08 Mai 2021
De 1965 a 2001, o padre Alex Zanotelli participou de missões na África (no Sudão, no Quênia), testemunhando o efeito que as epidemias têm no Sul do mundo: “O egoísmo, no fim, acabará nos matando também”, comenta ele, sobre as vacinas anti-Covid-19.
A reportagem é de Adriana Pollice, publicada em Il Manifesto, 07-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Qual é o efeito das desigualdades tão fortes na distribuição das vacinas?
Os países ricos, de 10 a 14% da população, asseguraram 53% das doses. O que importa não é a saúde pública, mas o lucro. A Índia e a África do Sul propuseram quebrar as patentes. Pode ser que a abertura de Biden sobre o tema dependa de motivos de geopolítica, mas o fato é que ele é católico, pode ser que a doutrina social da Igreja tenha um peso, que esteja presente como uma ideia, mesmo que não declarada explicitamente. O surpreendente é que ele parece mais decidido do que Obama: talvez ele aprendeu, precisamente quando era vice de Obama, que tergiversar não leva a nada.
O que nos diz a doutrina social da Igreja?
Uso as palavras do Papa Francisco na Fratelli tutti: “A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro princípio de toda a ordem ético-social [...]. O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário” [n. 120].
As empresas farmacêuticas não parecem dispostas a abrir mão de sua vantagem competitiva sobre as vacinas.
A pandemia afeta a todos. Somos estúpidos se achamos que vamos nos salvar fazendo os outros morrerem. O vírus fica mais agressivo e se volta contra nós, cada vez mais perigoso, por meio das variantes. A saúde é um bem comum. As vacinas foram desenvolvidas com financiamento público, é justo distribuí-las igualmente. A função do Estado é precisamente esta, intervir com a sua autoridade para pedir uma distribuição equitativa dos bens desenvolvidos com a tributação geral. As grandes empresas farmacêuticas querem ter lucro, mas, em uma situação como esta, o Estado tem a obrigação de colocar uma contenção. Infelizmente, estamos verificando mais uma vez que, em vez disso, que manda são as finanças, as multinacionais. O Sul deve ter a possibilidade de produzir as vacinas de que precisa também por meio da transferência de conhecimento.
Qual é o efeito do outro lado do Mediterrâneo de uma epidemia tão violenta?
Há anos, assistimos indiferentes ao apartheid sanitário, que é muito mais devastador do que o econômico. Eu estava na África quando a Aids eclodiu. Havia remédios, mas só para os ricos. Eu vi crianças de 13, 14, 16 anos morrendo na minha frente. O Ocidente simplesmente não se importa. Nunca desenvolveu uma vacina contra a malária, apesar dos danos que produz, talvez só agora estejamos chegando lá. Uma doença terrível como a lepra voltou a atacar, porque produziu resistência aos medicamentos, e não se investe na pesquisa de novos remédios. Sequer enviamos as vacinas anti-Covid. É o escândalo de um sistema de morte que permite que 10% do mundo engula 90% dos bens. Isso ocorre em todos os níveis. O Ocidente vive daquilo que subtrai do Sul do mundo e depois se volta para o outro lado diante das mortes por Covid, por miséria, por guerra.
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“O egoísmo acabará destruindo até os países ricos do Ocidente.” Entrevista com Alex Zanotelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU