A fragilidade que nos falta e o culto impossível. Artigo de Andrea Grillo

Foto: Gabriella Clare Marino | Unsplash

30 Março 2021

 

"Para correlacionar Eucaristia e fragilidade, é necessário agir em diferentes níveis. É preciso reconhecer que o rito tem uma exterioridade vital e não simbólica, à qual responde e à qual presta serviço: uma frágil exterioridade de sofrimento, que deve ser honrada, trazida à memória e tornada sujeito. Mas o rito também tem uma fragilidade que lhe é constitutiva e que alimenta no plano da ação simbólica 'em exercício' a atenção ao ser frágil dos outros. Nossa fragilidade ritual é inerente ao ato de fé. Requer mãos conscientes de que devem gerir um tato arriscado e abençoado, uma proximidade diferente, de que necessitamos para poder reconhecer o rosto do outro e expressar a nossa fraternidade ao outro, também no rosto", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicador por Il giornale di Rodafà, 14-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

O triste fenômeno que vivemos há um ano, com toda sua potência que tanto nos perturba, amedronta e questiona, manifesta dinâmicas profundas: esconde umas coisas, enquanto traz à tona outras. Eu aplico minha atenção à relação entre "ação ritual" e "fragilidade". Esta perspectiva resulta singularmente eficaz para nos obrigar a olhar as coisas eclesiais de maneira diferente, e as litúrgicas em particular. A novidade está precisamente em descobrir que a liturgia cristã não está simplesmente "diante" da fragilidade, mas exige uma explícita "forma frágil", que hoje nos é excluída. Na liturgia ocorre uma “perda de controle de si” - e uma “entrega corporal ao outro” - que hoje se tornou bastante difícil, senão impossível. Mas se quisermos dizer toda a verdade, é preciso reconhecer, essa corporeidade ritual não era muito fácil nem mesmo antes, quando não havia nenhuma ameaça de epidemia ou contágio. Assim, mesmo o contágio se torna, paradoxalmente, uma oportunidade. Vamos brevemente tentar entender melhor a questão.

 

1. Vita civil, comunidades eclesiais e ação litúrgica segundo o protocolo

Inevitavelmente, este fenômeno macroscópico da pandemia, que alterou as formas de vida, de produção, de desenvolvimento e de percepção, tendo sido "verbalizado em excesso", tornou-se cheio de "clichês" . Compreender sua natureza e efeito não é fácil. Quando em abril vimos cervos de longos chifres andando pelas ruas das aldeias, encontramos longas filas de patos cruzando as passagens de pedestres, quando vimos golfinhos se aproximando do cais e pássaros bicando nossas migalhas bem dentro de nossas janelas, percebemos que algo muito maior do que uma emergência sanitária havia acontecido.

Tento aqui propor o que eu definiria como "interpretação sócio-litúrgica" da pandemia de Covid-19. Vou fazer isso em três etapas:

 

a) O impedimento sanitário da expressão/experiência comunitária

A emergência sanitária, do ponto de vista da ordem pública, determinou um fenômeno impressionante. Ao reconhecer apenas as residências privadas como "seguras", achatou substancialmente sobre o mesmo modelo de "protocolo" tanto os espaços públicos como os espaços comunitários. Em relação com a estrutura da sociedade que prevê três níveis de experiência e expressão (a casa privada, a praça pública e os espaços comunitários como igrejas, associações, bares, academias, piscinas, clubes recreativos), dividiu drasticamente entre a "esfera privada" e todo o restante, que foi reconduzido e reduzido à normativa pública.

 

b) A privatização e digitalização das relações

Esse fenômeno institucional corroeu totalmente (em março-maio) ou parcialmente (a partir de junho) os espaços comunitários, que se reduziram aos espaços privados, ou às lógicas do "remoto", ou "adaptaram-se" às normas vinculantes no plano público. A privatização de todas as formas comunitárias, ou sua transmigração "online" foi um evento que permanecerá na história. Os sinais desse evento perturbador ainda não foram superados. Hoje, embora em uma versão atenuada em relação ao período de março a maio, ainda o estamos vivendo de forma intensa.

 

c) Exposição e redução pública da liturgia

Esta condição "estrutural" de fato afetou profundamente o lado "expressivo-experiencial" de nossa Igreja e de nossas liturgias. Porque a Igreja, efetivamente, se coloca predominantemente no lado comunitário. Certamente tem relações tanto com a dimensão privada como com a pública, mas a sua verdade é ser um “lugar de comunhão”, um lugar de reconhecimento, um lugar de contato, um lugar de proximidade. A remoção do espaço comunitário e sua assimilação ao espaço público, retirou o lugar próprio e a linguagem elementar da vida eclesial [1].

A questão que levantei no início é útil para tal condição paradoxal: em que relação está tudo isso com a distração e a fragilidade? Como é possível garantir ainda aquela margem de distração e de fragilidade sem a qual não é possível "celebrar"? Desfiles e cerimônias podem ocorrer em público, mas as celebrações não.

 

2. O que acontece com a fragilidade tão típica da liturgia?

Aqui se insere a relevância do cuidado com a fragilidade, tão típico da liturgia. É precisamente a "necessidade visceral" de uma liturgia "frágil", que a pandemia torna muito difícil para todos nós, elevando o nível de "atenção" de forma desmedida. Pode parecer um paradoxo, mas com a pandemia e seu justificado "protocolo sanitário", nossas liturgias perderam sua fragilidade natural e necessária. Justamente porque somos todos "vulneráveis", defendemo-nos reciprocamente. Mas este expediente, que continua sendo totalmente precioso no plano sanitário, impede-nos de habitar plenamente a região comunitária da experiência: sem distração/abandono de si e sem expressão da fragilidade, temos dificuldade justamente para celebrar.

 

a) Liturgias “privadas” e “públicas”

A pandemia tornou nossas liturgias privadas e depois públicas. No sentido de que lhes roubou aquela diferença “comunitária” que se expressa de forma elementar, com as linguagens mais imediatas do corpo, do espaço, do tato, do rosto, do movimento. O deslizamento para o público da ação ritual faz com que ela perca sua linguagem própria e a enrijece em uma série de "observâncias" que se sobrepõem e interferem fortemente no registro simbólico-ritual.

 

b) Três palavras exemplares: hands, face, space

Vamos tentar entender melhor esse “impasse” através das palavras inglesas com as quais, num primeiro momento (hoje já mudaram) foi uniformizado o comportamento em contextos públicos e comunitários. No Reino Unido, um lema de três palavras era visto em todos os lugares.

HANDS – FACE - SPACE

ou

MÃOS -ROSTO - ESPAÇO

O ambiente sanitário era assim resumido em três “lugares corporais” como as mãos, o rosto e o espaço. O contágio é superado, ou pelo menos se contém, trabalhando com cuidado e meticulosamente no tato.

 

c) Deserto corporal

A atenção para "higienizar as mãos", às vezes até cobrindo-as com luvas; a obrigatória cobertura da boca e do nariz com máscaras; o distanciamento de pelo menos um metro, que se interpõe entre os sujeitos, retira qualquer corporalidade da relação nos lugares públicos e comunitários. Isso é feito, que fique claro, por corretas razões sanitárias. Mas, desta forma, indireta mas efetivamente, desertificam o espaço público e comunitário de toda expressão de relação, deslocando-o de maneira integral e decisiva no plano da vida privada. Um espaço público e, acima de tudo, um lugar comunitário, ao qual é removido muito do seu potencial comunicativo, resulta cada vez menos habitável. Assim, o privado, considerado potencialmente seguro, torna-se um refúgio e, muitas vezes, também uma tentação. Não é por acaso que um dos produtos mais vendidos no ano passado tenha sido o “sofá”!

 

d) Emoticon sem rosto

O órgão do tato (mãos), do olfato (nariz), do paladar e da palavra (boca) e a delicada linguagem do espaço (distância), assim alterados, afetam profundamente a possibilidade de "expressão" e de "experiência" da relação. A máscara evita sermos reconhecidos e nos expressar com a mímica facial. Até os "emoticons" são mudos, se usarem a máscara! Caso apenas os olhos sejam vistos em um rosto e caso apenas os olhos possam expressar palavras, mesmo que impedidas e/ou obscurecidas pelo véu da máscara, a expressão da própria experiência e a experiência da expressão alheia resultam fortemente reduzidas, estilizadas, confinadas, mutiladas.

 

e) A couraça contra o contágio/contato

Mas há mais: as medidas de prevenção, que acertadamente tomamos face à nossa fragilidade no que diz respeito ao contágio, paralisam justamente a “linguagem da fragilidade”! Ou seja, aquela linguagem que expressa a necessidade de mãos acolhidas, acolhedoras, reconciliadoras e reconciliadas, de corpos que se aproximam e se unem, de rostos que pedem reconhecimento e que têm necessidades e desejos a expressar. Homens e mulheres com "mãos limpas" (sem pecado), não afetivos e inexpressivos (sem escuta e sem palavra), que sempre se mantêm à distância (autossuficientes) são "fortes demais", sérios demais, firmes demais, íntegros demais e demasiadamente pouco capazes de confessar sua fragilidade. A correta couraça contra a pandemia embota os sentidos, distancia o próximo, impede a expressão, limita a experiência. As relações sufocam, a não respira. Não é possível acariciar com uma couraça. E não se celebra sem se distrair de si mesmos e sem se expor ao outro.

 

f) Uma práxis sem gramática

Assim, inevitavelmente, o protocolo sanitário tem em certa medida "bloqueado" e "reduzido" as nossas liturgias, que vivem de linguagens corporais, de formas, de encontros, de cantos, de festas em comum. Se o parêntese não for um parêntese [2], mas é um longo período, podemos pensar, planejar, esperar que, quando tudo acabar, encontremos a força para "desejar" mãos sensíveis, rostos expressivos e reconhecíveis, distâncias encurtados, proximidade promissora? Poderemos voltar a ser “frágeis” em nosso celebrar e capazes de “distração” para nos abandonarmos a Cristo e à Igreja? Ainda poderemos ser capazes de não nos "defender" precisamente no acesso ao ato de culto? Este é o ponto da esperança, para o qual se faz necessária uma profecia de ventura, de aventura e não de desventura: de fato "a boca beijada não perde ventura".

 

3. Pressentimento e perspectiva

Talvez justamente este tempo, com as características que brevemente consideramos, possa nos dar uma tarefa inesperada: receber verdadeiramente, a pleno, a boa palavra do Concílio Vaticano II e de sua reforma da liturgia e da Igreja. Lembrando que a Reforma Litúrgica foi e quis ser lida como um “instrumento” em vista de outro e não como um “fim em si mesmo”. Sobre esse ponto delicado e tão subestimado, as simplificações têm sido muitas e bastante arriscadas: muitas vezes prevalece um grande esforço catequético em relação à liturgia, enquanto suas práxis não são levadas em real consideração. O cuidado com a ação - e a prevalente confiança nas linguagens "não verbais", precisamente porque hoje resultam completamente "excluídas" e "impedidas" - abre, quase sub contraria species, um novo espaço para a releitura da reforma litúrgica. Seu propósito reside, justamente, na aquisição de uma nova forma ritual compartilhada, que elabore as identidades comuns e pessoais.

Per ritus et preces – ou seja, a forma ritual da inteligência litúrgica da Eucaristia - significa precisamente que através da aparente "distração" dos ritos, através de sua pouco econômica não verbalidade aconceitual e corporal, penetramos mais profundamente na verdade da palavra e do sacramento. E isso acontece não “explicando os ritos”, mas “deixando os ritos falarem” [3].

Isso é exatamente o que foi expresso com o termo "conhecimento per connaturalitatem" por C. Vagaggini, na década de 1950, e que foi definido como "conhecimento simbólico" 30 anos antes por Romano Guardini. Mas não foi diferente também em M. Festugière, antes da Primeira Guerra Mundial, a ideia de "mediação litúrgica" reconhecida como uma "fonte" e, da mesma forma, no "pensamento total" de O. Casel a manifestação da atenção pela "exterioridade" do "mistério de culto". O Movimento Litúrgico, em outras palavras, nasceu não com o objetivo da Reforma, mas com a descoberta do modo original da "inteligência ritual". Em vista disso, elaborou estratégias para a reforma dos ritos, desde o início do século XX, encontrando depois, somente no segundo pós-guerra, o clima adequado para uma reforma global da liturgia, que começou não com o Concílio, mas mais de 10 anos antes, sob Pio XII. A Vigília Pascal e a Semana Santa, o centro do ano litúrgico, tornaram-se desde então os lugares de experimentação para uma retomada da inteligência ritual, que depois o Concílio Vaticano II relançou sobre toda a experiência do culto eclesial. Mas depois do Vaticano II, a recepção da reforma chocou-se com um "protocolo" que muitas vezes paralisou sua vitalidade. Agora, graças ao protocolo da pandemia, vemos claramente os limites da recepção realizada e somos instados a retomar o caminho deixado por tempo demais em suspenso.

 

4. Uma nova atenção ao entrelaçamento entre fragilidade vivida e fragilidade expressa

Para correlacionar Eucaristia e fragilidade, é necessário agir em diferentes níveis. É preciso reconhecer que o rito tem uma exterioridade vital e não simbólica, à qual responde e à qual presta serviço: uma frágil exterioridade de sofrimento, que deve ser honrada, trazida à memória e tornada sujeito. Mas o rito também tem uma fragilidade que lhe é constitutiva e que alimenta no plano da ação simbólica "em exercício" a atenção ao ser frágil dos outros. Nossa fragilidade ritual é inerente ao ato de fé. Requer mãos conscientes de que devem gerir um tato arriscado e abençoado, uma proximidade diferente, de que necessitamos para poder reconhecer o rosto do outro e expressar a nossa fraternidade ao outro, também no rosto.

Cuidar da fragilidade também significa ter lugares onde ela pode se expressar efetivamente. Estes lugares simbólicos e rituais são decisivos para desenvolver um “cuidado pelo outro”, tendo desenvolvido um cuidado eclesial de si mesmo, precisamente na “distração de si mesmo”. A fragilidade redimida da vida pede para se tornar evidente nos delicados símbolos do tato, dos rostos e da proximidade. Poder voltar e perder o controle das mãos, dos rostos e das distâncias - aquilo que hoje só podemos nos permitir “em privado” - apareceu neste último ano quase como a pré-condição para voltar a celebrar realmente e ser plenamente comunidade. Voltaremos à desatenção com que se expressa a fragilidade da fé: eis um surpreendente programa para sair da emergência sanitária e implementar aquela "terapia litúrgica" que o Vaticano II ensinou sobre o que a Igreja "pensa" e "vive" de si mesma: a relação da Igreja com seu Senhor permanece necessariamente também tátil, visual e espacial. Requer mãos sensíveis, rostos reconhecíveis e expressivos, distâncias que se encurtam a ponto de abraçar e beijar. Caso contrário, a celebração continuará sendo um desfile ou uma cerimônia.

 

Notas

[1] As implicações desse desenvolvimento exigem um repensamento radical da eclesiologia, seguindo as linhas do que M. Neri sugere em Fuori di sé. La Chiesa nello spazio pubblico, Bolonha, EDB, 2021.

[2] Cf. D. Olivero (ed.), Non è una parentesi. Una rete di complici per assetati di novità, Cantalupa (TO), Effatà, 2020.

[3] A inadequação da recepção do Concílio pode-se constatar inclusive nas "traduções" do texto da sua Constituição litúrgica: uma das mais difundidas edições italianas, traduz "per ritus et preces id bene intelligentes" da SC 48 com a frase italiana “comprendendo bene i riti e le preghiere”: Isso não apenas é uma “tradução livre”que trai o texto em latim, mas também é uma incompreensão do “objetivo” da reforma, que não é uma conceitualização da história da salvação, mas uma mediação ritual de tal história. A edição oficial inglesa – no site do Vaticano – traduz de forma errada “through a good understanding of the rites and prayers” (neste link, acesso em 27 fevereiro de 2021). Ainda mais marcado o erro na tradução em português (uma boa compreensão dos ritos e orações).

 

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