Por: André | 05 Outubro 2015
“A misericórdia não é uma lei a mais. É a grande herança de Jesus. Será que não chegou a hora de rever a disciplina eclesiástica e o conteúdo do Direito Canônico, tão alheios, às vezes, ao espírito de Jesus?”
A reflexão é de José Antonio Pagola e publicada por Religión Digital, 01-10-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
As tradições evangélicas destacam uma vez ou outra que a ação de Jesus sempre está inspirada, motivada e impulsionada pela misericórdia para com todo ser humano. A misericórdia explica e define sua maneira de ser e de agir. O verbo que os Evangelhos de modo geral empregam (splanchnizomai) sugere que o sofrimento das multidões comove suas entranhas, penetra até o fundo de seu ser e se converte em seu princípio de ação.
O importante é perceber que esta misericórdia não é um sentimento a mais, mas a reação básica de Jesus que dirige e configura toda a sua ação. Não vem motivada por interesse algum. É amor gratuito que brota em Jesus desde o insondável mistério de Deus. A partir desta misericórdia se entende toda a sua ação salvadora.
Os Evangelhos destacam de maneira especial a dedicação de Jesus para curar a vida enferma das pessoas erradicando ou aliviando seu sofrimento. Nada nem ninguém pode deter sua liberdade para agir com misericórdia, nem sequer a lei sagrada do descanso sabático. “O preceito do sábado foi instituído para o ser humano e não o ser humano para o sábado” (Mc 2, 27).
Além disso, os Evangelhos destacam a ação escandalosa de Jesus oferecendo o perdão de Deus de maneira gratuita aos “pecadores”. Nada nem ninguém pode detê-lo, nem a recusa nem os insultos. Jesus explicará da seguinte maneira a sua ação: “As pessoas que têm saúde não precisam de médico, mas só as que estão doentes. Eu não vim para chamar justos, e sim pecadores” (Mc 2, 17).
O que era especialmente escandaloso é o seu costume de sentar-se à mesa com pecadores e pessoas que, por diversas razões, os setores mais observantes consideravam excluídos da Aliança e, portanto, banidos da convivência (banquetes, bodas, sábado...). Jesus se aproxima para comer com eles, não como um mestre da lei, preocupado em examinar sua vida moral, mas como profeta da misericórdia que lhes oferece sua amizade e comunhão.
O significado profundo destas refeições com pecadores consiste em que Jesus cria comunidade com eles perante Deus. Compartilha o mesmo pão e o mesmo vinho; pronuncia com eles a “bênção a Deus” e celebra antecipadamente o banquete final que o Pai já está preparando para os seus filhos e filhas. Seu gesto de misericórdia anuncia-lhes a Boa Nova de Deus: “A discriminação que vocês estão sofrendo não reflete o mistério último de Deus. Também em relação a vocês o Pai é misericórdia e perdão”.
A mesa de Jesus é uma mesa aberta para todos. Não é a “mesa santa” dos fariseus, nem a mesa pura” dos membros da comunidade de Qumrã. É a mesa acolhedora de Deus. Com sua ação misericordiosa, Jesus não justifica a corrupção dos publicanos nem a vida das prostituas. Simplesmente, rompe o círculo diabólico da discriminação e abre um espaço novo onde todos são acolhidos e convidados para o encontro com o Pai da misericórdia. Jesus coloca todos, justos e pecadores, perante o mistério insondável do perdão de Deus. Para ele, já não há justos com direitos e pecadores sem direitos. A misericórdia é oferecida a todos. Estão excluídos apenas aqueles que não a acolhem.
A Igreja está há muitos séculos sem escutar em toda a sua radicalidade o apelo de Jesus: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36). Jesus não tem nada melhor a oferecer aos seus seguidores, como motivação e impulso da misericórdia, que o seu Bom Pai: “Reproduzi na Terra a misericórdia de vosso Pai do céu”. A misericórdia não é uma lei a mais. É a grande herança de Jesus. Por isso, tudo aquilo que impede, obscurece ou dificulta captar o mistério de Deus como misericórdia, perdão ou alívio do sofrimento, deve desaparecer de sua Igreja, pois não encerra a Boa Nova de Deus proclamada por Jesus.
Seus seguidores devem trabalhar hoje para que sua Igreja seja, cada vez mais, um espaço sensível e comprometido com todas as feridas físicas, morais e espirituais dos homens e mulheres de hoje. Será que não chegou a hora de rever a disciplina e o conteúdo do Direito Canônico (sanções, castigos dos crimes, penas, processos, tribunais...), tão alheios, às vezes, ao espírito de Jesus e tão condicionados por doutrinas inspiradas mais no direito romano do que no Evangelho?
Neste contexto, não é um fato de importância menor a decisão que for tomada no próximo Sínodo sobre o acesso ou não à comunhão sacramental, dos casais em situação irregular (divorciados recasados). Será sinal de que a Igreja se decide a seguir Jesus pelos caminhos da misericórdia, ou que ainda não se sente com forças para libertar-se de ataduras que a estão impedindo de anunciar com a audácia e a radicalidade de Jesus a misericórdia de Deus pelo ser humano.
Os fariseus, ao verem que Jesus admitia a todos à sua própria mesa, acusaram-no de “amigo de pecadores”. Jesus nunca se defendeu desta acusação nem a desmentiu, pois era verdade que se sentia seu amigo. É triste observar como, depois de 20 séculos, ganham força na Igreja algumas correntes de resistência ao Papa Francisco, em cujo transfundo parece que subjaz a mesma preocupação, pois, em definitiva, estão lhe pedindo para que não caia na tentação de ser tão amigo de pecadores. Não entendo seu escândalo. A quem Jesus excluiria hoje da comunhão eucarística?
Quanto mais contemplo o profeta da misericórdia e procuro interiorizar seu Espírito, mais me reafirmo na convicção de que só a misericórdia pode fazer a Igreja de hoje mais humana e mais confiável. Francisco, que Deus o abençoe!
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Francisco, assim como Jesus, rompe o círculo diabólico da discriminação. Artigo de José Pagola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU