29 Novembro 2017
'Não devore meu coração' inquieta e estimula, mas escorrega na busca de um realismo psicológico. 'Colo' confirma a impressão de que o cinema português tornou-se um dos melhores do planeta.
O comentário é de José Geraldo Couto, crítico de cinema e tradutor, publicado por Outras Palavras, 26-11-2017.
Não devore meu coração, de Felipe Bragança, é um filme desconcertante. Sua originalidade começa na ambientação geográfica – a região de Bela Vista, na fronteira entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai – e se estende ao roteiro, que entrecruza ao menos duas linhas narrativas, e à construção formal, com suas referências a gêneros e cinematografias díspares.
É faroeste, filme de gangue de moto, romance de formação, fábula política, história de amor, alegoria histórica, tudo misturado de um jeito nem sempre harmônico, a partir de contos do livro Curva de rio sujo, de Joca Reiners Terron.
São basicamente duas histórias, mais sobrepostas do que propriamente entrelaçadas: a do garoto Joca (Eduardo Macedo), de 14 anos, apaixonado pela índia guarani Basano (Adeli Benitez), que mora no Paraguai, do outro lado do rio Apa; e a de seu irmão mais velho, Fernando, o Príncipe (Cauã Reymond), membro da Gangue do Calendário, grupo de motoqueiros que rivaliza com seus congêneres paraguaios, autodenominados República Guarani.
Trata-se, já se vê, de uma insólita atualização de uma violência histórica secular, ressaltada já nas primeiras imagens: detalhes do célebre quadro “Batalha do Avaí”, de Pedro Américo, retrato de um dos mais sangrentos episódios da Guerra do Paraguai. A imagem seguinte, que joga de chofre a narrativa nos dias de hoje, é ainda mais eloquente: um jacaré atropelado, estendido atravessado numa rodovia, por onde vem chegando em alta velocidade uma moto que, ao desviar do bicho, tomba no acostamento.
Em poucos minutos, os elementos básicos com que o filme vai trabalhar estão dados: a memória histórica, a vastidão do horizonte, a natureza selvagem, a velocidade, a solidão, o sangue. Mais do que o enredo, o que se impregna na sensibilidade e na memória do espectador é esse território conturbado, pulsante, pleno de fantasmas e ameaças. Os corpos boiando no rio, o fogo nas plantações.
Mas não há um determinismo, um fatalismo imposto pela história ou pela geografia. Dentro do mesmo contexto, os dois irmãos protagonistas têm posturas opostas: Fernando parece imbuído de uma missão de vingança e aniquilação do inimigo guarani; seu irmão caçula acredita no amor e entrega (quase literalmente) seu coração à altiva e inflexível Basano, la Tatuada.
Cada um desses personagens puxa a narrativa para um diferente gênero, um diferente estilo. O mundo de Fernando é o da velocidade, da brutalidade dos motores e das armas, das mulheres-objeto, do asfalto selvagem: “gasolina e música”, na frase do ambíguo líder de sua gangue, Telecatch (Marco Lori). O mundo de Joca é o do rio, da mata, dos vagalumes, das trilhas de terra percorridas de bicicleta, da princesa guerreira guarani. Do ponto de vista das referências cinematográficas, é uma mistura improvável: uma configuração remete a Walter Hill; a outra, a Apichatpong Weerasethakul.
A progressão narrativa, com sua montagem aos saltos, indiferente às regras convencionais de continuidade, abole a certa altura as coordenadas temporais, numa montagem paralela de dia e noite, ou numa sucessão aparentemente aleatória de crepúsculos e auroras. Também a geografia se desconcerta: não sabemos, por exemplo, se a fazenda do pai dos protagonistas é próxima ou distante, ou se determinado personagem está indo em direção ao lado paraguaio ou ao lado brasileiro.
Tudo isso é inquietante e estimulante. O que talvez enfraqueça um pouco o conjunto é a vertente, digamos, do realismo psicológico, que busca dar conta das relações conflituosas no seio da família: os irmãos, a mãe depressiva e ressentida, o truculento pai ausente. Alguns diálogos (como o primeiro entre os irmãos) são demasiado explicativos. Inversamente, não se entende bem o papel do personagem Mago (Ney Matogrosso), espécie de braço-direito do pai dos rapazes. A mim, pelo menos, sua presença pareceu dispensável.
De todo modo, é um filme de rara complexidade e riqueza – de ideias, de imagens, de invenção audiovisual –, com uma trilha musical inusitada, que reúne a ópera “O guarani”, de Carlos Gomes, a popular guarânia “Índia” em sua versão original em guarani, e uma curiosa interpretação em espanhol de “Objeto não-identificado”, de Caetano Veloso. Aliás, a mistura de línguas – português, espanhol, guarani – é um dos encantos de Não devore meu coração.
Outro filme belo e estranho, mas numa direção diferente, é o português Colo, de Teresa Villaverde, em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio. Para definir em poucas palavras, é a história da implosão de uma família de classe média no mundo globalizado. Mostra-se ali, de modo fragmentado, o dia a dia de crescente penúria de um pai desempregado (João Pedro Vaz), uma mãe estafada pela dupla jornada (Beatriz Batarda) e uma filha ainda em plena adolescência (Alice Albergaria Borges), mas já destituída de sonhos e perspectivas.
A luz do apartamento é cortada por falta de pagamento, a comida escasseia, os afetos se encerram. Em algum momento, alternadamente, um dos três não volta para casa por algum motivo. Há passagens em que, ora a filha, ora o pai, saem do universo urbano e perdem-se num mundo arcaico, atemporal: uma praia deserta, um barraco solitário de pescador, uma mata fechada. É como se saltássemos do drama social realista para uma dimensão de parábola ou alegoria, mas sem “mensagem” ou moral da história.
A câmera de Teresa Villaverde observa, impassível e implacável, esses seres que, quando na cidade (e sobretudo no apartamento), se movem em quadriláteros delimitados, quadros dentro do quadro: janelas, espelhos, vãos de portas, corredores, molduras diversas. Os chamados tempos mortos não poderiam aqui ser mais cheios de vida – ainda que de uma vida sufocada, oprimida.
Questões urgentes – desemprego, corte de direitos sociais, gravidez adolescente, baladas movidas a drogas sintéticas, mudanças de papéis de gênero – são abordadas de modo transverso, como quem não quer nada, e as coisas parecem se encaminhar de modo fortuito até um desfecho surpreendente.
Os assuntos são deprimentes, mas o frescor e o vigor com que a diretora os plasma em cinema são animadores. E confirmam a impressão de que o cinema português é hoje um dos melhores do planeta.
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Dois filmes belos e estranhos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU