Com um trabalho de pesquisa muito arguto e rigoroso, o entrevistado nos oferece, a partir de exemplos literários e históricos, a gênese de uma identidade gaúcha que é constituída a partir de uma sexualidade que não se organiza a partir de um binarismo
No senso comum rio-grandense a identidade do gaúcho é permeada por um imaginário que associa o homem é uma certa virilidade heterossexual, sintetizada na noção algo caricata de “macho”. Contudo, os exemplos históricos e literários – perspectiva sob a qual esta entrevista se sustenta – mostram que o Rio Grande do Sul foi e continua sendo palco de grandes exemplos de dissidência, seja no âmbito ficcional, seja do ponto de vista da posição política de escritores, pesquisadores e jornalistas. O caminho que pavimenta o atual reconhecimento desses artistas vem sendo trilhado desde o século XIX, mas as conquistas estão sempre sob a corda bamba.
“Não há avanço linear e constante. A segurança plena é ilusória. Mudanças no campo político, especialmente quando abraçadas a expressões de religiosidade cristã fanatizadas, tiveram e têm o poder de frear e até mesmo de barrar a caminhada e até mesmo de fazer andar para trás. A disputa no campo político-partidário não é a única forma de luta. A literatura, as artes plásticas e as ciências podem estabelecer diálogos e provocar reflexões para que o público LGBTQIAPN+ não necessite gastar tempo, fragilizar a saúde mental e física para alcançar os direitos que são garantias para os demais”, explica Jandiro Adriano Koch, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Embora o tema da homossexualidade, por exemplo, seja objeto de personagens e textos produzidos no RS desde o fim do século XIX, a primeira obra totalmente dedicada ao tema que ganhou visibilidade é O internato, de Paulo Hecker Filho, nos anos 1950. “Antes de Paulo Hecker Filho, no Rio Grande do Sul, não existiu um livro inteiro em que o personagem central fosse um homossexual masculino revelando seus conflitos”, pontua Koch. “Internato foi um trabalho destemido, com um tópico ao qual retornou ao longo da produção intelectual. Nos anos 1950, até mesmo os escritores homossexuais do Rio Grande do Sul eram muito sutis ao apresentar o homoerotismo. Não era considerada matéria para abordagens não sensacionalistas. Como lidar com um heterossexual gaúcho, pretendendo literatura séria, enfocando a homossexualidade?”, complementa.
“O homoerotismo foi tema na literatura sul rio-grandense desde o século XIX. Muitos acreditem que é um fenômeno atual, o que não se sustenta. O que muda é a forma com a qual o conteúdo é abordado, geralmente em consonância com a leitura majoritária da época, portanto, antes, correlacionado ao pecado, ao vício, à perversão, à doença e ao desvio psicológico – com raras exceções”, descreve o pesquisador.
Ainda que não exista nada de muito novo em pensar a identidade gaúcha a partir da dissidência de gênero – algo que ocorre há mais de um século na literatura –, trazer o tema à baila torna-se algo sempre urgente, diante de uma onda crescente de violência e intolerância contra minorias políticas. “Aposto que o repertório que resulta desse olhar investigativo pode amadurecer o autoconhecimento sobre a ancestralidade LGBTQIAPN+; constituir fonte para o letramento no estado sulino; suprir lacunas resultantes do infausto epistemicídio; se apresentar como suporte para diversas iniciativas, tornando-se aliado nas lutas em outras frentes”, frisa Jandiro Koch.
Jandiro Koch (Foto: Reprodução das redes sociais do entrevistado)
Jandiro Adriano Koch é formado em História na Universidade do Vale do Taquari, especialista em Gênero e Sexualidade (2019) e escritor. Foi finalista do Prêmio Ages (2024), do Prêmio Açorianos de Livro do Ano (2021) e do Prêmio Açorianos na Área de Literatura e Humanidades (2021).
IHU – No campo social, quando e como ocorre a virada de reconhecimento ao que se chama dissidência de gênero? Quais os desafios ainda presentes na temática e qual a importância de se levantar esse debate tendo em vista os direitos civis?
Jandiro Adriano Koch – Discorrer sobre as incontáveis disputas, solitárias ou coletivas, para legitimar as dissidências de gênero como partícipes de mesmos direitos, na sociedade, significa ponderar sobre vários contextos históricos e geográficos em que surgiram agentes em autoafirmação e/ou em busca por mudanças. No final do século XIX, na Alemanha, eclodiram reflexões ligadas ao movimento científico, à advocacia e ao jornalismo. A existência de um terceiro sexo foi defendida por Karl Heinrich Ulrichs ao lançar a palavra uranismo; o termo homossexualismo foi cunhado por Karóly Maria Kertbeny; o Instituto de Ciência Sexual, liderado por Magnus Hirschfeld, centralizava estudos sobre a homossexualidade, além de auxiliar diretamente dissidentes de sexo e de gênero. Essa chama foi esmaecida e, em seguida, apagada pela ascensão nazista.
Embora não se faça essa amálgama em estudos, é interessante notar que o Rio Grande do Sul foi colonizado por pessoas que viveram na região em que se deram esses avanços. Existiram outros momentos-chave ao longo da história da humanidade, antes e depois. Mas tem sido habitual a lembrança somente daquilo que está nas proximidades do umbigo. É assim que o desabrochar dos movimentos identitários e da luta por direitos humanos, aqueles com ascendência no período de declínio da Ditadura Civil-Empresário-Militar, têm sido mais evocados no Brasil. Foi nesse período que uma incipiente militância gay, muito inspirada no que vinha acontecendo nos Estados Unidos, foi tecendo diálogos, nem sempre fáceis, com grupos políticos de esquerda. O final dos anos 1970 e início da década seguinte têm sido considerados como a fase de inflexão brasileira, especialmente porque as conversas, então no nascedouro, futuramente desembocaram na inclusão da pauta LGBTQIAPN+ em programas de governo. O ponto frágil dessa estratégia é que, não sendo uma mudança de imaginário, mas uma bandeira partidária, ela enfraquece ou desaparece quando partidos de oposição tomam o poder.
A história bem demonstra o vaivém quando se fala sobre temas vinculados à pauta de moralidade e de costumes. Não há avanço linear e constante. A segurança plena é ilusória. Mudanças no campo político, especialmente quando abraçadas a expressões de religiosidade cristã fanatizadas, tiveram e têm o poder de frear e até mesmo de barrar a caminhada e até mesmo de fazer andar para trás. A disputa no campo político-partidário não é a única forma de luta. A literatura, as artes plásticas e as ciências podem estabelecer diálogos e provocar reflexões para que o público LGBTQIAPN+ não necessite gastar tempo, fragilizar a saúde mental e física para alcançar os direitos que são garantias para os demais.
IHU – Mario Quintana, no poema Obsessão do mar oceano, faz referência a Antínous. Quem era esse personagem e como ele se conecta à discussão desta entrevista?
Jandiro Adriano Koch – Há muito tempo, Estados como o Rio de Janeiro e São Paulo estão à dianteira dos estudos sobre as dissidências de gênero e sexualidade. É mérito. Discordo, no entanto, de uma mania que eles mantêm, que é a de compartilhar suas descobertas como representantes dos “desviantes” do país inteiro. No livro O gaúcho era gay? Mas bah! (1737-1939), uma incursão nos pagos, demonstro que há fontes suficientes para realizar essas pesquisas no Rio Grande do Sul. Em solo gaúcho, as fontes têm sido reveladas de forma fragmentada ou em termos especulativos, embora bem refletidos, como o fez Mário Maestri no incontornável artigo O gaúcho era gay?. Aos poucos, a carência sobre a realidade sul rio-grandense tem sido sanada. É natural que as primeiras investidas tenham se dado sobre aquilo que está mais a mão, sobre o que é mais visível e fácil de apresentar, enquanto pessoas que viveram em armários e/ou bissexuais são mais difíceis de abordar – especialmente porque podem envolver terceiros, eventualmente prole e parentes ainda vivos e nada receptivos a compartilhar biografias não míticas.
Mário Quintana, nesse âmbito, é um sujeito enigmático. Embora exista quem o afirme assexuado, como apostava Paulo Hecker Filho, ou quem discorra sobre seus amores femininos, ainda vivem muitas pessoas que privaram de sua companhia, que pretendem que tenha sido homossexual relativamente conhecido, visto constantemente na Praça da Alfândega, vivendo tortuosos amores não correspondidos por rapazes. Há uma geração de poetas gaúchos, um pouco mais novos do que Quintana, que conseguiram incluir a homossexualidade em textos confessionais, embora ainda muito sutilmente. Entre eles, Walmir Ayala, Hilton Papini e Francisco Bittencourt, este integrante do conselho editorial do periódico Lampião da Esquina. Em relação a Quintana, o poema Obsessão mar oceano, construído em primeira pessoa, traz o autor se vendo refletido, na vitrina, como Antínous, que era o amado do imperador romano Adriano. Depois que Antínous faleceu em um sinistro não totalmente esclarecido, Adriano lamentou profundamente a morte do amado, erigindo em sua homenagem uma cidade e um templo. Antínous é, assim como o mitológico Ganimedes, um nome que pode aparecer, na literatura, como código.
Fernando Pessoa, sobre a sexualidade de quem muito se debate, também recorreu ao personagem. Somados os murmúrios populares, os versos, a solteirice, há fortes indícios de homossexualidade em Quintana. Em sendo real, muito provavelmente não interessa a uma sociedade que tem seu nome em uma das mais famosas casas de cultura do Estado. “Para que mexer nisso?” De alguma forma, isso pode ser correlacionado com o silêncio, em Novo Hamburgo, sobre a homossexualidade de Ernesto Frederico Scheffel, pintor e escritor de não ficção, que dá nome a um dos mais belos museus do Estado.
IHU – O que foi o jornal Lampião da Esquina e porque ele é parte incontornável da presença literária de temas e autores associados às minorias de gênero?
Jandiro Adriano Koch – A circulação de impressos específicos para dissidentes de gênero ou voltados a esse tema não foi inaugurada com o Lampião da Esquina. Em Pelotas, por exemplo, circularam o Maricolândia, o Clube dos Inocentes e o Mini Jornal Ponto Gay Clube. Fora do Brasil, existiram iniciativas nesse sentido desde o início do século XX. No Sudeste, com dois grupos de autores, um fixado no Rio de Janeiro e outro em São Paulo, o Lampião da Esquina inaugurou a imprensa gay alternativa nacional, aquela de maior fôlego, com matérias bem redigidas, abarcando especialmente a homossexualidade e a travestilidade. A interseccionalidade com o feminismo, a negritude, a questão indígena e a ecologia foi outra de suas marcas. Sem contar o namoro desconfiado com os partidos à esquerda, do que deve ter surgido a vigilância do Regime Militar, mais do que pelo conteúdo homoerótico.
Para criar essa consistência, um time formado por jornalistas e escritores homossexuais foi reunido. Dois nomes gaúchos fizeram parte do conselho editorial, o crítico de arte e poeta Francisco Bittencourt e o advogado João Antônio de Souza Mascarenhas. A formação, em relação à geografia, foi plural. Jean-Claude Bernardet, recentemente falecido, era belga de nascimento. Mesmo com essa diversidade, costuma-se creditar a experiência ao Sudeste, o que não confere. A circulação do periódico a nível nacional fomentou o começo brasileiro de uma militância mais aguerrida, que empregava a escrita como forma de luta. Além de jornal, o Lampião manteve uma editora e uma livraria, que despachava volumes por correspondência, com títulos voltados ao interesse gay. Participaram o gaúcho Paulo Hecker Filho, com O digno do homem, e Bittencourt, com uma seleta de piadas para gays intitulada A bicha que ri, entre muitos outros. Jornal, editora e livraria com atenção voltada para o público LGBTQIAPN+ constituíram um exemplar e empolgante modelo de como fazer.
IHU – Quem foi Manuel de Araújo Porto Alegre e como seu livro Lanterna mágica: periódico plástico-filosófico (1844) tratou do tema da dissidência de gênero na literatura?
Jandiro Adriano Koch – É interessante perceber que muitos nomes fortes, na literatura em que há registros de dissidências de gênero e sexo, não viveram muito tempo em solo gaúcho. Certa feita, denominei de diáspora gay esse quase fenômeno, que faz com que indivíduos como Bittencourt, Ayala, Papini, Mascarenhas, Milton Perrsson e o próprio Caio Fernando Abreu deixassem a terra natal para buscar realização, na vida privada e profissional, no Sudeste. Talvez essa migração esteja associada ao sentimento de fantasmagoria do outro lugar, que, na conta do filósofo Didier Eribon, é uma sensação, especialmente em pessoas oprimidas, de que o mundo pode ser mais acolhedor em outro espaço. A busca pela felicidade alhures e as lembranças não muito boas do Rio Grande do Sul fazem parte das narrativas de boa parte deles.
Muito antes, Manuel de Araújo Porto Alegre, nascido em Rio Pardo, aparentemente heterossexual, também migrou para lá, destacando-se como pintor, caricaturista, escritor e arquiteto. Furor criativo, foi responsável pela revista Lanterna mágica, considerada inovadora ao associar caricaturas com texto de alto potencial satírico em relação à política e à vida social. Circulando entre 1844 e 1845, foi centrada nos personagens Laverno e Belchior, amigos e trambiqueiros. Em uma dessas edições, Laverno se apresentou como uma cantora de ópera. Alegou que fora amaldiçoada, condenada a viver como mulher à noite, enquanto se apresentava como homem à luz do dia. Lavernelli/Laverno não é apenas alguém que se traveste. A ambiguidade sexual está materializada. Ela se mostrou apaixonada por Belchior, que, a despeito de muita desconfiança, chegou a manifestar reciprocidade. Assim como para Qorpo-Santo, algum tempo adiante, com seus personagens dúbios em peças teatrais, para Araújo Porto Alegre, que era casado e com filhos, pode-se conjecturar a feitura da representação de tipos reais ou a criação ficcional – as duas com apelo ao chiste e/ou ao “absurdo”. Essas figuras são eterno dilema, entre representação da realidade ou invenção, para quem, como historiador, tenta se debruçar sobre a literatura como fonte histórica.
IHU – Como a tensão sexual entre personagens que performam o mesmo sexo, e o exemplo mais conhecido talvez seja Riobaldo e Diadorim de Grande Sertão: veredas, é um enredo recorrente na literatura e já estava presente na peça O castelo de Oppenheim, de Manuel José da Silva Bastos, na primeira metade do século XIX?
Jandiro Adriano Koch – Talvez porque tenham como intuito o emprego em cena, no púlpito, as peças teatrais costumam não receber muita atenção de pesquisadores de uma suposta literatura LGBTQIAPN+, que tem o propósito de deleite direto, sem intermediários, pelo leitor. Walmir Ayala, por exemplo, produziu dramaturgia calcada em homoerotismo, peças que lidaram com rechaço pelo que se via, então, como um excesso de retorno ao tema. O teatro humorístico foi o que mais azo deu para incorporar as dissidências de gênero. Esses escritores não lidaram com as críticas, porque os “desviantes” da norma poderiam ter esse “uso” de divertir os “normais’. É a lógica do bobo da corte bem retratada por Erving Goffmann em Estigma. Zeferino Brasil empregou essa veia cômica, em personagens dissidentes, em peças curtas.
Um outro tipo de figura, que apareceu no mundo da literatura, é aquela com conformações andróginas, que excita o “mesmo sexo”, gerando deslocamento e tensão. Ao não se concretizarem os desejos entre “iguais”, porque a “verdadeira” identidade acabava revelada, se apaziguava a crítica heterocisnormativa, sempre a postos para defenestrar um provável incentivo ao que condenava como vício, pecado, erro da natureza ou doença. Parece um subterfúgio relativamente comum na literatura.
Thomas Mann, que era homossexual, mas casado, em A montanha mágica, registrou que Castorp enxergava um antigo colega de aula, de nome Pribislava Hippe, na amada Clávdia. Ou seja, um rosto masculino, preso à sua memória, foi projetado na amada – algo totalmente gay, embora possa passar despercebido ao leitor desatento. Guimarães Rosa estendeu a tensão, dizem alguns que só não tornou seu clássico em um romance homossexual por medo. Naquele tempo, os escritores ainda não lidavam bem com o tema, ainda mais se pertencentes ao cânone ou com intenções de integrar o “Olimpo”.
Graciliano Ramos, é sabido, preferia ficar sem comer do que se alimentar com a comida feita por um homossexual, isso enquanto esteve na prisão. O castelo de Oppenheim é mais um desses textos, que lança mão de um breve tensionamento erótico. A resolução para o impensável homoerotismo surgiu com a revelação do “disfarce” de Henrique Morel, que era, na verdade, a jovem Elfride. A solução de continuidade, na revelação de que era apenas travestimento, passou pelo crivo, livrando o texto de acusações de imoralidade. É quase um tema universal – um recurso certamente diferente para autores gays e não gays.
IHU – Qorpo-Santo (José Joaquim de Campos Leão) é um personagem incontornável da cultura e literatura gaúchas. Como e onde o tema da dissidência de gênero apareceu em sua obra?
Jandiro Adriano Koch – A parte mais conhecida da escrita do controverso Qorpo-Santo é a obra teatral. Mas ele tem bibliografia bem mais extensa, considerada interessante pela peculiaridade, embora pouco acessada. É na Ensiqlopedia que é possível identificar um homem conturbado pela separação da esposa, que passa a ver as mulheres como inimigas, que sugere ter vivido um tempo sem manter qualquer relação sexual, portanto imaculado (de onde Qorpo-Santo). Nesse ínterim, conhecidos seus sugeriram que, à falta do sexo feminino, mantivesse relações com um homem, ao que reagiu extremamente indignado. Em A separação de dois esposos, Tamanduá e Tatu vivem uma união espiritual, mas Tatu reage mal quando Tamanduá sugere a junção carnal, alegando ser o “vício mais danoso que o homem pode praticar.” Em O hóspede atrevido, o assédio sexual “homossexual” aparece. Em outros momentos, em poesias ou prosa, ele recorre a figuras travestidas, andróginas, mas nunca em retrato que não consoante com o preconceito vigente. A Bíblia foi um de seus textos norteadores, provavelmente origem de parte do seu imaginário. Destacar a leitura negativa que fazia das relações entre pessoas do mesmo sexo serve mais para amainar o entusiasmo de alguns autores que recuperaram seu nome do que para retirar o mérito de ter incluso o tema na obra. É possível pensar que havia quem o fazia e quem acreditava ser algo tão abjeto que não merecia sequer ser mencionado. Mas é só nessa perspectiva que sua obra, nesse assunto, ganha destaque. Definitivamente nem o autor e nem o enredo eram gay-friendly.
IHU – Como o livro Quadros horripilantes, do pelotense Francisco de Paula Pires, inserido no gênero naturalista, abordou o tema da homossexualidade?
Jandiro Adriano Koch – Esse volume tem um histórico interessante. Guilhermino César fez uma crítica ácida, destruindo o romance em relação à forma. Não discorreu muito sobre o conteúdo, embora tenha grifado tratar de “despudores chocantes”. Como há vários exemplos de escritores não gaúchos, de verve naturalista, que abordaram as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, a exemplo do conhecido Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, me convenci de que valia investir na localização desse trabalho considerado desaparecido. Ainda mais porque eu já descobrira um pequeno texto escrito pelo bageense Pardal Mallet, que se expressou pelo naturalismo, que foi transcrito no meu livro Babá, esse depravado negro que amou. Depois de muitos anos, uma cópia de Quadros horripilantes foi encontrada, em Pelotas, com o professor Eduardo Arriada. Logo mais um original apareceu na Biblioteca de Rio Grande. Acabou sendo relançado, com posfácio e reunião de textos meus, pela editora Bestiário (2025).
Em 1883, data anterior aos demais livros na literatura nacional, o pelotense Paula Pires apresentou várias “lésbicas” em “Adelina”, o segundo capítulo do livro. Para historiadores das questões de gênero, é um farto documento, pois trouxe várias personagens mulheres, “companheiras” e “camaradas”, que viviam “desprezando os prazeres naturais”. Algo idiossincrático, também, é ter ambientado a narrativa em solo gaúcho, mormente entre as cidades de Pelotas e Porto Alegre. A visão sobre o assunto está atrelada à leitura majoritária dos escritores naturalistas, que tinham um núcleo em Pelotas. Essa visão estava amarrada às interpretações científicas, que, em sua maioria, concluíram que as relações “não naturais” eram doentias, resultantes do meio e da biologia. Essa leitura, hoje em dia, pode ser encarada como obsoleta – embora seja evocada, em muitos debates acirrados, como argumento da ultradireita.
À época, o enquadramento como doença representou um relevante salto para o futuro, com a retirada, ao menos em boa medida, da homossexualidade das mãos dos religiosos, que a consideravam um terrível pecado. O dogma da Igreja é incontornável. A ciência evolui, constantemente negando hipóteses de seu próprio passado. Paula Pires tinha um bom currículo. Adepto do naturalismo, do positivismo, antiescravagista, a favor da educação da mulher e ateu. Era jornalista, poeta, com um sentido de apelo popular, de maior acesso dos leitores à literatura, de necessidade de educação das massas. Quanto à forma, Guilhermino César descreveu sua poesia e a prosa como insuficientes, pobres. Neste quesito, se usados critérios do Romantismo e de outras escolas literárias para enquadrar Quadros horripilantes, não há como desmentir Guilhermino César. Mas é devido dizer que os naturalistas não tinham tanto apego a esse funil e que defendo que escritores dessa escola literária devem ser analisados pelo que os diferenciava, o clamor dos novos tempos. Os propósitos nas palavras. Isso é uma vantagem de ser historiador, porque a área das Letras titubeia em relação a essa via exegética.
IHU – Já no século XX, como os textos Fructos do meu pomar e Lésbica, do militar e poeta João César de Castro, trataram do tema da homossexualidade?
Jandiro Adriano Koch – Enquanto a linguagem de Paula Pires tem o apelo popular do jornalismo, João César de Castro tinha uma escrita, de riqueza vocabular inconteste, muito rebuscada, ainda mais para os tempos atuais. Em “Lésbica”, que integra Fructos do meu pomar, descreveu Dona Berenice tentando fartar as “apléstias da vulva” com concubinas. Ele poderia muito bem ser inscrito na relação extensa de autores homens que recorreram à representação da homossexualidade feminina, algo que os deixava em posição segura, porque não estremecia a masculinidade. Essa instabilidade poderia acontecer com a descrição de relações homossexuais masculinas. A descrição da lesbianidade, nas mãos de homens, tomava dois rumos. O do macho voyeur que se empolga diante de duas mulheres em expressões eróticas. O do homem inconformado com a perda de alguma mulher para uma outra. As lésbicas foram inseridas em textos dos gaúchos Zeferino Brasil, Carlos Cavaco, Reynaldo Moura, José Garcia Margiocco, Erico Veríssimo, entre muitos outros.
Além de militar, é importante ressaltar que Castro tinha formação em Medicina, pela Faculdade de Medicina da capital gaúcha. Na tese, incorporou os estudos de Freud e, para discorrer sobre os homossexuais, recorreu aos estudos de alemães, que avançaram nessa área a partir da segunda metade do século XIX. Citou, textualmente, Richard von Kraft-Ebing e Karl Westphal, ambos flertando com a concepção de que as relações entre pessoas do mesmo sexo, ao não resultarem em procriação, eram perversões enquadráveis no campo médico. Também recorreu a Ivan Bloch, em trecho que destaca a ampla existência de pessoas com tendências homossexuais, ainda mais considerados os que permaneciam em latência, ou seja, nos armários. A possibilidade de ele ser um homem interessado, como voyer, na relação homoerótica lésbica, assim como a provável patologização do interesse homossexual, decorrente de sua formação profissional, são balançadas com a leitura de outro texto seu. Com indiscutível erudição, em “Dioscuros”, apresentou a descoberta erótica entre os jovens amigos Themiro e Celmo, que trocam um ósculo. Celmo, ao emergir das águas em que se banhavam, disse acreditar que o beijo fora o “início de uma violenta emoção que qualquer dia quiçá desvendemos.” Além da riqueza estética, Castro apresentou os personagens masculinos com naturalidade, sem envolvê-los em moralismo cruciante, aparentemente sem receio de julgamentos.
IHU – Como as questões atinentes às minorias sexuais e de gênero aparecem na obra de Erico Verissimo? Que livros merecem destaque?
Jandiro Adriano Koch – Sabe-se, do Erico, que caracterizou os tipos machistas sul rio-grandenses muito bem, homens e mulheres que se assustavam com qualquer deslocamento nos arquétipos binários e ratificados, por isso ficavam indignados ao se depararam com “essas porcarias, boites, dancings e não sei mais o que, com uns meninos afrescalhados, de gomina no cabelo [...]”. Os hábitos modernos, as roupas, que Rodrigo Cambará passou a ostentar, quando retornou de Porto Alegre, deixaram os familiares constrangidos e levaram às provocações do irmão Toríbio, a quem retrucou: “Achas que não sou bem macho [...].” Na toada de que as relações homossexuais vinham, a partir do final do século XIX, sendo interpretadas como doença, os escritores up-to-date lançavam mão dessa narrativa, aderindo a conclusões da área da psicanálise ou do campo da medicina. É assim que, recém-formado em Medicina, Rodrigo Cambará, ao ver o alfaiate Salomão Padilha, notório pelos “ademanes e pela voz efeminada”, concluiu que ele era um “pobre diabo”, que era “doente e como tal devia ser tratado.” Além de Salomão, que admirava a formosura de Rodrigo, “lindo como os amores”, outro homossexual, em O retrato, é Wolfgang Weber, integrante de uma filarmônica itinerante, que não tirava os olhos de Rodrigo. O amigo Chiru advertiu Rodrigo de que aquilo era “paixão cabeluda”.
Essas observações fóbicas, nos personagens, desenham o contexto desde O continente, quando o Capitão Rodrigo disse à esposa Bibiana: Se nosso filho “sair maricas, que Deus nos livre, atiro ele no primeiro perau que encontrar no caminho.” Há muitos trechos, nos títulos de Veríssimo, em que existe esse encontro entre o gaúcho macho e o maricas. O professor Libindo, de Incidente em Antares, é “o mais notório pederasta municipal”. Há ainda um Veríssimo que discorre sobre a homossexualidade feminina, quando, em Caminhos cruzados, destacou a relação entre Vera e Chinita. O ficcionista certamente teve ampla possibilidade de enriquecer seus personagens com aportes de histórias da própria família. Em Solo de clarineta, ele comentou que seu avô materno acreditava que “misturar doce com leite era coisa de bundinha”, de almofadinhas. Registrou que a farmácia em que laborava o seu pai, em Cruz Alta, era frequentada por um “pederasta”. Também narrou experiências pessoais. Quando Erico partiu para Porto Alegre, deixou uma namorada, mas evitou demonstrar sentimentos, porque “homem não chora”. Narrou o assédio de um professor marista e, mais tarde, quando tomou o trem de Washington para Chicago, ao ser abordado por um homem aparentemente embriagado, que deitou ao seu lado, com intenções sexuais, pediu que se afastasse. Ao lembrar do fato, disse ter sentido “certa piedade”, não reagiu de forma violenta e nem desprezou a figura, como certamente fariam seus personagens.
Erico defendeu a escritora Cassandra Rios, uma das mais perseguidas autoras brasileiras, a mais aguerrida no tema LGBTQIAPN+. Em um texto intitulado “Machismo à gaúcha”, aventou que o “machismo não deixa de ser uma espécie de neurose, uma medalha de herói em cujo verso se pode descobrir um homossexualismo latente”. Julgo necessário juntar esse Erico cronista, crítico, autobiográfico, para entender que seus personagens retratam uma época, mas que o machismo não é uma defesa sua, porque bem entendia o macho folclórico inventado no imaginário sulino. Ao se referir aos heróis másculos reverenciados, concluiu que “há uma curiosa tendência popular de achar que a coragem pessoal de um indivíduo pode redimi-lo de seus crimes e atrocidades.”
IHU – Um texto importante do gênero é Internato (1951), de Paulo Hecker Filho. Por que e como essa obra se tornou um livro incontornável sobre o tema homossexualidade na literatura rio-grandense?
Jandiro Adriano Koch – Erico Veríssimo tratou de personagens homossexuais como secundários, apesar de não serem numericamente desprezíveis. Reynaldo Moura deu protagonismo a um casal de lésbicas em A ronda dos anjos sensuais. Mas antes de Paulo Hecker Filho, no Rio Grande do Sul, não existiu um livro inteiro em que o personagem central fosse um homossexual masculino revelando seus conflitos. Muito menos um texto em que as relações sexuais tenham sido esmiuçadas, coisa que era relativamente comum quando ficcionistas abordavam a lesbianidade. Naquela época, Paulo Hecker era um agitador cultural, reuniu nomes como Vera Margot Mogilka, Paulo Bisol e Lineu Dias em torno da revista Crucial. Foi nesta publicação que Mogilka apresentou contos representando o amor entre mulheres, tendo como pano de fundo Porto Alegre, escandalizando os provincianos. Talvez tenha sido a primeira, senão uma das primeiras escritoras gaúchas a tirar o tema das mãos masculinas. Hecker, por sua vez, lançara Internato – com o objetivo de causar barulho, como um dia me disse Mogilka. Nas missivas, que dão conta de sua vida íntima, Hecker sempre se retratou atraído por mulheres. Foi casado duas vezes, teve prole. Mas Internato, pela explicitude, fez com que um número considerável de gays passassem a entrar em contato, acreditando-o homossexual.
Quando surgiu o jornal Lampião da Esquina, ele era amigo pessoal de Francisco Bittencourt, um dos editores, com quem trocava cartas frequentemente, algo que perdurou décadas. Hecker se tornou o correspondente, de Porto Alegre, para o Lampião. O livro O digno do homem, que também abrange a homossexualidade, apareceu para a venda pelas páginas do jornal alternativo. Hecker teve que enfrentar uma saraivada de críticas por ter publicado Internato, inclusive o curioso questionamento, de seus pares escritores, sobre a razão de ele, não homossexual, ter investido na abordagem. Para os colegas, ele seria confundido com um, o que certamente viam como algo muito ruim. Afinal de contas, homens escritores homens falando sobre o assunto deveriam se ater ao relato cômico, à conotação pejorativa. A centralidade e a pormenorização poderiam ensejar a imitação. Internato foi um trabalho destemido, com um tópico ao qual retornou ao longo da produção intelectual. Nos anos 1950, até mesmo os escritores homossexuais do Rio Grande do Sul eram muito sutis ao apresentar o homoerotismo. Não era considerada matéria para abordagens não sensacionalistas. Como lidar com um heterossexual gaúcho, pretendendo literatura séria, enfocando a homossexualidade?
IHU – Em meados do século XX muitos autores gays deixaram o RS. Por que isso aconteceu?
Jandiro Adriano Koch – A repercussão negativa do livro de Hecker talvez demonstre algo do provincianismo naquele tempo. Figuras do mundo literário e das artes plásticas, como Walmir Ayala, Francisco Bittencourt, Hilton Papini, João Antônio de Souza Mascarenhas, Djalma do Alegrete, entre outros, se sentiam sufocados no Sul, tanto no mundo artístico-profissional, quanto na vida privada. O Rio de Janeiro foi eleito como destino preferencial. Nas praias, os corpos bronzeados indicavam possibilidades de vivência homoerótica. Quando chegavam lá, os que aportaram antes os recebiam. Ajudavam-se mutuamente. Alguns se realizaram na literatura, como Ayala, autor premiado, enquanto outros se tornaram famosos em outros setores culturais.
Bittencourt ganhou reconhecimento como crítico de artes plásticas. Mascarenhas por atuar no fundamento da militância homossexual, que se dava largamente pela escrita. Os retornos ao Rio Grande do Sul, para alguns, se deram apenas para visitas e eventos. É provável que os pontos negativos, na capital gaúcha, fossem a geografia longe da praia e o ambiente conservador em vários âmbitos. A proximidade das famílias, quase sempre uma instituição de caráter policialesco, representante-mor do conservadorismo, era outro motivo para partir. Enquanto isso, o Rio de Janeiro tinha areia quente, corpos desnudos, o mundo artístico fervilhante. Não tão longe, mas não tão perto a ponto de serem acessados pela vigilância familiar. Gays são migrantes por excelência, ao menos foram, durante muitos séculos.
IHU – João Gilberto Noll, vencedor de sete prêmios Jabuti, é um dos nomes mais importantes da literatura gaúcha. Por que seus livros são pouco populares entre a comunidade LGBTQIAPN+?
Jandiro Adriano Koch – Provavelmente essa distância de Noll do mundo gay mais pop acontece por múltiplos fatores. Um deles é a opção por não ser militante, ao contrário do que se fazia parecer Caio Fernando Abreu, embora não gostasse de ver sua literatura dita como gay. A popularidade de Caio foi catapultada com a intrepidez demonstrada ao se assumir soropositivo. Outra razão é a forma. Noll tem uma literatura hermética, que tem um público mais nichado. Prêmios Jabuti, entre outros, são chamarizes para o público acadêmico e leitores cult. Mesmo nas universidades, é indubitável que os estudos de questões LGBTQIAPN+ são recentíssimos – vicejando depois dos estudos sobre mulheres, negros e indígenas. A vergonha em tomar as dissidências como assunto a ser estudado também atingiu os docentes. Houve um epistemicídio.
Depois que isso foi paulatinamente suprimido, muitos escritores têm sido objeto de atenção de dissertações e teses, sendo Noll uma constante. Mesmo assim, para fisgar os gays, em geral, é necessário atender aos anseios por saber quem está por detrás da caneta, da máquina de escrever, do computador. Muitos professores de Literatura, no entanto, querem se ater à obra, ao estudo da forma, à arte pela arte. Essa reserva resulta em um trabalho com alcance limitado em dias em que existe uma demanda de associação de obra com biografia, algo intensificado com a ascensão dos grupos identitários. Dessa maneira, mesmo sendo recorrente como tema acadêmico, os estudos sobre Noll não chamam a atenção de público maior. Enquanto Caio plantava bananeira, era boêmio, hippie e usuário de drogas, um todo sex-appeal, Noll tem aura de tímido.
IHU – Como as questões em torno da escravidão e da homossexualidade aparecem no livro Carcaça de negro (1988), de Mário Maestri?
Jandiro Adriano Koch – Embora Maestri pareça relativamente envergonhado por sua incursão na ficção, o livro é vanguardista e incomum. Não cheguei a ler a reedição, de 2023, que foi substancialmente ampliada, provavelmente para se despedir desse certo constrangimento em relação à primeira edição, de 1988. Além do mérito de ambientar a narrativa na Pelotas do tempo das charqueadas, no tempo da escravatura, ele inseriu a homossexualidade em duas perspectivas. A primeira foi a descrição da relação sexual entre o filho do dono da propriedade com um jovem negro escravizado, os dois com a mesma faixa etária, uma relação certamente hierárquica, embora seja quebrada pela busca da descoberta sexual, guinada hormonal que, não raras vezes, rompeu as fronteiras impostas por classe social, etnia e gênero. Em um segundo momento, o escravizado Joaquim passou a manter relações com o escravizado Manuel Congo. Na senzala, eram atos tolerados, “eram comuns aqueles pares invertidos”. Maestri, ao que parece, tenta estabelecer a diferença da baliza utilizada, pelos brancos, para com a homossexualidade deles e de negros. Para o branco, não era aceita, portanto escondida. Já nas senzalas, quando descoberta, não era causa de escândalo, fazia-se vista grossa. O que importava, para o escravagista, era que trabalhassem. Maestri, ao menos na primeira edição, esteve à dianteira ao incorporar o tema da escravidão sulina na ficção sul rio-grandense. Demonstrou sensibilidade ao inserir atos sexuais não heterocisnormativos na narrativa. Quanto a essa última perspectiva, seu artigo O gaúcho era gay? é outra prova de perspicácia intelectual.
IHU – Há uma safra de novos escritores gaúchos que têm produzido uma literatura voltada ao tema da dissidência de gênero. Estou me referindo a nomes como Angélica Freitas, Samir Machado de Machado, Julia Dantas, Natalia Polesso, Atena Beauvoir Roveda, entre outros. Como a questão tem sido abordada por eles?
Jandiro Adriano Koch – O homoerotismo foi tema na literatura sul rio-grandense desde o século XIX. Muitos acreditem que é um fenômeno atual, o que não se sustenta. O que muda é a forma com a qual o conteúdo é abordado, geralmente em consonância com a leitura majoritária da época, portanto, antes, correlacionado ao pecado, ao vício, à perversão, à doença e ao desvio psicológico – com raras exceções. Com o passar do tempo, alguns autores homossexuais mais confessionais criaram textos com alusões, muito discretas, sobre seus sentimentos, suas carências, seus medos e suas vontades. O mercado editorial, o cânone literário e a crítica literária formavam oposição. Embora sejam menos lembrados, os escritores homossexuais, dessa fase, foram os mais destemidos, porque entraram em campo totalmente adverso, enfrentaram altos riscos para carreira e vida pessoal.
A literatura certamente não somente reproduz a realidade, mas a produz. Ler era hábito de boa parte dos indivíduos que, nos anos 1970 e 1980 deram os primeiros passos para a consolidação do movimento social homossexual. Não sem razão foram escritores e jornalistas. De forma geral, por algum tempo, o personagem ficcional homossexual e o autoficcional ainda se mantiveram apegados à tragicidade, sustentando narrativas sobre dissidentes sofridos, em crise identitária, em guerra com a família, vítimas de uma série de violências. Mais recentemente, os avanços nos debates sobre LGBTQIAPN+, maiores garantias legais, têm produzido frutos diferentes.
As novíssimas gerações podem ensaiar finais felizes. O mercado enxergou um nicho promissor. Os prêmios se multiplicaram. Escritores gays e lésbicas se tornaram fenômeno. Novidade também foi o surgimento de escritores autodenominados trans e/ou travestis, com expoente para Atena Beauvoir Roveda. A aparente “explosão” de literatura LGBTQIAPN+, embora numericamente muito inferior aos publicados por não dissidentes, vem com ônus e bônus. Enquanto a diversidade se torna mais visível, grupos reacionários ficam atiçados, reagem à inclusão. Há tentativas de cancelamentos nas artes plásticas, na televisão, no cinema e na literatura. Esses movimentos de censura se pautam nas mesmas alegações que aparecem, desde o século XIX, representadas na literatura, quando doença, pecado, desvio psicológico e vício eram explicações compartilhadas. Mesmo com essas tentativas de retrocesso, a literatura que incorpora LGBTQIAPN+ tem multiplicado. Existe, sem dúvidas, ampla condição para exercê-la, como nunca antes.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Jandiro Adriano Koch – Como historiador, posso me dar o prazer de reunir biografias e obras, acreditando que, no caso LGBTQIAPN+, é o mais adequado. Não preciso me restringir ao cânone, ao que tem reconhecimento pela forma. Meus estudos podem ser enriquecidos com nomes pouco lembrados na história da literatura. Compartilhei ao menos dois trabalhos que relacionaram bons indícios para interessados e para pesquisadores que têm vontade de se aprofundar no tema. No livro O gaúcho era gay? Mas bah! (1737-1939), specialmente a partir do capítulo “Literatura LGBTQIA+?”, há um panorama de autores, títulos, vieses da crítica literária e menções à literatura especializada circulante no Rio Grande do Sul. Já o capítulo “Dissidências sexuais e de gênero na literatura”, que integra o volume História da literatura no Rio Grande do Sul, organizado por Luís Augusto Fischer, no volume “Longas durações”, estende o período de análise até os dias atuais. Além desses trabalhos, há vários textos meus para a revista Parêntese, do grupo Matinal, de Porto Alegre, nos quais há avanços nos debates. Em todos, assento que é um campo vasto a ser trilhado no Rio Grande do Sul. Há potencial para nos libertar de reproduzir a realidade sudestina como imagem padrão da realidade brasileira. Aposto que o repertório que resulta desse olhar investigativo pode amadurecer o autoconhecimento sobre a ancestralidade LGBTQIAPN+; constituir fonte para o letramento no estado sulino; suprir lacunas resultantes do infausto epistemicídio; se apresentar como suporte para diversas iniciativas, tornando-se aliado nas lutas em outras frentes.