13 Julho 2017
“Quem sela a sua vida com um ato heroico de caridade pode ser considerado um perfeito discípulo de Cristo e, como tal, merecedor de ser proposto como modelo de vida cristã, se o próprio Deus garantir a sua autenticidade e exemplaridade mediante a fama de santidade, a prova dos milagres e o juízo favorável da suprema autoridade da Igreja.”
A opinião é do arcebispo italiano Marcello Bartolucci, secretário da Congregação para as Causas dos Santos, em artigo publicado por L’Osservatore Romano, 11-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com o motu proprio “Maiorem hac dilectionem, sobre a oferta da vida”, o Papa Francisco abriu o caminho para a beatificação daqueles fiéis que, impulsionados pela caridade, ofereceram heroicamente a própria vida pelo próximo, aceitando livre e voluntariamente uma morte certa e prematura com a intenção de seguir a Jesus: Ele deu a Sua vida por nós; portanto, nós também devemos dar a vida pelos irmãos (1Jo 3, 16).
Como se sabe, há séculos já, as normas da Igreja Católica preveem que se pode avançar para a beatificação de um Servo de Deus percorrendo uma destas três vias:
1) a via do martírio, que é a suprema imitação de Cristo e o testemunho mais alto da caridade. O conceito clássico de martírio inclui: a) a aceitação voluntária da morte violenta por amor a Cristo, por parte da vítima; b) o odium do perseguidor pela fé ou por outra virtude cristã; c) a mansidão e o perdão da vítima que imita o exemplo de Jesus, que, na cruz, invocou a misericórdia do Pai pelos seus assassinos.
2) A via das virtudes heroicas, exercidas “diligente, pronta, agradavelmente e acima do modo de ação comum, por um fim sobrenatural” (Bento XIV) e por um período de tempo adequado, isto é, até fazer com que elas se tornem um modo habitual de ser e de agir conforme ao Evangelho. Trata-se das virtudes teologais (fé, esperança, caridade), cardeais (prudência, justiça, fortaleza, temperança) e “anexas” (pobreza, obediência, castidade, humildade).
3) Há, depois, uma terceira via, menos conhecida e menos percorrida, que, porém, leva ao mesmo resultado das outras duas. É a via dos chamados “casus excepti”, assim chamados pelo Código de Direito Canônico de 1917 (cf. cân. 2.125-2.135). O seu reconhecimento leva à confirmação de um culto antigo, ou seja, posterior ao papado de Alexandre III († 1181) e anterior a 1534, assim como estabelecido por Urbano VIII (1623-1644), o grande legislador das Causas dos Santos. A confirmação do culto antigo também é chamada de “beatificação equipolente”.
Essas três vias ainda estão abertas e são viáveis, mas não parecem ser suficientes para interpretar todos os casos possíveis de santidade canonizável. De fato, ultimamente, a Congregação para as Causas dos Santos fez-se a pergunta “se não são merecedores de beatificação aqueles Servos de Deus que, inspirados pelo exemplo de Cristo, livre e deliberadamente, ofereceram e imolaram a própria vida pelos irmãos em um supremo ato de caridade, que tenha sido causa direta de morte, pondo em prática, assim, a palavra do Senhor: ‘Ninguém tem um amor maior do que este: dar a vida pelos próprios amigos’ (Jo 15, 13)” (Positio peculiaris, p. 3).
Trata-se de introduzir uma quarta via, que poderíamos chamar de oferta da vida. Embora tendo alguns elementos que fazem com que ela se assemelhe tanto à via do martírio quanto à das virtudes heroicas, é uma via nova, que pretende valorizar um heroico testemunho cristão, até agora sem um procedimento específico, precisamente porque não se encaixa totalmente no caso do martírio nem no das virtudes heroicas.
A via da oferta da vida, de fato, se assemelha parcialmente à do martírio, porque há o heroico dom de si, até a morte, inclusive, mas se diferencia dela porque não há um perseguidor que gostaria de impor a escolha contra Cristo.
Do mesmo modo, a via da oferta da vida se assemelha à das virtudes heroicas, porque há um ato heroico de caridade (dom de si), inspirado no exemplo de Cristo, mas se diferencia dela porque não é a expressão de um prolongado exercício das virtudes e, em particular, de uma caridade heroica. Requer-se, no entanto, um exercício normal de vida cristã, que torne possível e compreensível a decisão livre e voluntária de dar a própria vida em um ato supremo de amor cristão, que supere o instinto natural de conservação, imitando a Cristo, que se ofereceu ao Pai pelo mundo, na cruz.
É claro, portanto, que todas as vias à santidade canonizada devem ter um denominador comum na caridade, que é “o vínculo da perfeição”, “plenitude da lei” e “alma da santidade”. A oferta da vida, portanto, não pode prescindir da perfeição da caridade, que, neste caso, porém, não é o resultado de uma prolongada, pronta e alegre repetição de atos virtuosos, mas é um único ato heroico que, pela sua radicalidade, irrevogabilidade e persistência usque ad mortem, expressa plenamente a opção cristã.
Os teólogos, além disso, ensinam que, por força da “conexão” entre as virtudes, onde há um ato heroico de caridade, não pode perder um ato correspondente de fé, esperança, prudência, fortaleza e assim por diante. Também deve-se dizer que o fator tempo, ou seja, a duração da oferta tem a sua relevância. De fato, se o ato heroico da oferta se prolonga nos anos, poderia, no fim, enquadrar-se no caso das virtudes heroicas, que se tornam tais não só porque são a expressão de comportamentos extraordinariamente perfeitos, mas também porque se prolongam por um tempo considerável, que a jurisprudência canônica indica em cerca de 10 anos de prática nos casos comuns.
Para delimitar esse aspecto, o motu proprio fala muito oportunamente de “morte de curto prazo”, o que não significa imediata, mas também nem tão distante a ponto de transformar o ato heroico em virtude heroica. Neste caso, mudaria a situação.
Quando se verifique a copresença da oferta heroica da vida com o exercício heroico das virtudes cristãs, é óbvio que o processo jurídico preferirá o caso das virtudes heroicas, que expressam mais completamente a personalidade do Servo de Deus, a santidade e a sinfonia das suas riquezas espirituais. Se fosse possível traçar uma graduatória dos percursos jurídicos para a verificação da santidade canonizável, poderíamos concluir que, no primeiro lugar, está o martírio, no segundo, as virtudes heroicas, no terceiro, o ato heroico da oferta da vida até a morte, inclusive.
Para concluir o raciocínio, podemos afirmar tranquilamente que quem sela a sua vida com um ato heroico de caridade pode ser considerado um perfeito discípulo de Cristo e, como tal, merecedor de ser proposto como modelo de vida cristã, se o próprio Deus garantir a sua autenticidade e exemplaridade mediante a fama de santidade, a prova dos milagres e o juízo favorável da suprema autoridade da Igreja.
A oferta da vida usque ad mortem até agora não constituía um caso em si mesmo, mas, se houvesse, era incorporado, apenas como detalhe, no caso das virtudes heroicas, ou no do martírio. Já está claro agora que essa incorporação não fazia justiça a uma verdadeira e, em muitos aspectos, tocante expressão de santidade.
Bento XIV, o Magister, já não excluía das honras dos altares aqueles que tinham dado a vida em um extremo ato de caridade, como, por exemplo, a assistência das vítimas da peste, que, provocando o contágio, tornava-se causa certa de morte. Toda essa problemática começou a se tornar objeto de reflexão explícita da Congregação para as Causas dos Santos a partir do Congresso Ordinário de 24 de janeiro de 2014.
O prefeito, cardeal Angelo Amato, levou a questão à atenção do Santo Padre Francisco na audiência de 7 de fevereiro seguinte. O papa “aprovou e encorajou” o estudo desse novo caso, de modo que o dicastério preparou uma Positio peculiaris, com as contribuições complementares de cinco estudiosos das Causas dos Santos: um biblista, um professor de teologia dogmática, um especialista em teologia espiritual, um jurista e um historiador.
No dia 2 de junho de 2016, a congregação realizou sobre o tema um Congresso Peculiar composto por 15 especialistas (10 consultores e cinco postuladores), diferentes daqueles da Positio peculiaris. Quem presidiu a reunião foi o bispo Dom Enrico Dal Covolo, especialmente na sua qualidade de postulador.
A discussão ocorreu no rastro de cinco questões, comunicadas desde a convocação do congresso e assim formuladas:
1) “A oferta da vida, seguida de morte, pode ser julgada como expressão de suprema e heroica imitação de Cristo?”
2) “Que características psicológicas e teológicas deveria ter a oferta da vida para ser um ato heroico de caridade?”
3) “A oferta de vida deve amadurecer no contexto de uma vida cristã consolidada ou pode ser uma decisão súbita, ou seja, sem uma preparação remota?”
4) É oportuno que a oferta da vida seja um caso distinto do martírio e das virtudes heroicas?”
5) “O procedimento jurídico para a eventual beatificação per viam oblationis, além do inquérito diocesano super vita, virtutibus, oblatione vitae, fama sanctitatis... deve incluir também a prova de um milagre?” (Relatio et Vota Congressus peculiaris, p. 8).
Cada pergunta foi respondida por escrito pelos 15 consultores e postuladores, que, depois, debateram em uma reunião colegial (congresso). Como se sabe, as conclusões dos Congressos Peculiares da Congregação para as Causas dos Santos são sempre importantes, porque expressam o parecer motivado de estudiosos e de especialistas que examinaram a matéria a fundo.
No entanto, o seu voto é deliberativo e vinculante. No nosso caso, o amplo e sereno aprofundamento do congresso levou a estas conclusões: a) a oferta da vida, seguida de morte, pode ser julgada como expressão de suprema e heroica imitação de Cristo, como emerge a partir do Novo Testamento, da Tradição dos mártires e dos confessores da fé, do Magistério dos papas, do Concílio Vaticano II e da reflexão teológica, especialmente no que diz respeito à caridade;
b) a oferta da vida, na grande maioria dos casos, amadurece em um contexto de prática das virtudes cristãs;
c) sobre o quesito sobre se a oferta da vida deve ser um caso distinto do martírio e das virtudes heroicas, a maioria dos votos defendeu a ideia de configurar um caso distinto, enquanto uma minoria não o considerou oportuno;
d) sobre o procedimento jurídico para a eventual beatificação per viam oblationis, além do inquérito diocesano super vita, virtutibus, oblatione vitae, fama sanctitatis, a maioria dos consultores e postuladores considerou necessário, para a beatificação, um milagre formalmente aprovado.
Com esses pareceres, no dia 27 de setembro de 2016, foi-se para a sessão plenária dos cardeais e bispos, membros da Congregação para as Causas dos Santos. Também nessa sede, os vários aspectos da questão foram focados com profundidade de doutrina e amplitude de considerações pastorais.
Em conclusão, os cardeais e os bispos deram voto favorável a uma nova via para a beatificação daqueles que ofereceram a vida com explícitas e reconhecidas motivações cristãs. Também foi evidenciada a necessidade de um milagre, formalmente aprovado, como confirmação divina do juízo humano sobre a oferta da vida.
Essas conclusões foram submetidas pela Congregação para as Causas dos Santos ao Santo Padre Francisco com uma carta do dia 28 de novembro de 2016 (Prot. Num. VAR 7454/14). Em 17 de janeiro deste ano, a Secretaria de Estado informou o cardeal Amato de que Sua Santidade, “na data de 10 de janeiro corrente, benevolamente, aprovou a proposta de prosseguir com a beatificação daqueles Servos de Deus cuja livre e voluntária oferta da vida tornou-se causa de sua morte”.
Também era pedido que a congregação “redigisse o texto do pronunciamento pontifício” para apresentá-lo à aprovação definitiva do Santo Padre. O texto do referido pronunciamento pontifício é agora o motu proprio “Maiorem hac dilectionem”, assinado pelo Papa Francisco.
Esse documento pontifício, muito oportunamente, no artigo 2, especifica: “A oferta da vida, para que seja válida e eficaz para a beatificação de um Servo de Deus, deve responder aos seguintes critérios:
a) oferta livre e voluntária da vida e heroica aceitação propter caritatem de uma morte certa e de curto prazo;
b) nexo entre a oferta da vida e a morte prematura;
c) exercício, pelo menos em grau ordinário, das virtudes cristãs antes da oferta da vida e, depois, até a morte;
d) existência da fama sanctitatis et signorum, pelo menos após a morte;
e) necessidade do milagre para a beatificação, ocorrido depois da morte do Servo de Deus e pela sua intercessão”.
O artigo 3 do motu proprio acrescenta como se regular o inquérito canônico sobre a oferta da vida e a preparação do dossiê relativo (positio) a ser submetido aos consultores teológicos e aos cardeais: “A celebração do inquérito diocesano ou eparquial e a relativa positio são reguladas pela constituição apostólica Divinus perfectionis Magister, de 25 de janeiro de 1983 [...] e pela Normae servandae [...] de 7 de fevereiro do mesmo ano”.
Esta nova normativa sobre a oferta da vida também deverá se articular, logicamente, com a instrução Sanctorum Mater, de 17 de maio de 2007, que pretende agilizar a correta aplicação da legislação de 1983.
Por fim, o motu proprio decidiu que o dubium, ou seja, o objeto da verificação das causas sobre a oferta da vida, fosse assim formulado: “An constet de heroica oblatione vitae usque ad mortem propter caritatem necnon de virtutibus christianis, saltem in gradu ordinario, in casu et ad effectum de quo agitur” (se forem provadas a oferta da vida até a morte por causa da caridade, além das virtudes cristãs exercidas pelo menos em grau ordinário, no caso e pelas finalidades de que se trata). O Santo Padre também dispôs que esse seu ato legislativo fosse promulgado mediante o L’Osservatore Romano e que entrasse em vigor no mesmo dia da publicação.
Com essa medida, a doutrina sobre a santidade cristã canonizável e o procedimento tradicional da Igreja para a beatificação dos Servos de Deus não apenas não foram alteradas, mas também foram enriquecidas com novos horizontes e oportunidades para a edificação do povo de Deus, que, nos seus vários santos, vê o rosto de Cristo, a presença de Deus na história e a exemplar implementação do Evangelho.
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Sobre o motu proprio do Papa Francisco: a oferta da vida nas causas dos santos. Artigo de Marcello Bertolucci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU