02 Junho 2014
O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, MTST, tornou-se protagonista dos mais recentes protestos contra a Copa do Mundo. O grupo é responsável por uma ocupação com cerca de 3 mil barracos, a 4 quilômetros do Itaquerão, e tem parado a cidade de São Paulo.
A reportagem é de Mauro Donato, publicada por DCM, 01-06-2014.
À frente do MTST está Guilherme Boulos, coordenador nacional. Caminhando com ele em busca de um local para realizar o retrato desta entrevista, reparo que ninguém na rua o reconhece. Talvez fruto de sua resistência em falar de sua vida pessoal — Boulos é professor, formado em filosofia na USP, com especialização em psicanálise.
Ele é discreto até mesmo com relação a o que o teria levado a se interessar pela questão de moradias. “Tenho clareza e firmeza naquilo que estou fazendo. Essa coisa de personalizar é uma forma de desanuviar o que o movimento representa. Ficar focado em mim ou em outra pessoa é a tática da fofoca que a mídia tanto gosta”, declara.
Eis a entrevista.
Causa surpresa o número de pessoas nas ocupações recentes, surgidas em curto espaço de tempo. Qual a demanda por moradia hoje?
É importante esclarecer que essas pessoas não apareceram do nada. São pessoas que já estavam em situação muito precária no entorno das ocupações, e veem na ocupação a única alternativa para sair do sufoco. Onde estavam? Estavam num sofrimento silencioso. Gente que recebe 800 reais de salário e paga 500 de aluguel. Foi publicada uma pesquisa da Fundação João Pinheiro apontando que o que aumentou o déficit habitacional foi o valor do aluguel nas grandes metrópoles em particular.
Outro drama é a coabitação. O maior componente do déficit habitacional no Brasil é a convivência de mais de uma família numa mesma casa. Some-se a isso áreas de risco, favela etc. Essas famílias já estavam ali mas estavam dispersas e o que a ocupação faz é dar uma oportunidade para que elas tenham uma luta comum, dá a oportunidade de sair de uma situação insuportável para uma situação de conquista de moradia digna.
O deficit habitacional no país é de 7 milhões de famílias. O que é curioso é que não precisaria construir 7 milhões de moradias. Um milhão daria conta, pois temos 6 milhões de moradias ociosas que poderiam ser desapropriadas pelo poder público.
Segundo o governo federal, entre 2011 e 2013 foram entregues 1,5 milhão de casas. O programa Minha Casa Minha Vida não consegue atender a demanda?
Não nas grandes metrópoles porque é onde a especulação imobiliária é maior. A lógica é essa e é por isso que dissemos que o Minha Casa Minha Vida enxuga gelo. Alguns setores gritaram com essa declaração mas o fato é que se você tem um programa que só produz habitação, e ainda produz dentro da lógica da especulação pois faz nos piores lugares, lá no fundão. Não tem Minha Casa Minha Vida bem localizado para a faixa 1 (famílias com renda de 0 a 3 salários mínimos). Só fazer habitação sem política de combater a especulação imobiliária, produz-se novos sem-tetos numa proporção ainda maior.
Ocupar nos extremos da cidade, nas periferias, não é perpetuar o problema de mobilidade? Por que não ocupar os prédios vazios do centro de SP?
Atua-se aí também. O MTST valoriza e respeita os movimentos que fazem ocupações de prédios no centro porque eles estão numa lógica importante de recuperar o centro da cidade pelos mais pobres. Para o MTST a questão é a seguinte: por que fazemos ocupação na periferia? Porque o MTST não é um movimento apenas de moradia. Uma ocupação na periferia irradia uma demanda por outras questões como luta por saúde, luta por creches, por transporte. Você envolve muito mais gente e constroi uma força social mais ampla para lutar por reforma urbana e transformação da sociedade. A opção de fazer as ocupações na periferia é uma opção política.
Qual o tempo médio para que uma família assentada em uma ocupação tenha sua casa conquistada, construída?
Varia muito dependendo do processo. Por exemplo, quando é uma desapropriação depende do judiciário, que às vezes demora 4 anos para dar uma emissão na posse e você fica refém. Se é compra de um terreno pelo Minha Casa Minha Vida o processo é mais rápido. Tem o tempo de elaboração do projeto, às vezes a coisa trava por uma questão ambiental, portanto não há um tempo padrão. Temos experiências de casos que duraram cinco, seis, sete anos.
Na última quarta-feira, o movimento fez pressão na Câmara Municipal para inclusão da emenda que propõe o terreno ocupado em Itaquera, chamado Copa do Povo, seja classificado como ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social). Como está o processo?
Dia 11 de junho é o prazo máximo para votação do Plano Diretor e queremos aprovar a Copa do Povo como ZEIS e aí nossa ideia é assinar um termo de compromisso entre todas as partes estabelecendo os parâmetros para viabilização do empreendimento.
Se nada avançar até lá, haverá resistência?
Nós não vamos sair. Se o poder público, o judiciário, proprietário e polícia apostarem numa solução que não seja negociada, vai haver conflito.
A polícia modificou de alguma maneira o comportamento truculento nessas operações?
No geral, as reintegrações continuam sendo feitas num modelo de barbárie como foi Pinheirinho. Intimam as famílias com o trator na porta e soldado com spray de pimenta. As reintegrações de posse no Brasil são violentas e autoritárias. Por isso uma de nossas pautas, que levamos para a presidente Dilma, é a criação de uma política federal de prevenção de despejos forçados.
Quando solicitada uma reintegração, não deve haver uma realocação já definida pelas autoridades?
Há um projeto no congresso engavetado há mais de dez anos de regulamentação de cumprimento de reintegração de posse que afirma que o juiz precisa visitar a área antes dar a canetada, que tem que fazer audiência prévia com todas as partes, que tem que haver um mínimo de civilidade e tentativa de diálogo antes de mandar a polícia que é a linha automática do judiciário. O judiciário consegue ser o poder mais conservador no país hoje.
Ocorre que hoje temos um gargalo que é a lei de desapropriações no Brasil que é atrasadíssima, é uma lei pró proprietário. Ele é indenizado pelo valor de mercado e muitas vezes isso é interessante para o proprietário. O poder publico beneficia e premia a especulação porque o cara vende a área por um preço maior do que comprou. A forma de mudar isso é apicar mecanismos mais rigorosos de desapropriação, particularmente mecanismos já previstos nos estatutos das cidades que é a desapropriação sanção em que depois de 5 anos com a terra vazia aplicando IPTU progressivo é possível desapropriar com titulo da divida pública.
O Plano Diretor como um todo está de acordo com as diretrizes previstas pelo MTST?
Nenhum plano diretor vai fazer reforma urbana. Isso se faz com ampla mobilização popular. Sabendo dos limites de relação de força hoje no país, o plano diretor de São Paulo traz avanços. Por isso o defendemos. Ele não irá mudar as relações sociais mas é um plano que destina mais áreas para ZEIS, torna mais rigorosa a aplicação dos mecanismos dos estatutos das cidades de combate à especulação imobiliária, traz inovações importantes como a cota de solidariedade que obriga empreendimentos maiores e de alto padrão a atuar em terras de habitação popular. Desse ponto de vista traz avanços.
No final do ato da semana passada, sobre a Ponte Estaiada, você ameaçou parar a Copa do Mundo caso as reivindicações não sejam atendidas? Até onde pretende chegar?
Parar a Copa com 2 bilhões de reais investidos na segurança, especialmente em aparatos repressivos para as forças policiais, com o batalhão de infantaria leve do exército abrigado no metrô Artur Alvim, pelo nível de repressão que temos visto… parar a Copa nós não vamos. De toda forma, o que queremos dizer e que caso os governos, é importante que se diga no plural porque ficou uma coisa ‘movimento Dilma’, e não se trata só disso, nós temos pautas em todos os níveis de governo. O governo do estado de SP que boa parte da mídia faz questão de proteger é também alvo dessas reivindicações, então se os governos não tiverem a sensibilidade nesse processo de atendimento, a tendência natural é de maiores mobilizações durante a Copa. Não é atender já, agora. Não. Algumas coisas precisam ser atendidas imediatamente, outras coisas você constroi soluções a longo prazo mas dá indicações. O movimento tem maturidade política para analisar e entender que algumas questões não se resolvem assim. Não é tudo ou nada. Já disseram que demos um ultimato para a presidente Dilma e não é isso. O que estamos fazendo não é nada mais nada menos do que a lógica do movimento popular e movimento operário dos últimos cinco séculos.
As manifestações do MTST são pacíficas. O que pensa dos black blocs? Há legitimidade na tática? Eles seriam bem vindos?
Não concordamos. Achamos que essa tática representa uma antipatia direta com o conjunto dos trabalhadores. Essa tática não agrega, ela afasta pessoas das mobilizações e no nosso entendimento expressa um infantilismo.
Reinaldo Azevedo lhe chamou de ‘coxinha extremista’ e alegou que você seria um interlocutor de Dilma e Haddad. Não é um contrasenso, uma vez que eles são diretamente afetados pelas ocupações e conseguintes protestos?
Nunca me preocupei em responder ao RA pois ele não é sério, é um diversionista. Ele só é levado a sério pelo público que também não nos interessa tratar. Não sou interlocutor de Dilma nem de Haddad nem de Alckmin. Nós não somos petistas e o PT também é crítico à nossa política. A interlocução que temos com os governos é a partir das pautas de reivindicações que qualquer movimento social deve ter com qualquer movimento democrático, nada além disso.
Quais as próximas ações?
Semana que vem deve haver uma nova grande mobilização, unificada, de várias ocupações, junto com outros setores. Nossa perspectiva é de ter 25 mil pessoas na rua na continuidade da campanha “Copa Sem Povo, Tô Na Rua de Novo”, buscando fazer com que nossas pautas sejam ouvidas.
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“Essas pessoas não apareceram do nada”: Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST - Instituto Humanitas Unisinos - IHU