Por: Cesar Sanson | 29 Abril 2016
Enquanto a agenda política dos Três Poderes da República segue voltada para o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a todo custo, a guerra de baixa intensidade travada contra os povos indígenas faz cada vez mais vítimas. Nos últimos 30 dias, foram cinco assassinatos, cinco prisões, dois atentados e ao menos quatro ataques de pistoleiros a terras indígenas do Mato Grosso do Sul, além de despejos e tentativas de reintegrações de posse pela Polícia Federal no estado e na Bahia. Os dados demonstram uma escalada da violência e criminalização contra lideranças indígenas.
A reportagem é de Renato Santana e publicado por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 28-04-2016.
Conforme dados prévios do Relatório de Violências Contra os Povos Indígenas 2015 (2), a ser publicado nos próximos meses pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre 28 de março e 28 de abril de 2015 foram cinco casos ante 12 episódios de violências e criminalizações contra lideranças e aldeias indígenas no mesmo período deste ano. Durante o ano passado não ocorreram prisões no período recortado; ataques a aldeias e reintegrações de posse não constam no recorte de 2015. O conflito territorial e as dificuldades do direito à terra pelas comunidades indígenas país afora estão entre as causas dos assassinatos, atentados, prisões.
A crescente instabilidade política do país, motivada pela tentativa de deposição da presidente Dilma Rousseff, deixando o Estado ainda mais desatento e inoperante, pode apresentar efeitos ainda mais devastadores na situação dos povos indígenas. Há poucos dias, a bancada ruralista da Câmara Federal esteve no Jaburu, em Brasília, residência do vice-presidente, para exigir medidas a Michel Temer, articulador e fiador do processo de impeachment. Se Dilma Rousseff for afastada pelo Senado, Temer assume a Presidência.
Sairá caro aos povos indígenas as dívidas do vice-presidente com a bancada ruralista, apoiadora entusiasta do impeachment. Um dos pedidos dos parlamentares do agronegócio é a presença do Exército em áreas onde haja demanda territorial indígena. A proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere do Poder Executivo para o Congresso Nacional a demarcação de terras, também foi pautada no encontro, e deverá ganhar ares de solução aos conflitos territoriais.
Nesta quarta-feira, 27, um novo encontro ocorreu entre a bancada ruralista e o vice-presidente. Temer sinalizou aos parlamentares, que se prenunciaram à imprensa após a reunião, que poderá rever as cerca de 30 portarias declaratórias publicadas recentemente pelo governo federal. A bancada ruralista, conforme os deputados, deseja indicar o ministro da Agricultura, além de órgãos ligados à pasta, como o Incra. Querem também indicar o presidente da Funai - pediram a Temer que "tire a ideologia desses órgãos".
Esse período de terror e sangue teve como marco inicial o espancamento sofrido pelo estudante de Medicina Veterinária Nerlei Fidelis Kaingang, no final do mês de março, em frente ao alojamento estudantil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Quatro rapazes agrediram o estudante Kaingang com ofensas racistas e preconceituosas; na sequência, os rapazes passaram a espancá-lo com socos, chutes depois de levar o indígena ao chão – os agressores foram identificados e respondem a processo judicial. No Mato Grosso do Sul, desde janeiro, pistoleiros atacaram os tekoha – lugar onde se é - do Guaivyry, Tey’i Juçu (onde o ataque se deu com componentes químicos), Taquara e Kurusu Ambá.
Prisões
Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau Tupinambá, e o irmão, José Aelson Jesus da Silva, o Teity Tupinambá, foram presos no final da manhã do dia 7 de abril pela Polícia Militar (PM) da Bahia no município de Olivença, depois de reintegração da aldeia Gravatá. Na foto, as cápsulas recolhidas pelos indígenas após o despejo. Encaminhados à sede da Polícia Federal de Ilhéus, tiveram as prisões preventivas decretadas pelo juiz Federal Lincoln Pinheiro da Costa, que depois foram convertidas em domiciliares.
Cacique Babau e seu irmão são acusados de porte ilegal de armas, desobediência de decisão judicial, desacato e agressão. A trama envolvendo a prisão de cacique Babau e Teity se relaciona diretamente com a demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, cuja publicação aguarda a vontade política do governo federal desde 2012. A aldeia Gravatá, cenário do desenlace da criminalização, é uma das áreas exaustivamente exploradas por mineradoras da região de Ilhéus.
Os Tupinambá inúmeras vezes alertaram o governo brasileiro para o crime ambiental em curso, e avisaram que não tolerariam a continuidade da retirada de toneladas de areia da terra indígena. Razão essa que motivou a decisão dos indígenas pela retomada da área degradada pelas mineradoras, a aldeia Gravatá, reintegrada por decisão do mesmo juiz Lincoln no dia 6 de abril, que ainda mandou a PM escoltar os caminhões das mineradoras que retiram areia da terra indígena.
“Tivemos reuniões em Brasília onde sempre frisamos que apenas a demarcação pode colocar um fim a esses conflitos, e os Tupinambá acabam sempre criminalizados, ameaçados de morte e assassinados”, declarou Ramon Tupinambá à Victoria Tauli-Corpuz, durante a visita da relatora da ONU para direitos indígenas à terra Tupinambá de Olivença no final de março deste ano. Poucos dias depois da prisão das lideranças Tupinambá, uma decisão judicial passou a impedir que a portaria declaratória da Terra Indígena Tupinambá de Olivença seja publicada pelo Ministério da Justiça.
Imputar crimes é uma estratégia clássica para criminalizar lideranças. No Mato Grosso, Dodoway Enawenê-Nawê, liderança do povo, foi preso no final da última semana acusado pela morte de dois rapazes em Juína, cujos corpos foram encontrados nos limites da Terra Indígena Enawenê-Nawê. Não há provas de que os indígenas, ou Dodoway, tenham cometido os crimes. Dodoway está preso em uma cadeia pública, sob o risco de sofrer violências de outros presos, enquanto o Estatuto do Índio permite que essas detenções, quando necessárias, possam ocorrer em sedes da Fundação Nacional do Índio (Funai).
No Paraná, o cacique Cláudio Kaingang se encontra na penitenciária de Guarapuava desde o dia 3 de abril. Por conta de conflitos envolvendo a Terra Indígena Boa Vista, o cacique é acusado de lesão corporal, cárcere privado, furto, dano ao patrimônio público e privado, posse ilegal de arma de fogo e tentativa de homicídio. As acusações são feitas por não-indígenas que acossam a terra indígena. Sem averiguar a situação de conflito, e o contraditório, cacique Cláudio teve a prisão preventiva decretada pela Justiça Federal.
Assassinatos
Entre os dias 26 de março e 22 de abril, os indígenas Aponuyre, Genésio, Isaías e Assis Guajajara, todos da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, foram assassinados. Com pouca fiscalização e sem sinal de investigação dos culpados, os indígenas Guajajara que vivem na área – já demarcada e habitada também por índios Awá isolados – sofrem com a constante pressão de madeireiros e temem por sua segurança.Os assassinatos de indígenas do povo Guajajara – autodenominados Tentehar – têm se sucedido rapidamente e de forma impune na TI Arariboia, e vêm ocorrendo tanto dentro do território de usufruto exclusivo dos indígenas quanto no município mais próximo da área, Amarante do Maranhão (MA), bastante frequentado pelos índios que buscam itens no comércio local ou atendimento em serviços básicos.
No dia 26 de março, o indígena Aponuyre Guajajara, de apenas 16 anos e natural da aldeia Arariboia, uma das mais de cem aldeias do povo Tentehar/Guajajara que compõem a Terra Indígena Arariboia, foi assassinado a tiros no município de Amarante do Maranhão.
Na madrugada do dia 11 de abril, Genésio Guajajara, de 30 anos, habitante da aldeia Formosa, também foi assassinado na zona urbana de Amarante do Maranhão com pauladas e um tiro no tórax. Ele estava na cidade para receber a cesta básica distribuída pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
No dia 19 de abril, Isaías Guajajara, de 32 anos, da aldeia Bacabal, foi assassinado a facadas, também no município de Amarante do Maranhão. Poucos dias depois, em 22 de abril, o indígena Assis Guajajara, de 43 anos e morador da aldeia Nova Viana, foi morto a pauladas no interior da própria Terra Indígena Arariboia.
Atentados
Ailson dos Santos Truká segue internado em estado estável no Hospital Regional de Caruaru, município do agreste de Pernambuco, depois de sofrer atentado a mão armada no último dia 16 de abril. Yssô Truká, como é conhecido, foi atingido por três disparos e um dos projeteis se alojou na região pélvica – o indígena aguarda se a melhor solução será a retirada da bala por um procedimento cirúrgico ou se o corpo conseguirá conviver com ela. Yssô está no hospital sob proteção de escolta da Polícia Federal. O atentado aconteceu por volta das 5 horas da manhã na frente de uma casa mantida por estudantes indígenas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Caruaru. Com outros indígenas Truká, incluindo um de seus filhos, Yssô arrumava bagagens no veículo que os levaria de volta para a aldeia, localizada no município de Cabrobó, quando dois pistoleiros em uma moto abordaram a liderança indígena efetuando os disparos. Yssô buscou se proteger; de quatro tiros desferidos contra o indígena, três o acertaram.
A câmera de vigilância de uma casa vizinha registrou toda a ação. Antes do ataque, os pistoleiros passaram de moto para reconhecer Yssô. Na sequência retornaram e então fizeram os disparos. O filho da liderança indígena interveio, gritando aos homens não identificados: “Vocês mataram meu pai! Assassinos!”. Com isso, os pistoleiros acreditaram que de fato tinham conseguido executar Yssô e fugiram – abortando novos disparos, na medida em que fizeram a movimentação de voltar para concluir o crime.
No Maranhão, um outro atentado terminou em morte. Na noite do dia 21 de abril, o indígena Joel Gavião Krenyê, liderança do povo Phycop (Gavião), da Terra Indígena Governador, acabou morrendo depois de um suposto acidente, onde apenas o veículo em que o indígena estava permaneceu no local. Embora a justificativa oficial para a morte seja a de que Joel se envolveu em um acidente automobilístico no caminho entre o município de Amarante do Maranhão e a TI Governador, a perícia ainda não foi realizada e os indígenas defendem que se trata de um atentado contra Joel.
Reintegrações de posse
Trata-se de um verdadeiro festival de reintegrações de posse contra aldeias em terras indígenas. Mesmo quando suspensas, a ameaça do despejo desespera as aldeias e causa instabilidade na vida escolar das crianças. Embora o governo federal tenha reconhecido como tradicional a Terra Indígena Comexatiba, antiga Cahy-Pequi, do povo Pataxó, sul da Bahia, um órgão do próprio governo tem criado impedimentos à permanência dos indígenas na terra, além de fazendeiros e grupos interessados na exploração das áreas para a construção de resorts.
O Instituto Chico Mendes de Conservação Ambiental (ICMBio), administrador do Parque Nacional do Descobrimento, tem entrado com sucessivos pedidos de reintegrações de posse contra os Pataxó de Comexatiba. Apenas esse ano foram três contra seis aldeias do povo, sendo que uma delas acabou suspensa pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, no final de março, na noite anterior ao despejo a ser realizado por forte poderio bélico da Polícia Federal. Ainda na Bahia, a reintegração da aldeia Gravatá, Terra Indígena Tupinambá de Olivença, terminou com a prisão do cacique Babau e de seu irmão, Teity.
Ainda em março, cerca de 80 famílias Guarani e Kaiowá do tekoha Taquara, no município de Juti (MS), estiveram ameaçadas de despejo. Depois de decisão da Justiça Federal no fim de fevereiro, a reintegração de posse contra indígenas pôde ocorrer durante visita da relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos e as Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, ao Brasil.
O desembargador Hélio Nogueira, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, anulou decisão anterior favorável à comunidade indígena, determinando a reintegração de posse de parte da fazenda Brasília do Sul, que incide sobre o território já identificado e delimitado como de ocupação tradicional do povo Guarani e Kaiowá. O Supremo Tribunal Federal (STF) mandou suspender a decisão de reintegração.
Ao todo, a Terra Indígena Taquara possui 9.700 hectares já reconhecidos e publicados no Diário Oficial da União pela Funai e declarados pelo Ministério da Justiça em 2010, por meio de Portaria Declaratória que está sob contestação judicial. A Fazenda Brasília do Sul, que pediu a reintegração de posse, incide totalmente sobre a terra tradicional indígena e teve parte retomada pelos indígenas em 2003, ocasião em que o cacique Marcos Veron foi morto por jagunços.
Notas
(1) Com informações de Tiago Miotto, jornalista do Cimi, e da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional MS.
(2) Os dados são parciais e podem sofrer alterações até a publicação do Relatório de Violências Contra os Povos Indígenas – 2015.
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Em 30 dias, violência contra indígenas mais do que dobra em relação ao mesmo período de 2015 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU