A ortodoxia diante da guerra. Entrevista com Lorenzo Prezzi

Fonte: Vatican News

26 Abril 2022

 

A guerra na Ucrânia é um divisor de águas dramático para o cristianismo oriental. Que cenários são possíveis? Falamos sobre isso, nesta entrevista, com o padre Lorenzo Prezzi, jornalista e teólogo, especialista em cristianismo ortodoxo - diretor do portal de informação religiosa SettimanaNews.

 

A entrevista é de Pierluigi Mele, publicada por Settimana News, 24-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Eis a entrevista. 

 

Padre Lorenzo, você é um especialista no mundo ortodoxo. Um mundo ainda pouco conhecido, a guerra na Ucrânia o trouxe em evidência. Em particular pelas declarações enfáticas do Patriarca Kirill de total apoio à guerra de Putin. Antes de analisar o conteúdo da posição do religioso moscovita, vamos nos concentrar um pouco sobre ele. Qual é a história de Kirill?

 

Vladimir Michajlovič Gundjaev, o futuro patriarca Kirill, nasceu em São Petersburgo em 1946 e é uma figura proeminente que conheceu muitas temporadas em sua vida. Ele é filho e neto de pais que experimentaram o Gulag e a perseguição.

Como observou Antonio Sanfrancesco, o pai de Kirill colecionou 47 prisões, sete sentenças de exílio, num total de trinta anos de detenção. O avô passou três anos na famigerada prisão de Kolyma, na Sibéria. Kirill está, portanto, bem ciente da dura época de perseguições comunistas na União Soviética. Não surpreende que em 1965 tenha entrado no seminário. Por outro lado, surpreende sim sua carreira muito rápida.

 

A carreira de Kirill

 

Ele é padre em 1969, formou-se em 1970, primeiro secretário do Metropolita Nikodim no mesmo ano. Tornou-se reitor do seminário e da academia teológica de 1974 a 1984. Em 1976 já era bispo. A verdadeira virada aconteceu em 1971, quando ele se tornou o representante oficial do Patriarcado de Moscou no Conselho Ecumênico de Igrejas em Genebra. Ele conhece as outras Igrejas Cristãs e o Ocidente. Falam de sua paixão esportiva nas pistas cobertas de neve da Suíça, sua admiração por relógios caros e carros potentes.

Falando em relógios caros, conta-se a história de alguns anos atrás de uma fotografia dele em hábitos litúrgicos em que é visível um relógio de marca que depois desaparece após uma campanha de imprensa contra ele. Torna-se um interlocutor apreciado e cria para si a reputação de liberal e ecumênico. Dá forma à intuição de Nikodim, ou seja, a de usar a abertura ecumênica para defender a ortodoxia em casa. O poder soviético começa a apreciar as interlocuções ocidentais da Igreja Russa e a imagem positiva que elas garantem.

Em 1989 torna-se presidente do departamento de relações exteriores do patriarcado. Um papel central que lhe garante uma presença estável no sínodo, os diálogos com o Ocidente e conhecimento direto dos outros bispos. Assim, com a morte do Patriarca Alexis, é eleito seu sucessor (2009). Aqui se abre a terceira temporada. O colapso da União Soviética e a pressão pela autonomia das Igrejas Ortodoxas que antes eram dominadas por Moscou o induzem a fortalecer o papel central das instituições patriarcais, a elaborar a doutrina do "espaço russo" (Russkij mir).

O vínculo litúrgico, o longo costume, a formação comum de bispos e teólogos sugerem reacender os vínculos pastorais mesmo após o reaparecimento dos estados e das nacionalidades. Mas é a chegada política de Putin que cumpre seu projeto. O instinto deste último de restaurar a consistência e o império ao poder moscovita combina-se com a opção pastoral de Kirill. Este último fornece a hipótese espiritual, cultural e as linguagens compatíveis e coaxiais com relação aos sonhos do novo czar.

Juntos, eles impõem um novo centralismo, extinguem as expectativas democráticas e lentamente sufocam o espaço da sociedade civil. Por outro lado, Putin abre à Igreja Ortodoxa um espaço de manobra que era completamente impensável até alguns anos antes: a presença na escola, o amplo reconhecimento na mídia, o reconhecimento de títulos de estudo e teologia nas faculdades estatais, uma apoio maciço à construção de igrejas (a uma taxa de 1.000 igrejas por ano), a reabertura de centenas de mosteiros, a cobertura "política" das operações internacionais da Igreja Ortodoxa Russa e o apoio para impor sua hegemonia na ortodoxia mundial.

Na nova Constituição faz-se referência explícita a Deus e garante-se que a família seja composta por um homem e uma mulher. Os valores morais tradicionais são um escudo entre a espiritualidade da Rússia e a decadência do Ocidente.

 

 

O passado soviético da Igreja Russa

 

Nos últimos dias, o jornal Huffingston Post relançou a notícia, retirada do arquivo Mitrokhin, de que Kirill tinha sido um agente da KGB desde os primeiros anos. Isso talvez explique a forte ligação com Putin?

 

O envolvimento de Kirill com os serviços secretos russos sob o nome de Mikhailov está hoje acertado como “de fato”, mas sempre foi percebido como "de direito". No regime soviético era difícil alcançar cargos públicos e interlocuções internacionais sem um "serviço" adequado à KGB. Mas seria um erro julgar o fato a partir da nossa sensibilidade.

Curvar-se à polícia secreta foi também o instrumento para salvaguardar um mínimo de liberdade e espaço para a vida eclesial. Isso foi afirmado diretamente pelo ex-Metropolita de Kiev, Filarete, na época um concorrente direto de Kirill para a sucessão de Alexis. Quando perguntado sobre seu passado de informante, ele respondeu que era a condição de todos os bispos e de todos aqueles que detinham autoridade na Igreja.

O domínio da sociedade na ditadura comunista era generalizado e a identidade ortodoxa não permitia a existência de uma Igreja "subterrânea" ou um "estado de confissão" contra os poderes constituídos. Mesmo na Igreja Católica polonesa, muito mais rochosa e defensável, os casos de colaboracionistas eram generalizados. Assim foram "pegos" Mons. Wielgus, arcebispo nomeado de Varsóvia (que imediatamente renunciou) e o card. Henryk Roman Gulbinowicz. Os serviços deste último duraram mais de 20 anos.

Voltando a Kirill, ele pode ter tido contato direto com Putin. Certamente o cuidado pastoral para o exército e para os serviços de segurança está em seu grupo. Há algumas semanas, causou escândalo a citação evangélica de Putin sobre o maior amor por um militar: dar a vida pelos amigos. As palavras do Evangelho soaram bem antes nos lábios de Kirill sobre o serviço militar.

 

Uma sinfonia fatal

 

Chegamos ao conteúdo da posição de Ķirill. A do Patriarca é uma verdadeira teorização de uma autocracia teocrática; neste contexto o quanto a religião se torna um instrumento do poder político? Ou os "dois reinos" estão tão entrelaçados que formam um único corpo muito semelhante ao Irã?

 

Mais do que teocracia, falaria com a linguagem ortodoxa da tradição da sinfonia, do acordo entre governo civil e autoridade eclesial. Depois de muitos séculos, Kirill parecia capaz de retomar o modelo bizantino, o acordo entre o imperador e o sínodo.

Na teocracia iraniana, a lei Sharia é o “tudo” do poder e o lado religioso determina a direção política. Na Rússia há mais espaço entre a Igreja e o Estado, o poder está firmemente nas mãos do presidente da federação e a laicidade das instituições, ainda que obscurecida, é ainda assim afirmada. O sinal de uma certa distância é dado pelo evento "catastrófico" do século XX russo.

 

Patriarca Kirill (Fonte: Vatican News)

 

Para Kirill é o fim dos Romanov e da Revolução de Outubro. Para Putin é a implosão da União Soviética dos anos 1990. O projeto político e eclesial está integrado no Russkij mir, na espera de recompactar o antigo espaço soviético com a tradição russo-ortodoxa e seu messianismo antiocidental. A crise da hipótese política poderia desencadear a rejeição do projeto religioso.

O que parece certo hoje é a perda da Ucrânia ortodoxa para o patriarcado de Moscou. Não é apenas o desaparecimento de um terço do total de paróquias do patriarcado e de um precioso reservatório de vocações monásticas e sacerdotais, mas sobretudo é o afastamento simbólico do berço histórico da Igreja, a Rússia de Kiev. Se Putin está perdendo a guerra, Kirill já perdeu a Ucrânia ortodoxa.

 

A oposição na Ortodoxia

 

As teses justificacionistas sobre a guerra de Kirill criaram escândalo no mundo ortodoxo e além (há afirmações que são aberrações teológicas). Sabemos que houve a reação de 400 sacerdotes ortodoxos que afirmam que a Doutrina do "mundo russo", propugnada pelo Patriarca, é uma heresia. Em que sentido?

 

Kirill justifica teologicamente a agressão contra a Ucrânia em nome da pertença comum à fé ortodoxa, agredida pelo Maligno representado pela imoralidade e decadência ocidentais. Trata-se de um embate apocalíptico, do conflito metafísico entre luz e trevas, da necessidade de impedir a Igreja Ortodoxa Russa da deriva antievangélica das Igrejas do Ocidente. Mas a identificação do Reino de Deus com uma etnia (russa) e suas instituições políticas atuais se configura - como afirmam mais de 500 teólogos ortodoxos - como uma infidelidade radical ao Evangelho.

A escolha de Kirill sufoca a dimensão original universalista da fé cristã e obriga o povo crente da Ucrânia a uma posição quietista e de desistência em relação aos deveres de justiça e dignidade das pessoas. 300 padres ortodoxos russos (de 40.000) expressaram sua opinião por uma tomada de distância da guerra.

Mais de 400 padres ucranianos, de obediência russa, pediram que Kirill fosse demitido de seu cargo.

 

Os mesmos sacerdotes, signatários do apelo, pediram ao Conselho dos Primazes das Igrejas antigas Orientais que destituísse Kirill do "trono" patriarcal. Isso é possível? Kirill está isolado no mundo ortodoxo?

 

É difícil imaginar a demissão forçada de Kirill. No texto dos padres ucranianos, o chamado histórico para demitir Kirill é um concílio dos patriarcas orientais de 1666 que condenou o Patriarca Nikon de Moscou. A possibilidade de isso acontecer hoje é nula. E, nos estatutos da Igreja Russa, o direito de examinar a atuação do patriarca é reservado ao Concílio dos Bispos (a assembleia que reúne todos os bispos).

Nenhum bispo russo se pronunciou até agora contra Kirill. Aliás, agora há cerca de uma dezena que saíram em sua defesa pública.

O único que poderia tomar uma decisão sobre o assunto, não em um sentido legal, mas substancial, é Putin. É provável que o próximo concílio de bispos (previsto para o próximo outono russo) discuta a questão ucraniana, mas nada sugere a expectativa de uma deslegitimação de Kirill.

 

Divisor de águas ecumênico: o papel de Francisco

 

A guerra marca, no entanto, um divisor de águas dramático para o mundo do cristianismo oriental (não apenas ortodoxo). Que consequências terá no plano ecumênico?

 

Sim, a guerra determinará um antes e um depois. Levando em consideração a extraordinária riqueza histórica, espiritual e teológica da Igreja Ortodoxa e da Igreja Russa em particular, é possível esperar um período de profunda reflexão e experimentação pastoral.

Provavelmente, o cisma em curso entre a ortodoxia eslava e a ortodoxia helênica será enfrentado de maneira diferente e a própria Ucrânia poderia se tornar um campo de experimentação positiva dentro das Igrejas Ortodoxas e com a Igreja Católica de Rito Oriental. Por enquanto, pode-se registra uma grave ferida no testemunho do cristianismo como um todo.

 

Última pergunta: o Papa Francisco não é demasiado otimista em relação a Kirill (os dois estão nos antípodas)?

 

Francisco navega a uma profundidade que relativiza até as graves turbulências da superfície. Com relação à Ucrânia, ele implementou a oração universal da Igreja, a dimensão da piedade popular (consagração da Ucrânia e da Rússia ao imaculado coração de Maria), a atividade diplomática da Santa Sé, as competências teológicas, uma dura condenação da guerra, mas sem acusações diretas às pessoas, ainda que evidentes.

Ele sabe que atualmente é o único ponto de referência credível para o conjunto das Igrejas Ortodoxas e que deve assumir o peso de representar todo o cristão no serviço petrino. É uma situação inédita que não se mede nas relações pessoais ou nas urgências imediatas da geopolítica, mas nas correntes profundas da história.

 

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