A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 4º Domingo do Tempo do Advento, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Mateus 1,18-24.
“Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado, e aceitou sua esposa” (v. 24)
O Advento nos oferece uma excelente oportunidade para nos aproximar dos verdadeiros protagonistas da história: homens e mulheres de todos os tempos, pessoas pouco ou quase nada conhecidas que, com sua passagem humilde por esta terra, com sua presença despojada, sua espiritualidade do serviço, sua confiança no Deus providente, nos inspiram e nos conduzem a viver o verdadeiro progresso humano e espiritual.
Os Evangelhos narram a história vivida e contada por protagonistas de “segunda fila”, ocultos nos relatos históricos “oficiais” e que só narram as façanhas dos poderosos, com suas ambições, seus privilégios e a opressão que exercem sobre os povos.
O tempo do Advento nos faz entrar em sintonia com S. José e seu assombro diante daqueles momentos tão desconcertantes que ele viveu. E, nele, podemos todos nos reconhecer. Quem não experimentou em seu interior a insatisfação cheia de resistências frente às mudanças que fizeram cair o que fora planificado com toda expectativa. A mudança de planos, seguida de dúvidas, nos alteram, nos dividem por dentro, nos deixam na obscuridade. E é na resposta confiada onde aparece o caminho que nos faz crescer de verdade como pessoas.
A figura de S. José nos permite retornar à essência dos Evangelhos. “A boa notícia do Evangelho consiste em mostrar como, apesar da arrogância e da violência dos governantes terrenos, Deus sempre encontra um caminho para cumprir seu plano de salvação” (Papa Francisco, Patris Corde, 5).
É preciso, portanto, reorientar nosso olhar: primeiro para ler a história a partir dos últimos, dos pequenos e descartados; e, segundo, para desejar profundamente permanecer entre os que estão “à margem”. É por ali que Deus “entra” na história; é ali que surge o broto de um novo tempo e de uma nova esperança.
O testemunho de José vem, além disso, reafirmar a convicção de que nos mais humildes repousa o melhor e mais belo da humanidade. Das periferias, dos “menos-valorizados” ..., surgem valores e experiências que nos fazem progredir a todos, nos propõem perguntas e apontam para novos horizontes...
O evangelista Mateus inseriu o personagem José, "o esposo de Maria" (Mt 1,16), no início de sua catequese, e o descreveu como modelo de quem adere ao discipulado do Reino, proclamado e vivido por Jesus de Nazaré. O leitor-ouvinte de sua catequese, ao longo da narração, deve se dispor a assumir atitudes idênticas às de José na relação com o querer divino, inspirando-se nesse discípulo ideal.
O texto evangélico de hoje afirma claramente o conflito vivido por José. Ele viveu a experiência de uma verdadeira “noite escura”, do “silêncio de Deus”. Mais uma vez é Deus quem toma a iniciativa.
José era um pobre noivo, pertencente a uma nação oprimida e a uma categoria social esquecida, mas conservava límpidos os olhos do espírito, prontos para perceber e acolher a presença surpreendente de Deus em sua vida. Na narração de Mateus, o anjo comunicou ao confuso José o mistério que estava acontecendo com sua esposa Maria. Por essa revelação do anjo, José foi atingido como que por um raio, foi tomado de surpresa: sua noite, seu silêncio, seu sono, sua rotina diária foram quebrados por uma novidade absoluta.
O que José recebeu no sonho foi o chamado a uma existência marcada por constantes “deslocamentos”, pois, a mulher que entrou em sua vida e vai entrar em sua casa, Maria, levava em suas entranhas Aquele que para muitos será uma presença provocativa, uma ameaça ao poder estabelecido, um transgressor das leis e normas religiosas... A vida inteira de José, o justo, vai ficar desestabilizada a partir deste momento porque foi convidado a aproximar-se do mistério surpreendente do Deus feito homem.
Exteriormente, o mundo permanecia como estava, aparentemente nada mudou; mas, ao associar-se ao destino do “Deus que se humaniza”, também José se revelará como presença surpresa, marcada pelo cuidado, pelo silêncio e pela prontidão ao chamado de Deus.
José de Nazaré é o ícone da maior parte dos homens da humanidade que, a partir do silêncio e do anonimato, transitam pelo caminho do trabalho e da família, ambas primitivas vocações dadas no Genesis, no momento da Criação. Na era da imagem em que vivemos, na qual é mais importante “aparecer” que “ser”, a figura de S. José é contracultural e ilumina milhares de seres humanos, para que sejam pessoas com dignidade e não massa amorfa de consumidores e excluídos, presos nas redes sociais e caminhando em direção ao abismo da solidão e do sem-sentido.
A essência da figura de S. José continua sendo seu amor comprometido e kenótico (esvaziamento); não se pode assumir tanto amor sem um esvaziamento e um desmonte do egoísmo e da vaidade. S. José é a imagem daqueles que estão continuamente abertos à Graça transformadora e, portanto, plenamente humanos, em sintonia com a humanidade nova dos construtores do Reino; aqueles que sabem que não são ilhas perdidas de boas intenções, mas que sentem sua pertença a uma História e a um Povo; aqueles que sabem que, para além do êxito ou fracassos pessoais, visibilidade ou invisibilidade midiática, contribuem com suas vidas a um plano maior, a do amor de Deus.
No evangelho de Mateus, a personalidade de José está marcada por uma atitude eloquente de silêncio e discernimento. Um silêncio que não era um vazio, mas um espaço rico na alma, para escutar continuamente, em seu interior, a voz de Deus e o clamor dos demais. Seu silêncio também era habitado por incertezas e sofrimentos, momentos de solidão, de conflito interior, de escuta...
Como discípulos autênticos do Reino entramos em sintonia com o querer e o desejar de Deus nas situações onde nos falta clareza e parece nos encontrar num impasse. São muitas as circunstâncias em que, como José, devemos trilhar o caminho da justiça confrontado com decisões dramáticas a serem tomadas.
O discípulo do Reino, em hipótese alguma, age por impulso, tampouco movido por razões arbitrárias. Antes, nos momentos difíceis, quando deve tomar decisões importantes, valoriza o discernimento como tempo de ponderar tudo diante de Deus, com o desejo de ouvir sua voz, como José na escuta do anjo do Senhor. A voz divina faz-se ouvir de muitas maneiras, de modo especial, nas palavras das pessoas carregadas de sabedoria espiritual e experientes na arte de discernir o desejo de Deus no emaranhado de vozes e apelos em que o ser humano se vê enredado. Nas encruzilhadas difíceis da vida, vale a pena escutá-las!
O evangelista Mateus aponta outro detalhe: “José, era justo...”. Esta expressão na linguagem bíblica é qualificativo de uma pessoa honrada, que se abre à Presença do Deus Amor sem colocar resistência, que busca fazer o bem e retificar o que está torto. É o “anawin” na linguagem bíblica (o pobre de Javé). Como a Virgem Maria, também S. José é o “pobre do Senhor” e pode cantar o “Magnificat”. José é “justo” porque não sucumbiu à tentação do poder, do prestígio social, da febre obsessiva de tudo possuir.
Como homem “justo”, José acolheu Maria sem impor condições prévias. Um gesto inspirador para este nosso mundo onde a violência psicológica, verbal e física sobre a mulher é patente.
Acolhendo Maria numa situação de pessoa “suspeitosa e indefesa”, José nos convida a acolher os outros, sem exclusões, tal como são, com preferência pelos mais fracos. Cada necessitado, pobre, sofredor, estrangeiro, prisioneiro, enfermo, é “o Menino” que José protege e cuida. Neste sentido, sua figura evoca a multidão de pessoas “justas” cuja conduta, em todos os rincões do mundo, é gérmen de vida e sinal de esperança.
A espiritualidade do Advento pede de nós uma docilidade à audição da Voz que nos habita; é também o sussurro que vem da realidade e das coisas, carregada da Presença d’Aquele que desperta o nosso ser para o assombro, para a maravilha e para o milagre.
Diante do “Mistério” que nos envolve e nos escapa, brota do mais profundo do nosso ser, o grito cheio de surpresa.
Eis a plenitude da vida: mergulhar naquela Presença benfazeja que nos enche de sentido, de alegria, e nos surpreende a cada momento, nos invade e nos conduz a caminhos novos.
- Fazer memória das “surpresas” de Deus que despertaram um novo “movimento” em sua vida.