Heidegger: “Os hebreus se auto-aniquilaram”

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12 Fevereiro 2015

A Shoah é “o auto-aniquilamento dos hebreus”. Esta tese de Heidegger aflora no novo volume dos Cadernos pretos [Quaderni Neri], tratado por Peter Trawny, que está para ser publicado na Alemanha pela editora Klostermann (Gesamtausgabe [obra completa] 97, notas I-V). Trata-se das notas referentes ao período crucial que vai de 1942 a 1948. Faz parte do volume, de 560 páginas, também o caderno de 1945/46, que parecia ter sido perdido e que foi recuperado na primavera passada.

A reportagem é de Donatella Di Cesare, publicada por Corriere della Sera, 08-02-2015. A tradução é de Benno Dischinger.

Os últimos anos do conflito planetário, a derrota da Alemanha, a presença das forças aliadas no solo alemão são os eventos que fazem de fundo àquela que, também alhures, Heidegger chama de “história do Ser”, o caminho da filosofia em condições de abrir uma passagem para a salvação do Ocidente. Após 1945 o caminho não se interrompe, mas se redobra sobre si, entre retornos e vias transversas. Heidegger não cessa de procurar o “outro início”, a alvorada da Europa, embora se tenha tornado quase impossível orientar-se. As ruínas da Alemanha atestam, sem equívocos, a falência da missão confiada ao povo alemão. Junto a este naufrágio epocal Heidegger vive também a própria falência acadêmica: o ex-reitor de Friburgo, em 1946, é interdito do ensino.

O volume 97 dos cadernos oferece, portanto, uma perspectiva inédita sobre o pensamento de Heidegger. Tanto mais que, como aquelas já publicadas, conjuga reflexão filosófica e análise pontual dos eventos históricos. Mas este volume é destinado a deixar seu sinal, sobretudo porque cancela um lugar comum da filosofia do século vinte: o “silêncio de Heidegger” após Auschwitz. Se os hebreus têm um papel de primeiro plano nos precedentes cadernos pretos, que vão de 1931 a 1941, se a “questão hebraica” é estritamente conexa com a questão do Ser – como procurei mostrar em meu livro recente – não pode surpreender que Heidegger fale da Shoah e a considere tanto sob o aspecto filosófico como sob aquele político.

Selbstvernichtung, auto-aniquilamento, é a palavra-chave: os hebreus se teriam auto-aniquilado. Ninguém poderia então ser chamado em causa, senão os próprios hebreus. Já nos cadernos de 1940 e de 1941, quando é avançada a exigência de uma “purificação do Ser”, faz o seu inquietante aparecimento o termo “auto-aniquilação”. 

Rigoroso e coerente, Heidegger não faz senão tirar a conclusão de tudo aquilo que disse em precedência. Os hebreus são os agentes da modernidade; difundiram os seus males. Deturparam o “espírito” do Ocidente, minando-o a partir de dentro. Cúmplices da metafísica, levaram a todo lugar a aceleração da técnica. A acusação não poderia ser mais grave. Somente na Alemanha, graças à férrea coesão de seu povo, teria podido bloquear os efeitos devastadores da técnica. Eis porque o conflito planetário foi acima de tudo a guerra dos alemães contra os hebreus. Se estes últimos foram aniquilados nos Lager, é por via daquele dispositivo, daquela engrenagem que, fazendo complô para o domínio do mundo, a promoveram e favoreceram por toda parte. O nexo entre técnica e Shoah não pode ser omitido. E é precisamente Heidegger que fez alusão a isso em outro lugar. O que é, de fato, Auschwitz senão a industrialização da morte, a “fabricação dos cadáveres”?

Em linha com seu anti-semitismo metafísico, Heidegger vê, portanto no extermínio um “auto-aniquilamento”. A Judenschaft, a “comunidade dos hebreus” – escreve em 1942 – “é na época do Ocidente cristão, isto é, da metafísica, o princípio de destruição”. Um pouco mais adiante acrescenta: “Somente quando aquele que é essencialmente “hebraico”, em sentido metafísico, luta contra o que é hebraico, é adicionado o cume da auto-aniquilação da história”.

A Shoah teria então um papel decisivo na história do Ser, porque coincidiria com o “sumo cumprimento da técnica” que, depois de ter usurpado toda coisa, consuma a si mesma. Em tal sentido o extermínio dos hebreus representaria aquele momento apocalíptico no qual aquilo que destrói acaba por autodestruir-se. Cume “da auto aniquilação da história”, a Shoah torna, portanto, possível a auto-aniquilação do Ser”.

Mas, atinge-se este cume? Se auto-aniquila o hebraísmo mundial em Auschwitz? No termo não deveria haver vencedores e vencidos – categorias ainda metafísicas. Antes é o Hebreu que é o fim que deve simplesmente acabar; somente assim pode emergir o “outro início” e entrever-se a nova manhã européia.

Quando Heidegger escreve, em 1942, as oficinas hitlerianas da morte funcionam em ritmo cerrado. No entanto, após a guerra, o “cume da auto-aniquilação” não parece atingido. Os agentes da maquinação – malgrado as milhões de mortes – poderiam até parecer vitoriosos. E então constituiriam um perigo assustador para os alemães, porque os arrastariam para dentro de sua “engrenagem da morte”.

Depois de 1945, Heidegger observa: os “elementos estranhos” continuam a “nossa defraudada essência”. E se interroga sobre os alemães, sobe a “facilidade com que se deixam seduzir pelos estrangeiros”, sobre sua “incapacidade política”, sobre a “radicalidade com que executam até os erros mais gritantes”. No fundo, a posição de Heidegger não é dessemelhante daquela de Carl Schmitt de muitos outros alemães que se sentem derrotados, mas só militarmente e só de forma temporária. Os hebreus, eliminados do corpo da nação, são percebidos como uma presença espectral e perturbadora. No volume 97 dos Cadernos pretos comparece, a este propósito, uma longa anotação de Heidegger que por certo fará discutir. A ocasião é oferecida pelos volantes distribuídos à população alemã pelo comando aliado, nos quais, sob as fotos dos Lager liberados, está escrito: “Estas ações infames são culpa vossa!”.

Heidegger replica: “A falta do reconhecimento deste destino (o destino do povo alemão), o ter-nos reprimido no vosso querer o mundo, não seria talvez uma “culpa”, e uma “culpa coletiva” ainda mais essencial, cuja enormidade não pode ser mensurada pelo “horror das câmaras de gás”, uma culpa mais terrível de todos os “crimes” oficialmente “estigmatizáveis”, da qual ninguém se escusará no futuro? Já agora se intui que a terra e o povo alemães não são senão um só campo de concentração (ein einziges Kz) – como o mundo ainda não viu e o mundo não quer ver – um não querer que bem mais se quer e bem mais consciente da nossa ausência de vontade para a selvajaria do nacional-socialismo”.

Os aliados não compreenderam a missão dos alemães e os frearam em seu projeto planetário. Este crime seria bem mais grave do que todos os outros crimes, esta culpa não teria termos de comparação, nem sequer com as “câmaras de gás” (expressão inserida entre aspas!). Para a história do Ser, a verdadeira e incomensurável má ação é aquela realizada contra o povo alemão que deveria ter salvado o Ocidente. 

Mas, Heidegger crê que nem tudo esteja acabado – precisamente porque o “cume da auto-aniquilação” não foi atingido. Ainda existe um futuro para a Alemanha, e para a Europa guiada pelo povo alemão. Multiplicam-se, agora, os interrogativos. Heidegger pensava num Quarto Reich? E por que, na metade dos anos Setenta, projetou a publicação dos Cadernos pretos? O que se esperava da Europa na qual nós hoje vivemos? Por certo seria simples – como parece sugerir Emanuele Severino – deixar de lado os Cadernos pretos. Mas, quem o impede é o próprio Heidegger. Aqui, de fato, não se trata de documentos históricos (como no caso aberto há décadas por Victor Farias), e sim dos próprios escritos do filósofo, estritamente conexos com o restante de sua obra. Pode-se, então, entender a exigência de reler, por exemplo, Ser e Tempo – como o fez na convenção de Paris o jovem filósofo israelita Cédric Cohen-Skalli, comparando Heidegger a Walter Benjamin. O que não quer dizer, como pretenderiam alguns, proscrever ou banir Heidegger, mas confrontar-se com a complexidade de sua reflexão de modo aberto e crítico. Seria talvez esta, para a filosofia, a ocasião para pensar, em sua profundidade abissal, a Shoah.

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