31 Março 2022
Por um lado, pode parecer incontestável que a invasão da Rússia à Ucrânia é uma guerra possibilitada e exacerbada pelo apetite insaciável do mundo pelos combustíveis fósseis. É impossível que não seja isso: a Rússia é um petro-Estado – sua economia e influência global dependem em grande medida de suas vastas reservas de petróleo e gás natural – e Vladimir Putin é seu petromonarca, um a mais em uma linha de personagens repugnantes com quem as democracias liberais continuam fazendo negócios porque possuem algo que lhes é indispensável.
A reportagem é de Farhad Manjoo, publicada por The New York Times em espanhol, 27-03-2022. A tradução é do Cepat.
A saída dessa situação também parece óbvia e urgente. Acelerar nossa transição para combustíveis renováveis baratos e abundantes permitiria resolvermos, ao mesmo tempo, duas ameaças graves ao planeta: a ameaça dos hidrocarbonetos, causadores do aquecimento climático e a poluição do ar, e a dos ditadores que determinam seu abastecimento.
No entanto, os políticos estadunidenses de esquerda parecem totalmente incapazes de estabelecer essa conexão, ou não? Em seu Discurso sobre o Estado da União, pouco após a invasão da Rússia, o presidente Joe Biden desperdiçou uma grande oportunidade. Poderia ter ressaltado os perigos geopolíticos dos combustíveis fósseis e assim reavivar seu plano para as mudanças climáticas, que está estagnado.
Em vez de vincular a guerra com algumas referências às mudanças climáticas – que em outras oportunidades descreveu como uma “ameaça existencial” para o planeta –, preferiu enterrar o assunto. Como está preocupado com os efeitos que as suspensões podem ter na oferta de combustíveis, no preço da gasolina e na inflação em geral, também anunciou, junto com outras 30 nações, que serão colocados em circulação 60 milhões de barris de petróleo.
Enquanto isso, os críticos de direita não perderam a oportunidade de ouro apresentada pela ideia de que a invasão da Rússia, por algum motivo, demonstra o absurdo de nos ocuparmos com as mudanças climáticas. O conselho editorial do The Wall Street Journal destacou que “a obsessão do governo de Biden com o clima” é a culpada por tornarem os “Estados Unidos e Europa vulneráveis à extorsão energética de Putin” e escreveu que “o lobby climático tornou Putin mais poderoso”.
Sinto como se estivesse de cabeça para baixo. Se “o lobby climático”, de fato, tivesse tal poder, talvez há tempo já teria evitado que a Europa construísse sua sociedade com base em um acordo diabólico pela energia russa. Por outro lado, apesar de toda a sua “obsessão climática”, os democratas do Senado estadunidense não conseguiram aprovar uma lei para regular as emissões que causam o aquecimento climático. Ao contrário, um senador partidário do carvão dificultou seu projeto de lei, e agora o problema das mudanças climáticas ficou relegado pelo tema da guerra.
Alguns democratas parecem ter esquecido completamente o planeta. Gavin Newsom, governador da Califórnia, pretende entregar a todos os proprietários de automóveis de seu estado até 800 dólares em reembolsos para compensar o elevado preço da gasolina. Este momento poderia nos ter dado clareza moral sobre os perigos dos combustíveis fósseis, mas, até agora, os democratas hesitaram em transmitir essa mensagem.
“Este relato não foi difundido: que esta guerra é o motivo pelo qual precisamos deixar de depender dos combustíveis fósseis”, disse Leah Stokes, cientista política da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, especialista em política ambiental. “Mais grupos precisam conectar os pontos e argumentar que a verdadeira independência energética será conquistada quando utilizarmos a energia da luz solar, porque a luz solar é gratuita e abundante e nenhum ditador pode controlá-la”.
Stokes destaca que é muito provável que as pessoas se identifiquem com essa mensagem. Um estudo que realizou com outra autora, publicado online em 2017, examina os fatores políticos que levaram à proposição de políticas de energias limpas. “Descobrimos que, na grande maioria dos casos, tais políticas foram aprovadas durante crises energéticas”, explicou-me. Justamente quando a energia é cara ou difícil de obter, os estadunidenses reagem e compreendem que devem buscar uma nova alternativa.
A boa notícia é que os democratas têm essa nova alternativa pronta. Build Back Better, a política social e ambiental de amplo alcance que não passou pelo Senado no ano passado, inclui uma série de ideias excelentes para abordar a crise atual. Esse esforço não pereceu totalmente. Os democratas ainda estão em negociações com Joe Manchin, senador pela Virgínia Ocidental que está segurando o projeto de lei, e ainda podem unir forças para aprovar algumas partes.
Mas o que tem me desconcertado é o motivo pelo qual Biden e os democratas não defendem agressivamente suas propostas no novo contexto da guerra, nem enfatizam que a política climática não é alheia à política exterior, razão pela qual nos libertar dos combustíveis de outras pessoas é a melhor solução a longo prazo para os preços energéticos tão altos.
Conversei com vários defensores da política climática que lamentaram a aparente resistência da Casa Branca em comunicar com vigor tal mensagem. Rhiana Gunn-Wright, diretora de Política Climática no Instituto Roosevelt, disse-me que “a forma como os combustíveis fósseis fazem com que os preços energéticos sejam muito mais voláteis e nos deixam à mercê de potências e líderes que podem agir de forma perigosa e injusta” nunca foi tão óbvia. “Nunca tinha percebido que era tão evidente em toda a minha vida”, afirmou.
Mas o que me fez entender a relação, pessoalmente, foi uma entrevista com Svitlana Krakovska, cientista do clima ucraniana e membro do Painel Intergovernamental de Especialistas sobre as Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas.
Há pouco, Krakovska disse ao jornal The Guardian que quando as bombas russas começaram a cair sobre a Ucrânia, refletiu sobre a natureza interconectada de sua área de estudo e os perigos que seu país enfrenta.
Vou deixar que ela encerre este artigo: “Comecei a pensar sobre os paralelos entre as mudanças climáticas e esta guerra, e para mim ficou claro que a raiz destas duas ameaças à humanidade está nos combustíveis fósseis”, disse Krakovska na entrevista. “A queima de petróleo, gás e carvão provoca o aquecimento e outros impactos aos quais precisamos nos adaptar. A Rússia, por sua parte, vende estes recursos e utiliza o dinheiro para adquirir armas. Outros países dependem desses combustíveis fósseis e não se libertam deles. Estamos em uma guerra pelos combustíveis fósseis. É evidente que não podemos continuar vivendo assim, pois acabaremos destruindo nossa civilização”.
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A guerra da Rússia é a dos combustíveis fósseis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU