposto bem-estar dele.
No capítulo IV do seu livro (pp. 91-112), Gasparro sintetiza, enfim, algumas linhas da relação de Jesus com a criação.
Jesus tem uma visão integral e substancialmente positiva da criação, uma visão holística que é típica de todos os textos bíblicos. Ele tem um olhar contemplativo e sapiencial sobre a criação, na qual soube ver a presença, o cuidado e a marca de Deus. Por isso, ele convida os discípulos a captar aí o simbolismo que remete a Deus presente e providente, e meio extraordinário que convida os seres humanos a conhecê-lo e imitá-lo.
Nos Evangelhos, a criação desempenha o papel da metáfora principal do Reino. A criação é o analogatum principal mais adequado para compreender os sinais e a lógica do Reino e o âmbito privilegiado para compreender a missão de Jesus.
Os Evangelhos testemunham uma continuidade fundamental entre criação e redenção. A revelação natural e a manifestação histórica de Deus são percebidas por Jesus em profunda continuidade e coerência.
O mistério da Encarnação implicou para Jesus a participação da condição humana, mas também um envolvimento substancial com a criação em suas múltiplas dimensões. É uma feliz inhabitatio, um contato revelador e humanizante, que evita que a fé degenere em gnose ou em uma prática desencarnada.
Por fim, deve-se notar que o Mediterrâneo se apresenta como quadro implícito da reflexão de Jesus sobre a criação. O contexto natural do Mediterrâneo é um elemento conteudístico e pressuposto estrutural no leitor ideal e tem um impacto relevante na correta compreensão dos textos.
Os Evangelhos testemunham, segundo Gasparro, uma lição ecológica inequívoca, embora implícita.
As atitudes e os ensinamentos de Jesus revelam que a tarefa do ser humano é guardar, salvaguardar, respeitar e preservar a criação. Ela deve ser utilizada para o sustento equilibrado do ser humano, mas também deve ser cuidada e valorizada. Jesus torna verdadeira a página inicial da Bíblia, na qual se afirma que toda a realidade criada é muito boa (e não apenas a humanidade).
Na Bíblia, o cosmos nunca é algo puramente teórico, mas um corpo vivo que nutre o ser humano, mas também remete ao conhecimento e ao louvor do criador. A Escritura transforma os elementos naturais em símbolos específicos: o grão de trigo, a semente de mostarda, a figueira, os pássaros e os lírios, a árvore e o seu fruto, a videira e os ramos etc.
Jesus é devedor de uma tradição simbólica tipicamente bíblica, que ele assume e relê com originalidade. A água torna-se assim um possível símbolo de morte, quando referido aos grandes rios Tigre e Eufrates, mas fonte de fertilidade para o Nilo e os países áridos. A simbolização muda de acordo com o lugar onde o elemento natural citado está presente.
Para a compreensão do texto bíblico, resta a confirmação de que não basta a análise histórico-crítica ou literária, mas também o conhecimento do território concreto em que o relato está ambientado. O recurso à natureza como elemento simbólico é evidente e não buscado artificialmente.
Segundo o autor, não se deve esquecer que os relatos bíblicos pretendem formar eticamente o leitor, não apenas por meio de ensinamentos explícitos, mas justamente por meio dos próprios relatos. Estes contribuem para a reconstrução ética do leitor e para uma reconfiguração mental e moral dele, muitas vezes sem o seu conhecimento.
Jesus torna-se norma ética nos relatos, porque a narrativa evangélica molda a percepção moral do leitor, inspira as disposições e atitudes éticas do coração, impulsionando para um certo tipo de ação em detrimento de outras e, por fim, porque o relato influencia a identidade do leitor por meio da implementação de disposições e regras que têm valor social.
A identificação com Cristo, favorecida pelo relato, é assim codificada em uma série de indicações normativas para o indivíduo e para a comunidade. O leitor/ouvinte é tornado “cristomorfo” (cf. Fl 3,10.21). A apresentação do cosmos como dom de Deus e sinal da sua benevolência é um apelo ao leitor/ouvinte para que mude de olhar e de percepção, o que se traduzirá em uma prática de custódia e de respeito por tal dom entregue por Deus à humanidade.
Do mito do homo faber, muitas vezes explorador da criação, passa-se, portanto, ao conceito de homo responsabilis, que cuida pacientemente da natureza, como representado na parábola da videira, dos ramos e do vinhateiro.
A Bíblia e os Evangelhos, em última análise, apresentam o ser humano como guardião e valorizador da criação muito boa que saiu das mãos de Deus. Subjugar a terra não exclui uma relação de comunhão, a dominação inclui um guia e um governo que conduz à vida e à plena paz.
A relação do ser humano com a criação não pode ser opressiva, arbitrária ou violenta. O ser humano é senhor da criação, mas somente como mandatário de Deus e exercendo o próprio senhorio como o próprio Deus o exerce. Subjugar, dominar, cultivar e guardar são os verbos que orientam a relação do ser humano com a criação à imagem do cuidado e da atenção amorosa que o próprio Deus tem por ela.
Cristo se apresenta, além disso, como servo e pastor, com uma autoridade destinada a buscar o bem, o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da criação que lhe foi confiada.
A criação revela-se assim como um dom e uma responsabilidade, e requer do ser humano uma verdadeira “espiritualidade da criação”: contemplação da criação e ação atenta e amorosa, humilde e fraterna em relação ao dom de Deus.
O húmus lembra ao ser humano a sua conaturalidade com a criação. O ser humano, portanto, deve cultivar também a temperança, para não explorar de forma imprudente a criação, mas cultivá-la como um organismo vivo que revela o próprio mistério de Deus e do seu amor.
Infelizmente, a criação também está ligada ao pecado e, portanto, à espera de uma completa redenção (cf. Rm 8,19-23). A obra salvífica inclui a criação, e a desobediência do ser humano envolve a criação em resultados desastrosos. O ser humano é responsável para que se cumpram as dores de parto da criação de um mundo novo (cf. Rm 8,22). A ecologia bíblica não diminui a criação, mas potencializa a responsabilidade humana para que a criação participe plenamente da obra redentora de Deus.
“A Escritura nos diz que salvaguarda e cuidar da criação é um mandamento dado aos seres humanos antes ainda da lei entregue a Moisés”, observa Gasparro (p. 110). A concepção bíblica e evangélica da criação, conclui finalmente o estudioso, “não é apenas a mais adequada à fé cristã, mas também aquela capaz de dar ao compromisso ecológico de qualquer bandeira ou partido o fundamento e as motivações mais sólidos” (p. 110).
A bibliografia (pp. 113-18) e o índice de nomes (pp. 119-120) enriquecem esse livro, muito útil para a apresentação dos traços inéditos do fundamento cristológico da ação humanizante em relação à criação, exigida nestes tempos de mudanças climáticas que põem em perigo a própria existência da criação e da humanidade inteira.
GASPARRO, Lorenzo. Gesù e il creato. Parole di ecologia nei Vangeli (Studi biblici 96). Bolonha: EDB, 2022, 124 páginas.