23 Novembro 2017
No silêncio da biblioteca municipal, soa insistentemente um celular. O adolescente retira os fones de ouvido e atende. “Sim, irmão, estou aqui, escutando o Alcorão... sim, já desço...”. A vinte metros, aguarda-o um amigo, também com boné de beisebol dos Yankees, calças de rapper e cuecas aparecendo. Batida de mão como ritual de saudação acompanham o obrigatório salaam aleykum [do árabe, que significa “Que a paz esteja sobre vós!”].
Ambos se dirigem a McOmar e pedem um xauarma com fritas e ketchup. Ao lado do caixa, um cartaz certifica que ali a carne é halal, saudável, tratada como Deus manda. Não estamos em Beirute, nem em Bagdá e nem no Cairo, mas no bairro parisiense de Barbès, a cinco quadras da basílica do Sagrado Coração, um dos lugares turísticos mais visitados de Paris e do mundo.
Gilles Kepel (Paris, 1955) não almoça em McOmar; não é muçulmano, mas também não é um francês “de linhagem pura” (pai imigrante checo e comunista). No entanto, atualmente, é um dos intelectuais que melhor conhece essa França que se localiza incomodamente nos “subúrbios do islã”, conforme intitulou seu impressionante estudo realizado em 1987 sobre a influência do islã na França e sobre a realidade dos muçulmanos ali. Em síntese, sobre o nascimento desse islã francês, que hoje representa a segunda religião do país.
Andou por escolas, prisões, ministérios, sindicatos e mesquitas. Kepel soube ultrapassar as fronteiras do escritório acadêmico para ir ao encontro in situ de suas paixões (Paixão árabe e Paixão francesa, outras duas de suas publicações de 2013 e 2014) e compreender essa religião que atrai quase 20% do planeta e 7,5% dos franceses (5 milhões), e que torna o país de Voltaire o mais importante da Europa em população muçulmana. Contudo, se a carreira de Kepel é o produto de mais de 40 anos de andança e vivência profunda na grande maioria dos países muçulmanos, sua habilidade perfeita com o árabe lhe permitiu ser um dos poucos exploradores do novo mundo paralelo da blogosfera jihadista, que tanto deslumbra as novas gerações. Um caminho que lhe custou a ameaça de morte de mais de um jovem radical.
Alguns, desde já, destacam Kepel como o “especialista islamista” do establishment, o assessor mais importante e próximo do presidente Emmanuel Macron. De fato, antes de nos receber para esta conversa, há uma semana, integrou a comitiva que, em viagem relâmpago, acompanhou o presidente francês a Riad, para saudar o herdeiro saudita, o príncipe Mohammad bin Salman. No último piso da Escola Nacional Superior de Paris não há nenhum cartaz que indique seu escritório. Quando a porta anonimamente branca e fechada com chave se abre, Kepel falará junto a suas malas, poucas horas antes de viajar à Argentina.
A entrevista é de Andrés Criscaut, publicada por Clarín-Revista Ñ, 17-11-2017. A tradução é do Cepat.
No dia 13 de novembro, completaram-se dois anos dos atentados de Paris e Saint-Denis, fatos que marcaram profundamente a sociedade francesa.
Os 130 mortos foram o maior massacre ocorrido em solo francês, desde a ocupação nazista. Contudo, esse ataque dado em 2015, assim como o perpetrado antes contra o semanário satírico Charlie Hebdo e a um supermercado judeu, em janeiro do mesmo ano, ou a série de assassinatos de 2012 cometidos por Mohammed Merah contra três militares, um professor e três crianças de uma escola judaica, não devem ser vistos como fatos isolados. São o resultado de uma realidade muito mais complexa que as simplificações de uma islamofobia da sociedade francesa ou das consequências ainda vigentes de um passado colonial. São a conjunção tanto de um particular contexto internacional de mutação, especialmente ligado ao Oriente Médio e ao norte da África, bom como à atual realidade francesa.
O paradoxal é que estes ataques indiscriminados jihadistas de terceira geração, que buscavam galvanizar e sublevar os muçulmanos dos bairros desfavorecidos da França, produziram um efeito muito diferente do calculado. As repercussões das redes jihadistas foram bastante críticas, já que muitas das vítimas foram muçulmanas. No primeiro ataque em Nice, um terço dos que morreram atropelados pelo caminhão foram muçulmanos; e no ataque ao Estádio de França de Saint-Denis, em um dos distritos com maior população muçulmana, se o cinturão com explosivos de um dos atacantes tivesse explodido, os mortos desta religião teriam sido muito mais.
Não obstante, o modelo de jihadistas 3G está declinando. Se entre Charlie Hebdo e o verão de 2016 morreram 239 pessoas em solo francês, em múltiplos atentados, o encurralamento e queda do Estado Islâmico e a desarticulação de várias redes por parte dos serviços franceses fizeram com que, neste ano, não tenha havido mortos em nosso país, e que os ataques sejam cada vez menos organizados e que empreguem métodos cada vez mais rudimentares (como avançar com carros, o uso de armas brancas ou garrafas explosivas, etc.).
Você fala de jihadistas 3G, de terceira geração. Quais são as duas anteriores e qual é o componente particularmente francês desta terceira?
A primeira geração se consolidou com a invasão do Afeganistão por parte dos soviéticos, em 1979, com permanência até 1989, quando tiveram que abandonar o país derrotados. Eram os tempos dos famosos Freedom fighters de Reagan. O jihadismo passou a ser novamente um tema internacional quando os estadunidenses o utilizaram contra os soviéticos. Mas, Washington fez pagar essa intervenção acobertada aos sauditas, e por isso hoje o príncipe Salman disse que, desde essa época, estamos presos a uma espiral que não podemos controlar. Em seguida, houve uma tentativa de reproduzir o mesmo sistema na Argélia, Egito e Bósnia. Nesse caso, o inimigo era próximo, ou seja, os governos árabes apóstatas ou infiéis desses países. Os três casos falharam. Estas derrotas fizeram pensar pessoas como Bin Laden e Ayman al-Zawahiri, que conceitualizaram uma segunda fase atacando um inimigo distante, Estados Unidos, Reino Unido, etc., e criando assim um jihadismo internacional.
Em qual atentado você dataria esse momento?
Começou com os ataques às embaixadas estadunidenses na Tanzânia e Quênia, em 1998, e seu ponto culminante foi o ataque de 11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas, em solo estadunidense. Digamos que esse evento foi uma resposta à queda do Muro de Berlim e o início do século XXI, o fim de um mundo e o começo de outro. Um evento adaptado às técnicas massivas do momento, à televisão por satélite. Assim, eles foram capazes de captar o centro do mundo daquele momento.
Nesse aspecto, poderíamos dizer que não há Al-Qaeda sem Al Jazeera. Seu objetivo era atrair os exércitos do Ocidente para o território muçulmano e derrotá-los, fazendo uma espécie de novo “Vietnã muçulmano”, como já haviam feito com os soviéticos no Afeganistão. Isto não funcionou para os jihadistas e nem para os estadunidenses. Washington se centrou na ocupação do Iraque, substituindo Saddam Hussein, um ditador originário da minoria sunita iraquiana, por um governo que representa a maioria xiita. Resultado: hoje, o Iraque se voltou para a órbita iraniana e xiita.
Esta derrota da segunda fase fez o técnico sírio Abu Musab al-Suri, que estudou na França e Inglaterra, casou-se com uma espanhola e se formou no Afeganistão, pensar. Ele soube adaptar o jihadismo à globalização e à influência direta das novas redes sociais: Facebook, Twitter, etc. Esta terceira fase é preciso ser entendida não tanto como uma organização, mas, ao contrário, como um sistema que se apoia em conexões em redes e que aponta para as juventudes europeias e ocidentais, de origens muçulmanas ou convertidas recentemente ao islã, que estão dispostas a atuar em nível local, de maneira independente ou coordenadas com o que ocorre no Oriente Médio. Seu ponto culminante será a criação do Estado Islâmico e os ataques na França, realizado por comandos franco-belgas, de origem muçulmano ou convertidos, formados no Oriente Médio e que voltaram para atuar em solo europeu.
Porém, agora, esta terceira geração também está declinando porque não são pessoas muito bem formadas e porque os serviços de inteligência, especialmente os franceses, estão as desmantelando. Em países com serviços de inteligência menos centralizados, como Alemanha, Espanha, Inglaterra e inclusive Estados Unidos, estão recorrendo a elementos mais rudimentares como lançar carros contra as pessoas, como o último ataque em Nova York, onde morreram cinco argentinos, vítimas deste combate que está muito distante da realidade da Argentina, mas que, infelizmente, demonstram que é um fenômeno mundial.
É correta a ideia de que neste tipo de terrorismo se envolvem pessoas desclassificadas ou frustradas, loosers que se radicalizam solitariamente diante de seus computadores, sem uma ideologia forte de fundo?
Não, há uma base ideológica muito forte que vem se estruturando nos últimos 30 ou 40 anos, que passa pela ideologia do salafismo. Esta corrente, ligada às petromonarquias do golfo árabe-pérsico, delineia uma ruptura cultural profunda com os valores ocidentais, ao mesmo tempo que marca uma diferença talhante com os que eles consideram “falsos” ou “maus” muçulmanos. Precisamente, agora estamos presenciando os limites desse modelo e onde as petromonarquias estão buscando alternativas e planejando mudanças. No entanto, essas mudanças também estão derivando em um confessionalismo do conflito intra-muçulmano. Para Al-Qaeda, o confronto contra as minorias xiitas não era um de seus objetivos principais, para o Estado Islâmico, sim.
Contudo, também há um componente local, franco-francês, digamos. Calcula-se que um terço dos supostos 800 franceses que foram lutar com o Estado Islâmico (o maior contribuinte da União Europeia) nem sequer eram de origem muçulmana, nem estavam ligados ao passado colonial francês, muitos eram convertidos. Surpreendentemente, muitas eram mulheres.
É que este salafismo-jihadismo de terceira geração vai oferecer um sentimento de pertença e identidade a pessoas que não estão satisfeitas com suas vidas, a gente de origem argelina ou marroquina com um passado de delinquência (uma população francamente muito presente na prisão). Como reclusos, encontraram pregadores nas celas que os captam lhes dizendo que é a sociedade que os colocou ali, não seus crimes, e que a forma de sair e se redimir é através da guerra santa e a violência. É um problema importante esta articulação entre a problemática social e política de marginalização e a falta de acesso ao trabalho, e essa ideologia que fabrica heróis negativos. Por isso, é necessário tratar o sintoma do problema com políticas antiterroristas, mas, ao mesmo tempo, é preciso atacar as causas sociais. Também está presente neste fenômeno um componente de revanchismo da história colonial, que eu prefiro chamar ‘retrocolonial’ e não pós-colonial, já que é uma reinterpretação do ocorrido a partir de um ponto de vista reivindicativo.
E a psicologia como atua em tudo isto?
É muito interessante como, aqui, se articula até o mundo fantástico e fantasmagórico dos videogames... Há uma semelhança surpreendente nos vídeos de extrema-direita e aqueles que apelam à jihad. Em ambos encontramos uma mistura e confusão entre o mundo real e o virtual. A decapitação é para alguns uma espécie de videogame. O vocabulário que utilizam organiza o mundo em categorias que eliminam qualquer distinção moral, e onde matar na vida real é semelhante a eliminar um avatar em um jogo de guerra.
Em seus estudos sobre a blogosfera jihadista, na Internet, você demonstrou que parra o imaginário de muitos dos jovens que seguem o Estado Islâmico, Israel é a prova de que é possível criar um Estado religioso. Pela primeira vez, o conflito palestino-israelense passou para um segundo plano.
Hoje, Israel está em uma posição completamente nova. Até agora, o conflito árabe-israelense era o ponto mais irritante da região, mas agora se encontra diante de suas fronteiras com elementos radicais sunitas e xiitas que combatem entre si, desviando a atenção do outro conflito tradicional. No momento, Israel está discretamente do lado sunita contra o Irã, mas é uma aliança que também pode mudar porque, no momento, o governo iraniano tem um discurso anti-israelense, mas seus interesses estratégicos a longo prazo não são particularmente anti-israelenses.
Em nível geopolítico, como se vê o tema do Oriente Médio?
Estamos diante de um grande período de recomposição, onde os estados da região estão medindo suas forças e fraquezas. Um claro exemplo é este novo despertar da Arábia Saudita, cujo príncipe decidiu começar a atuar para tentar fazer um Estado muito mais centralizado e eficaz. Estamos realmente diante de uma Guerra Fria intermuçulmana que está reestruturando a região do Oriente Médio. Justamente o que a França irá tentar fazer é atuar como mediadora e recriar um diálogo na região, porque para Paris a violência no Oriente Médio é tema de política exterior, mas também uma questão de política interna.
Se existe um lugar onde um governo pode dizer “aqui não aconteceu nada, não houve primavera árabe alguma” é no regime sírio. O ditador Bashar al-Assad segue aí.
Sim, mas os que venceram na Síria são os russos, não há nenhuma dúvida disso. O tema é que para a reconstrução será indispensável o capital exterior, e politicamente nenhum dos atores atuais tem o poder de atuar sozinho, nem de se impor aos demais. Os recentes movimentos democráticos na África do Norte e Oriente Médio falharam talvez porque as classes médias que os geraram não foram capazes de mobilizar e captar as juventudes pobres da região.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As evoluções do terrorismo jihadista. Entrevista com Gilles Kepel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU