O medo do apocalipse climático, entre o catastrofismo e a clarividência

Foto: Unsplash

06 Janeiro 2021

Baseado em trabalhos de climatologistas, o medo de um colapso planetário assombra os cidadãos dos países do Ocidente. Gerando teorias catastrofistas em alguns, pode, no entanto, tornar-se a base de uma nova ética.

 

A reportagem é de Anne Chemin, publicada por Le Monde, 02-01-2021. A tradução é de André Langer.

 

O grande historiador das mentalidades religiosas, Jean Delumeau (1923-2020), sorriu prontamente dos pavores de seus contemporâneos. A insegurança urbana, os acidentes aéreos ou as doenças crônicas quase não o impressionaram: o autor de História do medo no Ocidente: 1300-1800 (Companhia das Letras) enfrentou perigos infinitamente mais ameaçadores ao frequentar assiduamente os arquivos da Idade Média e o início da modernidade no Ocidente. Naquela época, resumiu, os homens e as mulheres estavam “expostos à morte a qualquer momento”. “É por isso que alguns medos contemporâneos me parecem excessivos”, concluiu.


Desde o início do século XXI, porém, os cidadãos do mundo enfrentam uma ameaça que seus ancestrais ignoraram – o medo, não da própria morte, mas do planeta. Esse medo do apocalipse ecológico não se baseia em profecias religiosas incertas, mas em modelos científicos elaborados por climatologistas do mundo inteiro. Desde 2000, também teve um nome: para o biólogo Eugene Stoermer (1934-2012) e o Prêmio Nobel de Química (1995) Paul Crutzen, a revolução industrial do século XIX soou como a hora do “Antropoceno”, esta era geológica marcada pela pegada irreversível do homem na biosfera e no sistema terrestre.

 

Principal preocupação

 

Nos últimos anos, as desordens ecológicas tornaram-se a maior preocupação dos cidadãos ocidentais. De acordo com uma pesquisa realizada no verão de 2020 pelo American Pew Research Center em 14 países, 70% dos entrevistados consideram as mudanças climáticas a maior ameaça à humanidade – à frente das doenças infecciosas (69 %), do terrorismo (66%) ou da proliferação nuclear (61%). Esse medo é particularmente forte na França: está no topo de 83% dos entrevistados, contra 70% na Bélgica e na Holanda, 69% na Alemanha, 67% no Canadá, 63% na Suécia, 62% nos Estados Unidos e 60% na Dinamarca.

 

Foto: Greenpeace

 

Como enfrentar esse perigo sem precedentes na história da humanidade? Como reagir a esse processo que, em última análise, ameaça a própria existência das civilizações contemporâneas?

 

“O maior risco para a vida humana vem da ação humana, constata a economista Claudia Senik, diretora científica da Fundação para as Ciências Sociais. Esse paradoxo destaca os limites da nossa racionalidade: a mudança climática atinge alguns com inércia, enquanto engendra discursos catastrofistas e estilos de vida radicalmente alternativos em outros – estou pensando particularmente nos sobrevivencialistas e nos colapsologistas”.

 

Retórica sobrevivencialista

 

O termo “sobrevivencialismo” foi cunhado no início dos anos 2000 pelos cientistas políticos John Dryzek e David Schlosberg para designar uma corrente de pensamento que surgiu nas décadas de 1960 e 1970. O livro de cabeceira desses pioneiros da ecologia política é o Relatório Meadows do Clube de RomaLimites do Crescimento’, de 1972 (publicado no Brasil em 1973 pela Editora Perspectiva).

 

“Este livro desempenhou um papel fundamental na estruturação do imaginário ecológico ao injetar massivamente uma retórica sobrevivencialista no campo político, destaca o pesquisador em ciência política Luc Semal no livro Face à l’effondrement, militer à l’ombre des catastrophes, PUF, 2019 (Face ao colapso, militar à sombra das catástrofes). O não cumprimento dos limites do crescimento pode, de acordo com o relatório, levar o mundo civilizado a um colapso global”.

 

Meio século depois, o significado do termo sobrevivencialismo mudou: hoje ele se refere a homens que estão se preparando ativamente para o “colapso” armazenando alimentos, traçando planos de evacuação, empunhando armas de fogo e aperfeiçoando as técnicas artesanais de pesca, caça ou caça furtiva.

 

“Ali onde a acepção do termo ‘sobrevivencialista’, incorporado especialmente pelo Relatório Meadows, se referia à preocupação com a sobrevivência coletiva, esta segunda acepção, infelizmente mais comum e mais propícia a fantasias e à desqualificação, refere-se apenas à preocupação da sobrevivência individual”, prossegue Luc Semal.

 

Reconectar-se com os valores belicosos

 

De acordo com o sociólogo Sébastien Roux, que desde 2018 estudou vários grupos sobrevivencialistas em Phoenix e Tucson (Arizona), cerca de quatro milhões de americanos afirmam pertencer ao mundo dos “preppers” (aqueles que se preparam). Esses homens, que profetizam o “fim-do-mundo-como-o-conhecemos”, leem revistas especializadas, participam de estágios de sobrevivência e frequentam centros de ajuda mútua e de aconselhamento. Gary, um “prepper” de 23 anos entrevistado por Sébastien Roux, estoca em seu quarto armas, livros, bumerangues e facas que, segundo ele, vão salvar sua vida quando “tudo desaparecer”.

 

Ao contrário do que muitas vezes se acredita, os “preparadores” estão longe, muito longe de qualquer consciência ambiental. Oriundos da classe média, esses homens brancos que na maioria das vezes se proclamam republicanos, libertários ou cristãos exaltam os valores racistas e militaristas.

 

“Para os ‘verdadeiros’ sobrevivencialistas, a ‘preparação’ (‘preparedness’) é a expressão de uma americanidade que eles prezam, um meio de se reconectar com os valores viris, religiosos e guerreiros que, segundo eles, fizeram a grandeza de uma nação escolhida por Deus, diz Sébastien Roux. Eles se veem como defensores de uma América pervertida – por negros, democratas, fracos, federalistas e socialistas”.

 

 

Os sobrevivencialistas dos anos 2020 não temem realmente o aceleramento do aquecimento global ou o colapso da biodiversidade: em vez disso, eles procuram resistir ao “rebaixamento e à expropriação”. “Esses conservadores comuns se consideram ‘estrangeiros em seu próprio país’, segundo o título de um livro do sociólogo americano Arlie Hochschild, prossegue Sebastien Roux. Suas ações testemunham, à sua maneira, uma forma de luta pela reapropriação de si. Para eles, a preparação não é uma antecipação do futuro, mas uma luta, no presente, contra a dominação e a opressão”.

 

A invenção da colapsologia

 

Muito diferentes são os colapsologistas, que pertencem totalmente, desde o seu nascimento, ao movimento ambientalista. A reflexão desta corrente de pensamento centra-se na noção de “colapso” (“collapse”) – uma referência explícita ao título da obra do geógrafo americano Jared Diamond sobre o desaparecimento de certas civilizações como os maias ou os vikings. “O neologismo ‘colapsologia’ foi inventado em 2015 pelos pesquisadores independentes Pablo Servigne e Raphaël Stevens, especifica o antropólogo Jean Chamel. Forjado a partir do latim ‘collapsus’, esse termo designa, segundo eles, o exercício transdisciplinar de estudo do colapso de nossa civilização industrial”.

 

Os discursos apocalípticos de colapsólogos, que hoje irrigam muitos movimentos ambientalistas, afirmam que o colapso não é uma ameaça distante que paira sobre o futuro da humanidade, mas um processo irreversível que já está em andamento – e que não pode mais ser interrompido. “As redes da colapsologia incorporam uma dimensão catastrofista que confere um caráter politicamente muito atípico e muito dissonante ao projeto ambiental, analisa o pesquisador Luc Semal. Essas mobilizações foram as primeiras a apontar os impasses do desenvolvimento sustentável, cujas promessas parecem se despedaçar diante da brutal realidade do Antropoceno”.

 

 

Ao associar a palavra “collapsus” ao termo grego “logos”, que se refere à racionalidade, Pablo Servigne e Raphaël Stevens colocaram, em 2015, sua nova disciplina sob o signo da credibilidade científica. O livro também menciona uma série de artigos publicados em periódicos revisados por pares, como Nature e Science, bem como relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Também se baseia em teóricos reconhecidos do pensamento sistêmico e da complexidade – o filósofo Edgar Morin, os matemáticos Norbert Wiener (1894-1964) e John von Neumann (1903-1957) ou o neurofisiologista Warren McCulloch (1898-1969).

 

Mas a colapsologia constitui, então, uma nova disciplina do conhecimento? Está se tornando uma verdadeira “ciência” do colapso? “Os colapsólogos contam com abordagens sistêmicas muito sérias, mas empilhar os estudos uns sobre os outros para agregar os vários fatores do colapso e concluir que há um risco sistêmico global não constitui uma abordagem científica específica para elevar a colapsologia a um novo campo de pesquisa acadêmica”, responde Jean Chamel, pesquisador visitante do Centre for the Anthropology of Sustainability da University College de Londres.

 

Pelo fato de a ciência ter “limites epistemológicos”, nas palavras de Pablo Servigne, os colapsólogos apelam, na verdade, a modos de conhecimento “alternativos” baseados na intuição mais do que na racionalidade. Muitos deles invocam assim a fenomenologia da natureza de Goethe (1749-1832), que faz parte da corrente da “Naturphilosophie” alemã, ou a antroposofia de Rudolf Steiner (1861-1925), uma doutrina esotérica que inspira ao mesmo tempo práticas educacionais e técnicas agrícolas. Esta abordagem é o sinal de uma “percepção monista” que vê no universo um espaço “atravessado por ‘campos’ ou ‘energias’”, resume Jean Chamel.

 

“Lógica social de desilusão”

 

Dividida entre a razão e a intuição, a colapsologia conhece finalmente apenas uma certeza: a do apocalipse – uma perspectiva que pode obviamente gerar, nos movimentos militantes, uma “lógica social de desilusão”, segundo a expressão do pesquisador Luc Semal. “O vento de colapsologia que hoje sopra sobre as mobilizações ambientalistas e, em particular, sobre sua juventude, não deve ser desprezado, porque a perspectiva catastrofista está longe de ser trivial, analisa. Para os indivíduos ou grupos constantemente confrontados com o espetáculo trágico da crônica catastrófica, a questão do sentido do compromisso pode surgir rapidamente”.


Este horizonte trágico de profecias colapsológicas contrasta fortemente com a resignação, até mesmo a indiferença, de muitos cidadãos e líderes públicos. Se os climacéticos estão se tornando cada vez mais raros, um “hábito fatalista” parece permear os debates sobre as mudanças climáticas, observa o pesquisador Luc Semal: apesar do aumento cada vez mais rápido das temperaturas, da escassez de recursos e da aceleração da sexta extinção em massa, uma parte da humanidade parece ser tentada pela “síndrome do avestruz”, segundo a expressão do sociólogo e filósofo americano George Marshall.

 

Foto: Pixabay

 

Mecânica da negação

 

Para entender essa estranha habituação aos perigos amplamente demonstrados pelos cientistas, a historiadora Judith Rainhorn, professora de história social contemporânea da Universidade de Paris-I Panthéon-Sorbonne, decifra em seus trabalhos os processos históricos que alimentaram, por mais de um século, a “fábrica de consentimento” aos riscos ambientais. A longa história da poluição, ameaça que surgiu no século XIX com o advento da Revolução Industrial, mostra que este “fenômeno de acomodação coletiva” consegue, dia após dia, enfraquecer a consciência do perigo.

 

 

Nesta área, como em muitas outras, uma poderosa mecânica de “negação” está gradualmente sufocando a percepção de riscos que, no entanto, continuam a piorar. “O mundo contemporâneo se engajou, em um ritmo acelerado desde meados do século XX, na química industrial na maioria dos setores produtivos – agricultura, alimentos, cosméticos, construção civil e indústria de materiais, destaca Judith Rainhorn. Pesticidas, dioxinas, lama vermelha, arsênico, produtos petroquímicos e nanopartículas povoam o mundo tóxico contemporâneo. A isso deve ser adicionado o chumbo, um dos tóxicos mais antigos na atividade humana e industrial”.

 

Como explicar o uso massivo, ainda hoje, desse “veneno legal”, cujos danos à saúde foram cientificamente demonstrados já no século XIX? Como se constrói, há mais de um século, o silêncio em torno da toxicidade desse produto, que há muito tempo faz da indústria automotiva, setor emblemático da modernidade social, um dos principais centros do envenenamento profissional por chumbo? Como entender que só no ano 2000 é que a presença do chumbo nos combustíveis, que estendia o risco de envenenamento à população em geral no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, foi finalmente banida?

 

Para Judith Rainhorn, o instrumento secular de gestão das toxicidades com base no risco é, para o chumbo como para outras substâncias, a individualização da proteção contra o perigo. Na indústria automobilística, assim como na Catedral de Notre-Dame em Paris, as autoridades públicas há muito mantiveram – e ainda mantêm – uma retórica higienista insistindo no “comportamento individual e privado”. “A responsabilidade pelo envenenamento parece recair, não naqueles, industriais e poderes públicos que expõem as populações ao risco, mas nas próprias populações que tomariam precauções insuficientes para se protegerem dele”, resume a historiadora.

 

Os discursos proferidos na primavera de 2019, após o incêndio da catedral, ecoam assim os do século XIX. “Assim como a doxa higienista, desde o século XIX, insiste na importância dos comportamentos no trabalho, dos cuidados e das precauções que os trabalhadores devem ter no manuseio de produtos tóxicos para não serem contaminados, subentendendo que um trabalhador doente seria culpado de sua própria negligência com relação ao veneno, da mesma forma, os poderes públicos pediram às populações submetidas aos vapores de Notre-Dame que se encarregassem da limpeza de seus locais de moradia e de trabalho possivelmente afetados pelas precipitações de chumbo”.

 

Esgotamento da “fábrica de consentimento”

 

Se esses processos de acomodação permitiram, ao longo da história, domar o medo da poluição, eles parecem hoje impotentes para conter o medo suscitado pela degradação irreversível da biodiversidade e do clima.

 

As pesquisas de opinião mostram que a “fábrica de consentimento” aos riscos ambientais está se esgotando: o medo está aí, bem aí – mesmo que não seja necessariamente um mau conselheiro. Em O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (Contraponto, 2006), o livro de cabeceira de muitos ecologistas da década de 1980, o filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993) realmente acredita que ele pode se tornar a base de uma nova ética.

 

Capa da edição 540 da IHU On-Line

 

Essa “heurística do medo” torna possível, na realidade, segundo o filósofo, uma preparação eficaz para o futuro. “Hans Jonas faz do medo um guia para a ação, ou seja, uma regra de aproximação dos riscos, muito útil para a política, resumiu o filósofo Gérard Bensussan no Le Monde (19 de novembro de 2020). O medo estabelece e estimula a responsabilidade social de quem tem que decidir. É uma forma de prevenir, imaginando-a, a experiência de um mal futuro. Tanto na ordem do sentimento, pelo que intui, quanto na ordem da inteligência, pela reflexão que abre sobre a possibilidade de um perigo racionalmente previsível, bem como sobre suas consequências, ele responsabiliza”.

 

É essa “heurística do medo” que gera, aqui e ali, projetos virtuosos de combate às perturbações climáticas? É graças a esse sentimento muitas vezes depreciado que os cidadãos tomam gradativamente consciência dos perigos gerados pela louca obstinação pelo progresso? É esse medo que está levando as sociedades ocidentais de hoje a mudar um a um os seus hábitos de produção, consumo e mobilidade? Uma coisa é certa: nos últimos dez anos ou mais, a crise climática gradualmente forçou cidadãos, empresas, organizações e governos a pensar fora da caixa para imaginar um mundo menos intensivo em carbono.

 

Pequenos passos no lado das finanças

 

Durante muito tempo indiferente às questões climáticas, o mundo das finanças discretamente deu, nos últimos cinco anos, alguns – muito pequenos – passos em prol do meio ambiente.

 

“Um dos caminhos é incentivar as empresas a divulgar, em seu relatório anual, informações sobre o impacto de sua atividade nas mudanças climáticas e o impacto das mudanças climáticas em suas atividades”, explica Sandra Rigot, mestre de conferências em economia na Universidade Sorbonne Paris-Nord. Essa transparência financeira visa incentivar os investidores, os acionistas e os consumidores a favorecer as empresas ambientalmente mais virtuosas.

 

Com isso em mente, o Conselho de Estabilidade Financeira lançou, depois da COP21 de 2015, uma “Força-Tarefa para Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima” que recomendou às empresas cotadas que incluíssem informações ambientais em seus relatórios anuais.

 

“Essas recomendações estão a caminho de se tornarem uma referência global em matéria de relatórios climáticos, continua Sandra Rigot. A Comissão Europeia implementou-as em uma diretiva sobre informações não financeiras. As grandes empresas seguiram o movimento: em 2020, 1.300 empresas adotaram essas recomendações, contra cerca de 282 em 2017”.

 

Compromisso ou verniz ecológico?

 

Essa transparência financeira favoreceu as empresas realmente comprometidas com a transição climática? Ou, mais modestamente, ofereceu um verniz ecológico às práticas de “green washing” (“lavagem verde”) desprovidas de qualquer ambição ambiental real?

 

Foto: Greenpeace

“É preciso ter cuidado porque os indicadores às vezes são mal informados, alerta Sandra Rigot. Devemos também evitar que a luta contra as mudanças climáticas se baseie apenas na transparência financeira – ela deve permanecer uma via entre outras. Mas é preciso reconhecer que as grandes empresas francesas cotadas, principalmente nos setores mais poluentes, divulgam cada vez mais informações sobre o risco climático”.

 

O mundo jurídico, assim como o das finanças, manteve-se durante muito tempo longe das controvérsias sobre o clima e a biodiversidade. Nos últimos anos, a sexta extinção em massa, que coloca em risco a sobrevivência de muitas espécies e o equilíbrio dos ecossistemas, forçou os advogados a questionarem os fundamentos da sua disciplina. Porque essa “aniquilação biológica”, nas palavras dos pesquisadores Gerardo Ceballos, Paul Ehrlich e Rodolfo Dirzo, em estudo publicado em julho de 2017, mostra que a comunidade viva baseia-se em uma estreita interdependência, o que enfraquece a “summa divisio” que rege os sistemas jurídicos.

 

Herdado do direito romano, esse dogma de fato postula a separação radical entre as pessoas, que têm direitos, e as coisas, que estão privadas deles. Em um mundo marcado por desordens ambientais, esse regime binário revela-se, no entanto, impotente para abraçar a imensa complexidade dos seres vivos. Como podemos encontrar um lugar, nesta arquitetura, para os milhões de seres vivos que participam ativamente da sobrevivência dos nossos ecossistemas – e principalmente para os animais? Por que não admitir que essa fronteira estanque entre o homem e a natureza erguida pelo Ocidente moderno é a “coisa menos bem compartilhada” do planeta, nas palavras do antropólogo Philippe Descola?

 

Abalada pela crise ecológica, esta concepção tradicional do direito está, no entanto, começando a ruir. Em nome da proteção dos seres vivos, os rios Yarra na Austrália, Whanganui na Nova Zelândia ou Atrato na Colômbia receberam direitos. “Em 2017, o Supremo Tribunal de Uttarakhand (Índia) também concedeu personalidade jurídica às geleiras Gangotri e Yamunotri, acrescenta a advogada Caroline Regad, professora da Universidade de Toulon. Esta sentença afirma que rios, córregos, lagos, nascentes, cachoeiras, ar, prados, vales, selvas e florestas têm o direito de existir, persistir, manter, sustentar e regenerar seu sistema ecológico vital”.

 

Os animais no “grande teatro do direito”

 

Por serem seres vivos dotados de inteligência e sensibilidade, os animais também estão entrando no “grande teatro do direito”, segundo Caroline Regad. Em 2013, a Índia reconheceu os golfinhos como “pessoas não humanas” e a Argentina fez, em 2014, a fêmea do orangotango Sandra, e depois, em 2016, a chimpanzé fêmea Cecília “sujeitos de direito não humanos”. “Na Índia, a Suprema Corte de Uttarakhand, em 2018, e a Suprema Corte de Punjab e Haryana, em 2019, consideraram que todo o reino animal deve ser considerado como uma pessoa jurídica com os direitos, os deveres e as responsabilidades de uma pessoa viva”, acrescenta o advogado.

 

Nestes tempos do Antropoceno, o direito poderia, segundo Caroline Regad, se revelar o “melhor vetor para uma nova relação com o mundo”. “Para combater a ameaça ecológica, a perspectiva jurídica sobre os seres vivos deve mudar, afirma. O direito pode apreendê-lo, seja concentrando-se apenas nos humanos (antropocentrismo), seja levando em consideração o animal (zoocentrismo), ou englobando tudo o que vive (biocentrismo). O antropocentrismo está atualmente abalado: os humanos não parecem mais ser a única preocupação do direito”. Se essa tendência se confirmar, a crise ecológica terá gerado uma pequena revolução jurídica.

 

Os trabalhos mencionados neste artigo foram realizados sob a égide da Fundação para as Ciências Sociais, presidida pelo historiador François Weil, conselheiro de Estado e ex-presidente da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Criada em 2011 por Gilles de Margerie, esta organização tem como diretora científica Claudia Senik, professora da Universidade de Paris-Sorbonne e da Escola de Economia de Paris, que sucedeu em 2018 a François Héran, professor do Collège de France, e François Dubet, ex-diretor de estudos da EHESS.

 

Todos os anos, o conselho científico escolhe um tema e concede bolsas a pesquisadores. Em 2020, o tema era “Sociedades em perigo. Ameaças, medos, percepções, conhecimentos, reações e resiliências”. Os trabalhos dos laureados da Fundação foram apresentados na sexta-feira, 20 de novembro, em um colóquio on-line acessível no site da Fundação para as Ciências Sociais. Os doze vencedores da edição de 2020, da qual o Le Monde é parceiro, são: Jean Chamel, Coralie Chevallier, Christelle Fifaten Hounsou, Olivier L'Haridon, Pierre Pénet, Myrtille Picaud, Judith Rainhorn, Caroline Regad, Sandra Rigot, Sébastien Roux, Anne Simon, Laura Viaut. Como acontece todos os anos, seus trabalhos serão publicados pela Editora La Découverte. A edição de 2021 será dedicada às pandemias.

 

Leia mais