A mística cristã: conformar-se com Cristo

Foto: Jimmy Vallejo | Cathopic

05 Mai 2022

 

"A mística cristã, diferentemente de 'espiritualidades' ou 'esoterismos' ou até da mística de outras religiões monoteístas ou politeístas, tem em seu centro o próprio Cristo e a relação da alma com Cristo. Como nos ensina o teólogo jesuíta francês, Charles André Bernard, na vida espiritual cristã, a dimensão mística se manifesta quando 'o homem faz a experiência da intervenção de Deus em sua vida interior'".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

Em 2017, o cardeal Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, comentou rapidamente a experiência que muitos de nós já vivenciamos seja em grandes ou pequenas livrarias: nos depararmos, em uma seção, com a "plaquinha ‘Religião, espiritualidade, esoterismo’". Sobre o agrupamento de diferentes temas em uma mesma prateleira, como se essas três palavras fossem sinônimas ou, ao menos, tivessem a intenção de indicar algo em comum sobre os títulos reunidos, Ravasi observou: "Essa mistura de componentes disparatados é, sim, gerada pela falta de conhecimento sobre o status específico de realidades muito diferentes entre si, rotuladas muitas vezes sob o guarda-chuva genérico do termo 'espiritualidade'". Mística, acrescentou, "não deve ser confundido com o gasoso 'misticismo'".

 

A mística cristã, diferentemente de "espiritualidades" ou "esoterismos" ou até da mística de outras religiões monoteístas ou politeístas, tem em seu centro o próprio Cristo e a relação da alma com Cristo. Como nos ensina o teólogo jesuíta francês, Charles André Bernard, na vida espiritual cristã, a dimensão mística se manifesta quando "o homem faz a experiência da intervenção de Deus em sua vida interior". Essa experiência não modifica somente o interior; tem uma implicação direta na vida concreta, na ação daqueles que a vivenciam. A mística cristã também se manifesta de diferentes formas na "diversidade mística baseada nos caminhos da interioridade", seja em uma mística especulativa, ou afetiva, ou desenvolvida a partir de uma consideração simbólica, ou uma mística apostólica, "voltada para a ação de Deus no mundo histórico e, graças a ela, à união com Deus criador e salvador".

 

 

Apesar de se manifestar de diferentes formas, um dos aspectos centrais da mística cristã é o desejo do místico - ou de quem busca essa experiência - de "conformar-se com Cristo". Assim como os mártires desejaram "conformar-se com Cristo" na vivência da Paixão, não recusando o próprio martírio, São Francisco buscou a radicalidade evangélica para "conformar-se com Cristo", enquanto Santo Inácio de Loyola vivenciou uma "mística apostólica", em que a "conformidade com Cristo" se deu na "realização efetiva do Reino de Deus" na terra.

 

A mística e a teologia espiritual, nesse sentido, se interessam, como explica Bernard, por um problema muito concreto: "Como colocar o mandamento do amor a Deus e ao próximo no centro da própria vida? Em outras palavras: como se desenvolve a vida moral cristã sob o impulso da vida espiritual?". Aqui, o jesuíta refere-se especificamente aos dois mandamentos de Jesus, quando perguntado sobre qual das diversas leis devemos seguir:

 

"Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu pensamento. Eis o grande, o primeiro mandamento. Um segundo é igualmente importante: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas" (Mt 22, 36-40).

 

 

A resolução dessas duas questões, segundo o jesuíta, depende de três "momentos": a conversão, a autonomia e a comunhão.

 

O primeiro, resume, nada mais é do que a "acolhida da fé" manifesta no Evangelho. "O homem espiritual deve situar a própria vida diante de Deus e procura nele seu sentido, da forma como se revela por meio da mensagem da salvação. Deve, portanto, considerar a si mesmo com a máxima sinceridade, colocando-se totalmente em questão e buscando a unificação da própria existência por meio da submissão aos valores mais elevados da santidade e da caridade".

 

O segundo momento é caracterizado por "diversas necessidades". Uma delas é "tomar nas mãos o próprio desenvolvimento espiritual, o que corresponde a um amadurecimento natural". A esfera principal da autonomia, esclarece, "é dupla: trata-se de colocar ordem na própria vida de oração e de inserir-se em um mundo que, de seu lado, reivindica a própria autonomia no âmbito social e político. Este momento de autonomia corresponde objetivamente ao fenômeno da secularização. Todo o problema espiritual consiste em determinar em que condições uma decisão autônoma é cumprimento da vontade de Deus".

 

O momento da comunhão, por sua vez, "é a tomada de consciência da realidade de Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Este momento de comunhão, já operante deste o início da vida espiritual, deve tornar-se preponderante e chegar a ocupar a totalidade da consciência espiritual. (...) Consequentemente, nosso amor deve ser um amor crucificado que se esforça por compartilhar a descida de Cristo e sua doação total. Como em Deus o amor é êxtase, ou seja, saída de si mesmo, assim nosso amor é esquecimento de nós mesmos e oferecimento a Deus e aos irmãos".

 

 

Na vida prática, contudo, para aqueles que não são chamados ao martírio como modo radical de amar a Deus e ao próximo e a "conformar-se com Cristo", reconhecer em si as questões que afligiram Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face enquanto buscava "conformar-se com Cristo" no interior do próprio Carmelo, pode nos ajudar: "a dificuldade de abrir a nossa alma" para Deus; evidenciar como somos pequenos e frágeis quando entregues às nossas próprias forças; reconhecer que "só o sofrimento pode gerar as almas"; e como buscar a santidade no cotidiano do dia a dia.

 

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