"Falar em nome de Deus ou da religião pode render frutos entre um eleitorado religioso", avalia o pesquisador
Na última semana, o culto em memória a Charlie Kirk se tornou um megaevento de exaltação do nacionalismo cristão. Na ocasião, políticos assumiram o microfone para instrumentalizar a fé em nome da política, exaltando o “patriotismo”, a “fé em Deus Todo-Poderoso” e as virtudes do casamento e da família tradicional. A fala mais controversa do evento ficou por conta de Donald Trump, que, com sarcasmo, rebateu Erika Kirk, afirmando que “odeio meus adversários e não quero o melhor para eles", alimentando a retórica de confronto e aniquilamento dos inimigos ou daqueles que professam ideias diferentes.
O exemplo de Trump ilustra como líderes políticos, em todo o mundo, fazem discursos apelando aos valores tradicionais e à fé, ao mesmo tempo que transformam as religiões em amplificadores do ódio e da violência. Na avaliação do cientista político Vinícius do Valle, “isso pode ocorrer quando os valores mobilizados atentam contra a liberdade e a própria existência de outros grupos, religiosos ou não [...] produzindo-se um enquadramento que desumaniza, autoriza moralmente a hostilidade e, não raro, encoraja a ação violenta por parte de seguidores”. A questão, aponta, não é o “valor tradicional em si, mas o seu enquadramento”.
No Brasil, até as escolhas das passagens bíblicas servem para instrumentalizar a fé para fins políticos no período eleitoral. Nas eleições de 2022, por exemplo, um braço das Assembleias de Deus “trazia explicitamente uma adaptação do discurso religioso para as eleições nos cultos anteriores aos pleitos eleitorais”, aponta o professor na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Há um “enquadramento da eleição como uma guerra espiritual do bem contra o mal”, complementa.
Assim, a religião vem sendo usada pela extrema-direita como uma ferramenta discursiva para criar um senso de pertencimento, restaurar a ordem social e avançar suas pautas em instituições políticas e sociais. Nesse sentido, para o entrevistado, “temos assistido a tentativa de igrejas e lideranças transformarem pertencimento religioso em capital político”.
Vinícius do Valle ainda comenta sobre os possíveis impactos de uma efetiva transição religiosa, indicando que a direita pode ser a grande beneficiada dessa mudança. “Caso a proporção de evangélicos que votam em candidatos à direita continuar próxima de 70% do grupo – como foi em 2018 e 2022 – podemos esperar um fortalecimento do campo da direita na política nacional”, assinala. Mantida a taxa de crescimento dos evangélicos, conforme o último Censo do IBGE, para o pesquisador, a transição “deve se dar entre as décadas de 2040 e 2050”.
Vinícius do Valle (Foto: Le Monde Diplomatique Brasil)
Vinícius do Valle é doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade. Membro do grupo de pesquisa Pensamento e Política Brasileira da Universidade de São Paulo (USP), é professor da Faculdade Santa Marcelina. Autor de Entre a religião e o lulismo (Editora Recriar).
IHU – Como os líderes políticos e religiosos mobilizam a fé para promover uma guerra cultural entre direita e esquerda?
Vinícius do Valle – O conceito de “guerras culturais”, popularizado no debate norte-americano a partir do fim dos anos 1980, foi inicialmente mobilizado para analisar a disputa política entre conservadores e progressistas nos Estados Unidos e chega ao Brasil na medida em que a política nacional, com suas especificidades, reproduz parte dessa dinâmica americana. Penso nesse conceito, também, no presente, como uma forma de estruturação do debate público, que se dá por uma polarização em que os polos se orientam um em relação ao outro, disputando narrativas – e, a partir de determinado momento, principalmente nas redes sociais. Estamos falando de temas que envolvem papéis de gênero e família, sexualidade, pautas raciais e LGBTQIA+, além de questões como a forma de lidar com a criminalidade, a regulação das drogas e a relação com a religião. Em grande medida, um polo advoga a ampliação de direitos e liberdades, enquanto o outro tenta revertê-los e restaurar padrões marcados por hierarquias de gênero e raça. O problema é que, nessa configuração, a conversa – dos dois lados – vira muito mais sinalização para dentro do grupo e demonização do outro do que debate concreto de políticas.
Dito isso, como os líderes religiosos atuam nessa configuração? Se estamos falando de disputa de valores, esses valores podem ser relacionados com a fé e a religiosidade das pessoas. Nesse sentido, é possível encontrar lideranças mobilizando sua fé para atuar nos mais variados tópicos, com as mais variadas posições. A despeito dessa pluralidade, o que tem sobressaído no debate público é a atuação de lideranças religiosas na defesa de papéis tradicionais de gênero e família, na oposição a direitos das populações LGBTQIA+ e ao aborto, e na acusação da esquerda de ser responsável por uma suposta “degradação moral” da sociedade. Nesse enquadramento em que essas lideranças se aliam com setores e políticos da nova direita, também há a absorção de outras pautas desse campo, como o direito ao porte de armas, a agenda ultraliberal, entre outros.
IHU – Qual o peso da religião na política brasileira?
Vinícius do Valle – Gosto de uma formulação que ouvi recentemente da antropóloga Paula Montero em um evento: “Religião e Política não são coisas inequívocas no mundo, mas sim conceitos que vão abarcando diferentes fenômenos ao longo da história”. Tendo isso em mente, poderíamos perguntar: qual religião, quando e de que forma ela é vista como peso e para qual política brasileira?
Certamente, no último período, as discussões e o incômodo a respeito da religião na política institucional partem principalmente do fato de igrejas e lideranças evangélicas terem se organizado para disputar eleições, intervir no debate público e disputar a condução de políticas a partir de seus preceitos religiosos. Essa atuação tem se dado tanto no âmbito das pautas relacionadas às questões de gênero, sexualidade, direito ao aborto, quanto também no âmbito de uma agenda corporativa, que busca benefícios fiscais a igrejas e pastores, por exemplo. No Congresso Nacional, nas últimas décadas, essa agenda tem sido levada a cabo pela bancada evangélica e seus aliados. O governo Bolsonaro encampou várias dessas propostas e, além disso, selecionou quadros para ocupar postos no Estado a partir de critérios religiosos e da defesa dessa agenda. Se isso aumentou o poder e a visibilidade desse segmento, por outro lado também chamou atenção das pessoas e gerou reações e uma maior discussão pública sobre o estado atual dessa relação entre fé e política.
IHU – Nesse sentido, até que ponto Deus é reduzido a um instrumento meramente ideológico do poder?
Vinícius do Valle – Se falamos em termos de estratégia eleitoral, falar em nome de Deus ou da religião pode render frutos entre um eleitorado religioso. Temos assistido a essa tentativa de igrejas e lideranças transformarem pertencimento religioso em capital político. Não gosto de pensar em termos da sinceridade ou não de tais práticas, mas o fiel, tanto como eleitor quanto como religioso, pode fazer esse juízo e, em algum momento, achar que o nome de Deus ou da sua fé estão sendo “reduzidos” ou instrumentalizados para a busca de poder de lideranças. Esse é um risco que tais igrejas e lideranças estão sempre correndo quando fazem uso dessa estratégia.
IHU – Como o apelo de líderes políticos aos valores tradicionais e à fé transforma as religiões em amplificadores do ódio e da violência?
Vinícius do Valle – Isso pode ocorrer quando os valores mobilizados atentam contra a liberdade e a própria existência de outros grupos, religiosos ou não. Quando se prega, por exemplo, que a população LGBTQIA+ ou os professantes de religiões de matriz afro-brasileira são “veículos do demônio”, produz-se um enquadramento que desumaniza, autoriza moralmente a hostilidade e, não raro, encoraja a ação violenta por parte de seguidores. O mecanismo costuma passar por três movimentos:
1) nomeação do inimigo em linguagem religiosa;
2) deslegitimação moral (“não merecem direitos”, “ameaçam nossas crianças”); e
3) sinalização de permissão – explícita ou ambígua – para a agressão.
Mas é claro que nem toda mobilização de “valores tradicionais” opera nessa chave. Esses valores podem ser enquadrados em termos de cuidado comunitário, por exemplo, e vir acompanhados de sinalizações claras contra a violência. Em suma: o problema não é o “valor tradicional” em si, mas o seu enquadramento.
IHU – Como ocorre a instrumentalização de pautas sensíveis e que mobilizam a sociedade, como o aborto, por exemplo, por líderes políticos e religiosos?
Vinícius do Valle – Acho importante dizer que há formas legítimas de se discutir quaisquer temas a partir de diferentes visões de mundo, que podem inclusive se relacionar ou serem influenciadas por visões religiosas. E é legítimo também que se busque engajar a sociedade e disputar na arena pública suas ideias. Dito isso, acho interessante observar como o tema do aborto é muitas vezes utilizado por setores religiosos mais como um tema mobilizador do que como um objeto de discussão sobre política pública. Isso aparece quando a pauta vira eixo de campanha para cargos que não têm competência legislativa sobre o tema – ou cujo papel de gestão é indireto e regulado por normas de outra esfera. É comum, por exemplo, o aborto ser objeto de discussão em campanhas de candidatos a vereadores ou conselheiros tutelares. Isso acontece porque é um assunto que sinaliza valores e funciona como atalho de preferências. Faz sentido e é do jogo político, mas ao mesmo tempo acaba sendo uma pauta que ocupa o espaço de outras discussões importantes e mais relacionadas ao escopo dos cargos.
IHU – Como a manipulação da Bíblia e o sequestro da identidade religiosa pela identidade política convertem as virtudes cristãs em teorias conspiratórias?
Vinícius do Valle – As teorias conspiratórias operam a partir de uma sensação de que “eu sei de algo que outros não sabem”. Elas ganham adeptos quando há desconfiança nas interpretações usuais dos fatos e nas instituições que as sustentam – ciência, universidades, jornalismo. Isso se relaciona muito bem com uma política do tipo populista – de elites contra o povo. Parte do que constitui o surgimento desses novos movimentos de direita ao redor mundo é a ideia de que as universidades, o jornalismo, o mundo artístico e o poder político foram cooptados por uma elite progressista. Isso alimenta teorias conspiratórias das mais diversas.
No mundo religioso, esse problema geralmente ganha contorno a partir de uma leitura única e interessada da Bíblia sendo enquadrada como uma identidade política, que passa a definir quem são as “forças de Deus” e quem são as “forças das trevas”. Então, se selecionam partes específicas do texto bíblico como se fossem respostas imediatas ao presente e transformam essas máximas em identidades do seu campo político. Em seguida, passa-se a entender outras visões e outras plataformas políticas como falseações e ataques à sua fé que já estavam previstos biblicamente, como parte de uma guerra do bem contra o mal. Essa chave é sedutora porque confere missão espiritual a objetivos políticos. E ela funciona especialmente onde há descompasso: muita confiança interna nas autoridades e redes do próprio grupo religioso e baixa confiança externa nos demais grupos, nas instituições, na democracia e, por vezes, na própria sociedade.
IHU – É possível afirmar a existência de um planejamento prévio para balizar as escolhas das passagens bíblicas para instrumentalizar a fé para fins políticos (criação de uma agenda de discussões conforme a pauta política)?
Vinícius do Valle – Para falar especialmente no universo evangélico, temos que ter em mente que há uma pluralidade em termos denominacionais, teológicos, de dinâmicas de culto, de organização interna denominacional e até ideológica. Portanto, não há uma coordenação central de igrejas se planejando para adequar o conteúdo dos cultos a uma certa visão dos acontecimentos políticos. Algumas denominações específicas podem fazer adequações em momentos-chave, mas isso não ocorre em termos amplos nem durante todo o tempo. Agora, o que há é uma adequação que cada igreja que lança ou apoia candidatos – principalmente ao Legislativo – faz para o momento da campanha eleitoral. Durante minha pesquisa de mestrado e doutorado, entre 2011 e 2018, observei como isso ocorria em um braço das Assembleias de Deus, que trazia explicitamente uma adaptação do discurso religioso para as eleições nos cultos anteriores aos pleitos eleitorais. Temos registros, depoimentos e evidências de que o bolsonarismo amplificou e intensificou essa prática. Em 2022, especificamente, defendo que houve uma mudança no registro desse discurso eleitoral.
Se antes ele ocorria como um aparte dos cultos – e principalmente do culto imediatamente anterior ao pleito –, nesse pleito, vimos episódios como o da ex-primeira-dama em uma Igreja Lagoinha, falando das eleições em meio a usos da glossolalia (ou seja, do falar em línguas estranhas) e a expressões corporais que indicavam não apenas a sua própria voz, mas uma voz entendida como sendo do fogo do Espírito Santo. Esses episódios, que também contam com o enquadramento da eleição como uma guerra espiritual do bem contra o mal, mostram que um elemento central do registro religioso passou a ser enquadrado como registro eleitoral. Há uma diferença aí. Mal comparando, é como a diferença entre um pai-de-santo falando sobre política no intervalo de uma celebração e ele falando incorporado por uma entidade.
IHU – Existe algum indício de desgaste da narrativa bolsonarista dentro das igrejas evangélicas? Como avalia o apoio evangélico ao bolsonarismo? Que personagens ilustram bem essa relação?
Vinícius do Valle – Sim. Durante o pleito de 2022, houve registro de expulsão de pastores e fieis que se rebelaram contra o apoio explícito de suas instituições à campanha bolsonarista. Também há registros de pessoas que mudaram de igrejas ou se tornaram “desigrejados” pelo mesmo motivo. Temos alguns relatos nesse sentido no livro que organizei com os colegas Tereza Spyer e João Barros II, intitulado Cruzadas Contemporâneas: política e guerra cultural evangélica no Brasil (Ed. Recriar). Da mesma forma, é falso dizer mesmo que os evangélicos que votaram em Bolsonaro em 2022 são bolsonaristas convictos. No artigo que publiquei recentemente com a socióloga Esther Solano (Evangélicos nas eleições nacionais de 2022: um público em disputa), trouxemos relatos de grupos focais no período eleitoral, em que as pessoas trazem incômodos com a figura de Bolsonaro e sua família. O que se destaca como objeto de crítica é, principalmente, o papel do ex-presidente na condução da pandemia de covid-19, seu linguajar público e a defesa do armamento da população.
No âmbito institucional também vejo mudanças. Uma ala importante da bancada evangélica está em partidos da base do governo Lula. Dentro dela, há nomes como Cezinha de Madureira (PSD) e Otoni de Paula (MDB), que abertamente defendem uma postura mais pragmática na relação com o governo. Dificilmente veremos, em 2026, os candidatos evangélicos se posicionarem de forma tão intensa e em quase unanimidade no campo bolsonarista.
IHU – Uma das ideias centrais da Teologia do Domínio, defendida pelos cristãos conservadores, é a dominação religiosa do Estado laico. Quais os perigos para a democracia diante da composição de um Estado cristão?
Vinícius do Valle – Um Estado que não respeite a liberdade religiosa dos seus cidadãos não pode ser chamado de democrático. Dito isso, há um exagero na ideia de que há um grupo coeso, amplo e politicamente relevante entre os evangélicos defendendo uma teocracia no Brasil. Tampouco há apoio social para tal. Além disso, as instituições democráticas – ao menos em tese – possuem mecanismos de reagir a tentativas nesse sentido.
IHU – Já é inegável a articulação da extrema-direita mundial. Como a religião se tornou o braço forte da construção desse projeto de poder dessa articulação?
Vinícius do Valle – Na narrativa de que há uma elite cultural desterritorializada, globalista e progressista contra “o povo”, o apelo à religião, a uma ideia de tradição e a símbolos nacionais aparece como algo que produz sentido e verossimilhança. A religião também oferece uma linguagem que alcança vastos estratos da população. O uso dessa linguagem por grupos da direita e, em especial, da extrema-direita para se contrapor a pautas de esquerda deu a esses grupos um alcance importante.
Agora, esse apelo religioso varia nas versões nacionais da extrema-direita. Nos Estados Unidos, no Brasil e na Rússia, por exemplo, ele me parece mais forte do que em países como Alemanha e França. No Brasil, a influência do nacionalismo cristão norte-americano é muito visível: há intercâmbio de lideranças e pautas, e segmentos do campo evangélico brasileiro reverberam agendas de evangélicos dos EUA. Em alguns casos, essas pautas encontram eco; em outros, batem no contexto socioeconômico brasileiro. É o caso da defesa do homeschooling e da pauta armamentista: apesar das tentativas de importação, não ganharam apoio popular amplo.
IHU – Estimativas indicam que o número de evangélicos deve superar o número de católicos, no Brasil, na próxima década. Quais podem ser os impactos políticos desta transformação?
Vinícius do Valle – O último censo frustrou as expectativas de quem esperava uma transição religiosa do catolicismo para o evangelicalismo já no início de 2030. Esperava-se um número entre 30% e um terço da população brasileira se declarando evangélica no censo de 2022. No entanto, esse número foi de apenas 26,9%. Se tal transição de fato ocorrer, ela deve se dar entre as décadas de 2040 e 2050. É preciso ainda esperar para ver o fôlego do crescimento evangélico nas próximas décadas, bem como a capacidade de reação dos outros grupos religiosos.
É relacionado com essa transformação que devemos pensar os impactos políticos. Caso a proporção de evangélicos que votam em candidatos à direita continuar próxima de 70% do grupo – como foi em 2018 e 2022 – podemos esperar um fortalecimento do campo da direita na política nacional. Mas nada garante que essa proporção seguirá nos mesmos padrões. Além disso, o próprio campo da direita no Brasil deve passar por transformações com a inelegibilidade e possível prisão de Jair Bolsonaro. Como tudo isso irá se acomodar ainda é uma incógnita.