19 Fevereiro 2015
Em American Sniper, o novo filme de Clint Eastwood sobre o atirador de elite Chris Kyle, da equipe Seal da Marinha americana, vemos o fuzil antes de ver o homem (o ator Bradley Cooper). Bastante apropriado, considerando que foi o fuzil, e o que Kyle fez com ele em suas quatro convocações no Iraque – com um registro de 160 mortes confirmadas, mais do que qualquer outro atirador americano da história – que o tornou famoso nos círculos militares e além deles. Então a câmera se desloca em pan para o próprio Kyle que olha através do seu telescópio para as ruas lá embaixo, implicando que logo conheceremos o Seal atrás da arma.
A reportagem é de Phil Zabriskie, publicada pela revista Foreing Policy e reproduzida pelo jornal O Estado de S. Paulo, 14-02-2015.
São muitas as coisas que ficamos sabendo do personagem – o pai que não se cansava de insistir que o mal existe e os cães pastores deste mundo devem proteger o rebanho dos lobos; seu ingresso no Exército e o período em que serviu no Iraque; seu suposto adversário, um atirador inimigo apelidado Mustafá; as consequências dos sucessivos períodos no front para ele e a família, particularmente para a mulher, Taya; o trabalho ao qual se dedicou a fim de ajudar os veteranos, que o levou a entrar em contato com um ex-soldado com problemas que acaba matando surpreendentemente Kyle, quando a vida do ex-atirador parecia estar voltando ao normal. É muita coisa para se falar em pouco mais de duas horas de filme.
Explico: eu não estava assistindo a American Sniper como crítico de cinema ou como o sujeito que vai ao cinema de vez em quando. No ano passado, entrevistei sobre esse tema soldados e fuzileiros navais – inclusive um condecorado com a Cruz da Marinha –, oficiais de alta patente e um parlamentar recentemente eleito, partindo de reportagens que fiz anos antes no Iraque e no Afeganistão. De que maneira o Exército treina pessoas para matar? Como é tirar uma vida, naquele instante? Como é nos dias e anos seguintes? Os Estados Unidos estão em guerra há mais de dez anos, mas essas questões básicas – e esse aspecto tremendamente básico do combate – continuam sendo discutidos muito raramente, quando o são, pelos militares, por funcionários e pela sociedade. Isso implica que algo crucial vem sendo omitido quando se fala dessas guerras e esses veteranos acabam carregando isso consigo, frequentemente numa profunda solidão.
Havia, portanto, uma grande oportunidade de examinar o assunto em todos seus detalhes difíceis, brutais e necessários. A autobiografia de Kyle, intitulada também American Sniper, que virou best-seller e serviu de base para o roteiro, é um relato simples, sem rodeios, de sua carreira. Será que Clint Eastwood e sua equipe se mantiveram fiéis a ela, pensei? Será um retrato cuidadoso do trabalho de Kyle, quem sabe tornando mais fácil falar do que é matar em combate e do que isso significa para os soldados americanos e para os Estados Unidos como um todo?
Alguns elementos se coadunaram com as conversas que tive com pessoas que estiveram na guerra – e mataram – no Iraque e no Afeganistão. O Kyle interpretado por Bradley Cooper tem muitas das características, segundo me contou o coronel Patrick Malay (da reserva), que comandou um batalhão da infantaria da Marinha na batalha de Fallujah, em 2004, comuns aos matadores dos campos de batalha: “Eles o faziam com uma sensação de urgência, mas aparentemente não experimentavam o menor prazer naquilo. Era apenas trabalho”, ele disse. “Evidentemente não havia mutilação de corpos, comemorações, gritos. Era algo como ‘ele já era. O que tem agora?’”.
Assim diria o Kyle do livro e do filme, um homem ao qual asseguraram que suas ações eram justas, mesmo honrosas. Quando ele mata alguém, em geral, não faz muito mais que fungar antes de preparar o próximo tiro. O que poderia sugerir que só teve de tomar decisões fáceis. Mas o filme descreve também situações muito dolorosas, em que puxar o gatilho é inevitavelmente algo terrível. Na primeira vez que Kyle serve no Iraque, atira num menino que recebeu uma granada da mãe e caminha na direção de alguns soldados. Kyle atira na mãe também, depois que ela pega a granada. Durante a última passagem pelo front, ele vê um menino olhando uma granada que caiu da mão de um homem em quem Kyle atirara momentos antes. “Não pegue”, murmura Kyle, sabendo que terá de atirar no menino (isso é previsto pelas normas da guerra) se ele ameaçar os soldados com a granada. “Não pegue essa merda.”
A cena lembra uma história que um fuzileiro naval que conheci em Ramadi me contou sobre o início da invasão do Iraque. Depois que alguém da sua unidade atirara num soldado iraquiano, um menino, de uns 7 anos, correu até o homem morto e pegou seu fuzil AK-47. O fuzileiro tentou ordenar-lhe com a força do pensamento: “Recue! Recue!”.
O menino do filme pega a granada e deixa cair, para alívio de Kyle. O outro, o real, levantou o fuzil e mirou. O marine o matou. Ele fora treinado para “neutralizar” ameaças a seus camaradas; atirar no menino foi um ato legal, como são legais atos terríveis segundo as leis e as realidades da guerra. Entretanto, anos mais tarde, ele ainda descreve a cena com todos os dolorosos detalhes. E embora o marine consiga fazer progressos em outros problemas que levou para casa depois de ser ferido em 2004, ele sabe que terá de lidar com as consequências da morte do menino por muito tempo. Quando não, pelo resto da vida.
Outros aspectos do tratamento dado pelo filme ao ato de matar são menos impressionantes. Kyle pula vários passos que precedem os testes para Seal. As cenas de treinamento que foram incluídas mostram pouco de até onde as Forças Armadas devem ir para treinar os soldados para matar – a passagem da teoria para alvos próximos da realidade, o uso da linguagem, os exercícios, as simulações e outros instrumentos para que as tropas enviadas para a batalha se sintam como se fizessem aquilo desde sempre. Um ex-soldado de infantaria descreveu o resultado do treinamento relatando o confronto com um combatente do Taleban no Afeganistão. “O alvo se apresenta. Você levanta a arma, faz a mira, puxa o gatilho e abaixa a arma de novo”, ele disse. Naquele instante, “aquilo era um alvo a 25 metros, apenas isso”. Só mais tarde o soldado pensa: “Na realidade, era uma pessoa”.
Além disso, o filme não deixa claro para onde Kyle vai ou quem ele está combatendo de uma convocação para a outra. Sua autobiografia mostra muito mais respeito pelos fuzileiros navais, soldados e pessoal da Guarda Nacional com os quais ele trabalhou do que no filme. O roteiro afasta-se drasticamente do livro (e dos fatos registrados) também em outros aspectos. Por exemplo, no filme o atirador Mustafá é sírio, enquanto no livro é iraquiano. O adversário de Kyle no filme combate tanto com a Al-Qaeda, predominantemente sunita, em Fallujah, no Iraque, como com o Exército Mahdi, predominantemente xiita, em Bagdá, o que realmente desafia a compreensão. Depois aparece numa batalha crucial que supostamente ocorreu na última vez que Kyle lutou na guerra, uma cena que muito convenientemente unifica numerosas linhas do enredo.
O roteirista disse que comprimiu os acontecimentos, fez de Mustafá um personagem recorrente e tomou outras liberdades para criar uma narrativa mais concisa. Acho que esse é um problema num relato que se apresenta como a verdadeira história de uma pessoa real que combateu num lugar real, matou pessoas reais. E também implica falsamente que os americanos tinham um único inimigo no Iraque, quando não foi esse o caso, e que Kyle repetidas vezes teve sob sua mira membros da mesma força em combate, o que não aconteceu. O que prejudica a autenticidade que o filme proclama.
“Adoro matar bandidos”, escreve Kyle num determinado ponto do seu livro. “Cara, vai ser bom, acho eu”, ele diz num outro momento, ao saber que vai para Fallujah. ‘Vamos liquidar um monte de bandidos.” As pessoas que está matando são uniformemente “más”. Às vezes ele se vangloria de “matar selvagens”. E matá-los é sua “vingança” pelos ataques ou ameaças contra os EUA. Não obstante o fato notório de que o Iraque não teve nada a ver com os atentados do 11 de Setembro, sua certeza é absoluta. “Todos que matei eram maus”, ele escreve. “Mereceram morrer.”.
Para pessoas que não viveram um combate, são palavras cruéis, macabras. Mas para Kyle e muitos outros veteranos elas são reflexos verbais do mundo no qual viveram, combateram, mataram e morreram durante meses ou anos. “Se você vê uma pessoa pela primeira vez, mas enxerga somente o seu lado desumano que se revelou na batalha, isso pode ser muito confuso”, disse-me o tenente-coronel Steve Russell, congressista eleito recentemente por Oklahoma que comandou a unidade de infantaria do Exército em Tikrit, que ajudou a capturar Saddam Hussein. Mesmo aqueles que passaram por essa experiência inúmeras vezes e tiveram anos para refletir a respeito podem ter dificuldade em definir as sensações que surgem quando você tira a vida de alguém. “Você mata um cara e tem, naquele momento, entusiasmo”, disse Brian Chontosh, marine que se aposentou recentemente e recebeu a Cruz da Marinha por ter enfrentado os inimigos no Iraque durante uma emboscada em 2003 e mais tarde liderou uma companhia na batalha por Fallujah. “O que é isso? Um surto? É um surto porque você tem prazer em matar a pessoa? Não sei. É um surto porque você tem uma satisfação com o trabalho, com o que fez, você passou no teste, está vivo e ele não? Confesso que não sei. Ambos? Talvez.”
O filme deixa de lado a perspectiva de Kyle com relação a esse tema, enfatizando o serviço prestado, seus assassinatos como um esforço para proteger seus colegas soldados, e os americanos em geral – ser o cão pastor de ovelhas que seu pai esperava que ele se tornasse. Certamente ele refletia a respeito disto. “Meus arrependimentos dizem respeito às pessoas que não consegui salvar”, ele escreve.
Se as pessoas concordam ou não, foi o que Kyle escreveu e outros com quem conversei confirmaram esses sentimentos. Podem ter lutado com isso e podem lutar ainda hoje, questionando se precisavam de fato matar aqueles que mataram. Podem até dizer, como Chontosh me disse, que provavelmente irão para o inferno pelo que fizeram. Mas não tentam embelezar a situação ou transformá-la numa espécie de roteiro de Hollywood. Em muitos casos, eles se orgulharam de seu desempenho em combate, como mataram as pessoas que precisavam matar e se mostraram prontos para resolver a situação diretamente. Era o trabalho para o qual se inscreveram e realizaram como seus superiores e seus comandantes ordenaram.
Mas ao extrair do filme declarações mais diretas de Kyle sobre as mortes, tornando Sniper Americano uma história concisa e ao mesmo tempo violenta, os cineastas perderam a oportunidade de examinar a fundo o que é matar em combate e o que isso exige de atiradores de elite como Kyle, como também dos soldados de infantaria, dos marines e de outras tropas da linha de frente que formaram o maior grupo de soldados no Iraque.
Embora esteja claro que ele está profundamente perturbado, o filme em grande parte insinua que seus problemas estavam relacionadas com tudo o que ele viu no Iraque – câmaras de tortura, partes de corpos, civis assassinados e mutilados por insurgentes, mais do que qualquer coisa que tenha feito. Como Kyle carregou consigo tudo o que fez e viu, nunca saberemos. Sua história, embora extraordinária, está incompleta. Infelizmente Sniper Americano também é incompleto como estudo sobre o que é matar em combate. Como muitas discussões sobre nossas guerras recentes, esse caso é analisado com atenção durante algum tempo, mas logo depois é abandonado.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O homem atrás do fuzil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU