23 Janeiro 2020
Pablo Cuevas atendeu oito casos de pessoas que chegam com a pele marcada com sangue. Cuevas é consultor jurídico da Comissão Permanente de Direitos Humanos (CPDH) da Nicarágua e as vítimas chegam ao seu escritório porque não têm mais nenhum lugar para registrar suas queixas. Em muitos casos, são os policiais que infligiram as marcas, em outros paramilitares, e Cuevas considera que não são ações isoladas de “mentes doentes”, mas parte de uma política de Estado que procura impor terror entre aqueles que pensam de maneira diferente.
A reportagem é de Fabián Medina Sánchez, publicada por Infobae, 22-01-2020. A tradução é do Cepat.
“A tortura é uma manifestação calculada. Não há casualidade. Não é um produto da mente doentia dos oficiais de polícia, é uma atitude dirigida pelo Estado com o objetivo de semear o medo”, aponta.
“É uma mensagem de submissão”, acrescenta. “Nos tempos do nazismo, além de semear o terror, o objetivo era enviar a mensagem que as pessoas tinham dono. Que existe alguém ou uma organização que pode fazer o que quiser com elas. Estão marcadas para serem submetidas. O objetivo é essa mensagem”.
Não se sabe exatamente quantas pessoas foram marcadas. Cuevas acredita que são muito mais do que ele atendeu, porque a maioria tem medo de apresentar seu caso. “Os pais trouxeram uma menina de 18 anos à força. Estava aterrorizada. Estava indisposta a denunciar. Como este, certamente há mais casos. Estão tão aterrorizados e, com toda a razão do mundo, que acreditam ser melhor se calarem”, diz Cuevas.
Entre os marcados estão crianças, jovens e adultos. Homens e mulheres. As marcas são feitas nos braços, pernas e costas e, em casos conhecidos, são limitadas a duas legendas. Uma delas é “FSLN”, uma sigla para Frente Sandinista de Libertação Nacional. O outro é “PLOMO”, um acróstico com o slogan “Pátria Livre ou Morrer” que os apoiadores do regime usam como sentença contra os opositores.
“De setembro de 2018 até hoje, atendi oito casos. Crianças e adultos. O último foi na quinta-feira, um garoto de 16 anos de Carazo, e dois desses casos afirmam que aqueles que marcaram e que dirigiram as marcações são cubanos”, explica o defensor de Direitos Humanos.
O primeiro caso conhecido foi o de um adolescente de 14 anos. Uma dúzia de agentes de Operações Especiais o detiveram no seu caminho para escola, em agosto de 2018, por usar um boné com as cores azul e branco da bandeira da Nicarágua que os opositores têm usado para identificar seus protestos.
O adolescente foi levado para uma delegacia de polícia, onde com uma seringa tatuaram a sigla “FSLN” no braço, enquanto estava sendo interrogado sobre temas que o garoto nem sequer entendia. Em sua queixa ao CPDH, disse que um de seus agressores “era cubano” porque falou com um sotaque “igual ao da doutora (Ana María) Polo, do programa “Caso Cerrado”.
Também ficou conhecido o caso de duas irmãs, de 20 e 26 anos, que foram sequestradas por paramilitares quando caminhavam perto de sua casa às sete horas da noite. Segundo a denúncia, quatro indivíduos encapuzados as colocaram em uma van, amarraram as mãos e os pés e vestiram capuzes. Foram levadas para um lugar que não conhecem. Estando nesse local, foram deixadas com roupas íntimas, sendo espancadas, insultadas e tocadas sexualmente.
“Bateram nas minhas costelas, me amarraram com cordas, me chutaram no quadril e depois me marcaram, não sei com o quê, foi algo afiado, com a palavra PLOMO”, disse em seu depoimento a CPDH a mais jovem das irmãs.
Às seis horas do dia seguinte, após onze horas de terror, os paramilitares deixaram as mulheres em uma estrada perto de Manágua.
Essas irmãs atribuem a crueldade contra elas ao apoio prestado aos estudantes da Universidade Politécnica (Upoli) quando foi tomada em protesto contra o regime Ortega. “Começamos a apoiar com provisões e insumos médicos e depois cuidamos dos feridos no hospital”, disse uma delas.
Ambas as irmãs se exilaram devido ao assédio que continuaram sofrendo.
Outro caso: Leonardo Rivas Guevara. Jovem de 23 anos desapareceu por seis dias quando na madrugada do dia 16 de junho passado foi deixado deitado em uma estrada perto de Manágua. Foi espancado, com a cabeça raspada e com a sigla “FSLN” marcada nas costas.
Todas as vítimas estavam, em maior ou menor grau, envolvidas nos protestos contra o governo Ortega, de acordo com a Comissão Permanente de Direitos Humanos (CPDH), uma das poucas organizações desse tipo que ainda funciona legalmente na Nicarágua. As outras, o regime de Ortega as tornou ilegais e confiscou seus bens, e seus membros tiveram que fugir para o exílio, de onde monitoram as violações dos direitos humanos que ocorrem na Nicarágua.
Nesta quinta-feira, o advogado Pablo Cuevas acompanhará a mãe de um jovem de Carazo, que foi recentemente marcado, na denúncia que interporá na Polícia. É o último caso conhecido.
“Três sujeitos o agarraram na frente do cemitério, um colocou um pano na boca e o colocaram dentro do carro. Um deles agarrou o braço esquerdo do meu filho e o colocou entre suas pernas e o marcou com a palavra PLOMO e abaixo FSLN”, diz a mãe que pediu para que não colocássemos seu nome por segurança.
Dessa vez, segundo o testemunho do garoto, o sequestro durou apenas 10 minutos. Em outra ocasião, tentaram jogá-lo em um caminhão quando andava pelas ruas de sua cidade.
“Não entendo por que fizeram isso”, disse a mãe. “Nós não temos inimigos. E não sei quem eram porque não posso dizer que foi Fulano ou Beltrano porque não temos inimizades”.
Este seria o primeiro caso cuja denúncia chega à Polícia. “As vítimas têm medo de ir à polícia. Elas sabem que são os mesmos que as torturaram”, diz Cuevas. O primeiro caso, o do adolescente de 14 anos, chegou ao Ministério Público em setembro de 2018. “Eles nunca nos deram uma resposta”, diz Cuevas.
A CPDH inscreve as pessoas marcadas a sangue em um programa para vítimas de tortura, onde recebem atendimento psicológico e médico, fisioterapia e aconselhamento jurídico. A grande maioria carregará essas marcas na pele por toda a vida.
“Meu filho agora só tem medo. Não pode sair pela porta. Somente chora e chora. Não come tranquilo”, lamenta-se a mãe da última vítima. “Agora, as marcas são como permanentes. Vou comprar uma pomada para ver se isso cura. Porque gosta de andar de camiseta. Você sabe como são os garotos”, disse.
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Nicarágua. Tortura: oponentes do regime de Daniel Ortega são marcados na pele - Instituto Humanitas Unisinos - IHU