“Proprietários de soja que querem liberar terras indígenas para seguir plantando”, diz jornalista indígena guarani mbya
O encontro entre culturas, apesar de ser enriquecedor, nem sempre é um processo amistoso. Por vezes, é marcado por indiferenças, incompreensões e imposições. Assim foi a experiência de Brígido Bogado, jornalista indígena guarani mbya, na intersecção de grupos culturais distintos. Adotado por uma família paraguaia quando criança, Bogado viveu longe da comunidade de origem e a ela regressou, anos mais tarde, para estabelecer o diálogo entre dois mundos. Nesse processo, conta em entrevista concedida pessoalmente ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, “tive que morrer e renascer praticamente três vezes”. Ele explica: “Tive de matar o ser original e guarani e adaptar-me a essa nova situação, ou seja, adquirir outra forma [de vida], outra visão e outros paradigmas. Depois, quando já tinha me adaptado a isso, adquiri novos valores, novas formas de viver a vida e de ser e um novo idioma também. Quando estava acostumado com essa nova vida e voltei para minha terra, para minhas raízes, tive que morrer novamente porque o povo que me acolheu em seu seio sentiu que eu era diferente”.
Brígido Bogado é natural da comunidade guarani mbya Pindó, no Paraguai, expulsa da Ilha de Yacyretá por causa da construção da Usina Hidrelétrica de Yacyretá, no rio Paraná, entre Argentina e Paraguai. O projeto hidrelétrico surgiu de um acordo entre os presidentes Juan Domingo Perón, da Argentina, e Alfredo Stroessner, do Paraguai, em 1973. A hidrelétrica foi construída entre 1983 e 1994.
Nesta entrevista, Bogado relata as dificuldades enfrentadas pelos guarani mbya no Paraguai. Se, de um lado, os paraguaios valorizam o espírito, a força e a fortaleza guarani, de outro, menciona, “o guarani é muito discriminado e deixado de lado. Na lei estão reconhecidos os direitos indígenas, mas, lamentavelmente, em relação à questão da terra, os estrangeiros, os políticos e os poderosos economicamente têm mais direito que os indígenas, que os próprios donos da terra, sempre com a cumplicidade das autoridades”.
A expansão de soja no país, liderada especialmente por brasileiros que vivem na fronteira, é um dos grandes entraves à luta pela terra e reconhecimento dos direitos indígenas. “Há uns quatro dias [por volta de 01/05/2025], uma comunidade indígena foi atacada por pessoas de uma empresa brasileira, que queimaram suas casas, levaram suas coisas, efetivaram disparos para amedrontá-la e para que abandonasse sua terra. São proprietários de soja que querem liberar terras indígenas para seguir plantando. Essa é uma luta constate e em qualquer parte do Paraguai”.
Brígido Bogado também apresenta a cosmovisão guarani mybia, centrada na noção de Teko Porã, a fé na existência de uma terra sem males, um lugar onde seja possível vivermos em harmonia. “Segundo os mbya, cada um tem seu ser, sua forma e sua essência. Todos estão no mesmo nível de respeito. Não é porque eu planto uma semente que posso dizer que ela é minha ou que lhe dei a vida. Não. Na semente mesma já estava a vida e eu não tenho o poder de colocar a vida na semente, uma vez que a vida já está ali. E quem pôs a vida ali? A mãe natureza, esse ser chamado Deus, mas que para os guarani é Nhanderu Tenonde, que se manifesta em tudo”.
Brígido Bogato (Foto: UCI)
Brígido Bogado é jornalista, formado pela Universidade Católica de Itapúa, em Encarnación, no Paraguai. Atualmente, atua como jornalista no jornal digital El Otro País, escrevendo sobre temas indígenas. É autor de Canto de la tierra (Asunción: Arandurã, 2022) e Mbya ñe’ery. Espíritu guaraní (Asunción: Arandurã, 2019).
IHU – Como foi a experiência de viver entre dois mundos, o da cultura branca mestiça e o da cultura indígena mbyá guarani? O que destacaria do encontro com as duas culturas?
Brigido Bogado – Tive que morrer e renascer praticamente três vezes. Fui adotado quando era muito pequeno. Vivi como alguém que nasceu em uma cultura e tinha todos os conhecimentos da sabedoria ancestral em seu DNA, mas foi arrancado desse ambiente e se deu conta de que estava em outro lugar, em outro espaço e em outro tempo. É como se o primeiro ser que tinha antes tivesse que morrer lentamente, obrigado pela situação e pela negação porque ser guarani é, era e segue sendo um mal. O guarani é desprezado e discriminado.
Praticamente, cresci em um ambiente de estrangeiros, entre polacos e pessoas de outras nações que se instalaram em um lugar chamado Carmen del Paraná [cidade paraguaia]. Ali tinham várias famílias paraguaias, entre as quais a que me adotou. Cresci entre eles e seus filhos, mas sentia o desprezo das crianças paraguaias e de outros estrangeiros. Esse processo foi doloroso, no princípio, porque eu, como guarani, era bastante desprezado e tive que deixar para trás a cultura que trazia como criança indígena e tive que esquecer o idioma. Isso foi como uma morte. Além do fato de que eu vivia no meio da natureza pura e tive que passar a viver entre cimentos. O fato é que tive de matar o ser original e guarani e adaptar-me a essa nova situação, ou seja, adquirir outra forma [de vida], outra visão e outros paradigmas. Depois, quando já tinha me adaptado a isso, adquiri novos valores, novas formas de viver a vida e de ser e um novo idioma também.
Quando estava acostumado com essa nova vida e voltei para minha terra, para minhas raízes, tive que morrer novamente porque o povo que me acolheu em seu seio sentiu que eu era diferente. Fisicamente, era como eles, mas o que tinha dentro, no meu ser pessoa, era diferente. Eles me viam com certa desconfiança. Estudei muito tempo em um seminário para ser sacerdote diocesano e adquiri vários conhecimentos de filosofia e teologia e graças a isso tive uma formação. Quando voltei para minhas raízes, fui para uma comunidade que havia sido deslocada da Ilha de Yacyretá, onde está a represa [Usina Hidrelétrica de Yacyretá]. Quando a comunidade recuperou parte da terra e voltou para o território, se viu obrigada a ter uma escola. Até hoje há resistência na cultura guarani em ter escolas por medo de que a educação formal lhe tire as suas crenças. Mas essa comunidade tinha necessidade de uma educação formal, de uma escola, e queria uma pessoa indígena como professor. Foi assim que me escolheram para voltar à comunidade. Outras comunidades não me aceitaram e não quiseram minha presença entre eles, mas nesta me aceitaram e, graças a isso, pude voltar às minhas raízes. Apesar de toda a confiança ao voltar, havia também desconfiança porque apesar de eu ser guarani, parecia que eu não era guarani completamente. Como digo, tive que morrer e renascer várias vezes.
IHU – Como foi este novo processo de viver com a comunidade guarani?
Brigido Bogado – Foi um pouco difícil porque eu havia perdido totalmente o idioma e a forma de ser. Meus valores eram mais os da cultura paraguaia do que a dos indígenas. Tinha perdido a proximidade com a natureza e quando voltei à comunidade tive que reaprender isso e deixar algumas das crenças que adquiri no mundo cristão, como a religião cristã. No início, quando retornei à comunidade, queria ir à missa a cada domingo, mas os líderes da comunidade me disseram que eu tinha que deixar de ir à missa porque eles iam me levar ao centro religioso, opy, para reaprender. Mas eu conhecia muito pouco da língua guarani. Agora, graças a Deus, consegui recuperar algo do idioma, mas não totalmente. Então, tive que reaprender coisas, deixar coisas e começar a reconstruir.
IHU – Existencialmente, como foi a vivência desse processo para você? Deixou a Igreja?
Brigido Bogado – Tive que deixar totalmente porque se seguisse com esse ser, com esse costume, as pessoas da comunidade iriam me devolver (risos). Tive que abandonar isso totalmente. Mas o importante é que aprendi coisas dos brancos e as fiz parte de mim. Quando voltei à comunidade e às minhas raízes, ganhei ferramentas para entender o outro mundo, o mundo dos paraguaios, para depois contar aos meus irmãos como são os paraguaios – porque há muitos conflitos entre os paraguaios e os indígenas até os dias de hoje –, para que eles entendam também como são as características dos outros, do branco, e aprendamos a dialogar desde o lugar indígena. Esse foi um processo muito produtivo e positivo para mim.
IHU – Qual é a importância e relevância da cultura guarani no Paraguai? Como se estabeleceu a resistência mbya guaraní no Paraguai?
Brigido Bogado – Há muitos discursos que querem tirar a força guarani do povo paraguaio. Entre os paraguaios, se valoriza muito o que é guarani, que tem um espírito, uma força e uma fortaleza, mas, de outro lado, na realidade, muitas vezes, o guarani é muito discriminado e deixado de lado. Na lei estão reconhecidos os direitos indígenas, mas, lamentavelmente, em relação à questão da terra, os estrangeiros, os políticos e os poderosos economicamente têm mais direito que os indígenas, que os próprios donos da terra, sempre com a cumplicidade das autoridades. Há uma grande desvantagem para os guarani. Creio que 80% do povo paraguaio segue falando guarani, que é o idioma indígena.
IHU – Apesar disso, a marginalização é evidente?
Brigido Bogado – Sim, é evidente. A marginalização é vivida diariamente.
IHU – Os donos da terra se tornaram a segunda classe?
Brigido Bogado – Sim, a segunda classe. Como digo, hoje em dia, ser dono da terra é ser estrangeiro. Os que vieram depois são os donos atualmente.
IHU – Quais são as lutas e reivindicações cotidianas dos guarani no Paraguai?
Brigido Bogado – Há uma constante luta pela terra. Há uns quatro dias [por volta de 01/05/2025], uma comunidade indígena foi atacada por pessoas de uma empresa brasileira, que queimaram suas casas, levaram suas coisas, efetivaram disparos para amedrontá-la e para que abandonasse sua terra. São proprietários de soja que querem liberar a terra indígenas para seguir plantando. Essa é uma luta constate e em qualquer parte do Paraguai.
Há discriminação na parte da saúde. Nesse momento, não há assistência médica e falta medicamento, inclusive, para os paraguaios, mas para os indígenas a situação é sempre pior; são sempre os últimos. Muitas vezes, nos papéis e nos discursos, o governo diz estar com as populações indígenas, mas nunca aceita que uma cultura indígena apresente um projeto de educação desde os indígenas, porque não é a educação como eles esperam, mas uma educação desde a sabedoria e dos costumes ancestrais. Querem determinar as culturas indígenas às suas crenças e mentalidades. Então, não convém que haja outro tipo de alternativa e não aceitam uma forma que não seja a que eles querem implementar.
Na questão política, utilizam os povos indígenas para conseguir votos, mas quando sobem ao governo, esquecem as promessas. É uma luta diária.
IHU – Os produtores de soja no Paraguai são brasileiros?
Brigido Bogado – Sim, muitos. A maioria que vive na fronteira, especialmente. Mas por toda parte estão entrando empresários brasileiros e outros que são muito fortes na produção de soja. Segundo a legislação paraguaia, os estrangeiros podem atender um percentual das propriedades, mas isso não é respeitado. Há muito dinheiro e os políticos e as autoridades se vendem. Os que sofrem sempre são as comunidades indígenas porque ninguém as entende, salvo alguns religiosos ou religiosas. Hoje, parece que há mais consciência da sociedade civil e adesão às causas indígenas. Da minha parte, sempre publico as injustiças para despertar as consciências, mas falta muito. Sempre depende um pouco do governo que está no poder. No período do presidente Fernando Lugo houve melhoras, mas fizeram um novo discurso político e subiu outro ao poder [Santiago Peña Palacios], com pouco interesse e sensibilidade para as questões indígenas.
IHU – Os brasileiros são os novos espanhóis?
Brigido Bogado – Creio que sim. Alguns já vivem diretamente no Paraguai, outros estão no Brasil.
IHU – A mesma violência.
Brigido Bogado – Sim, a mesma violência.
IHU – Como estão articuladas as novas gerações de indígenas no Paraguai? Elas têm novas preocupações? Como se relacionam com as gerações mais velhas?
Brigido Bogado – Sempre há essa luta de gerações porque os anciãos querem seguir mantendo os velhos costumes e, entre os jovens, alguns já não querem mais saber dos costumes e das crenças ancestrais. Mas vejo que esse é um tempo de amadurecimento, decrescimento. Depois, eles voltam às raízes. Os jovens têm muita curiosidade em relação às novas tecnologias e muitas vezes se faz uma espécie de lavagem cerebral neles, mas quando crescem e amadurecem, voltam aos antigos costumes.
Por um lado, isso acontece pela própria essência e forma de ser guarani, que nunca teve coisas. O que diferencia o guarani de outras culturas, comparando como os astecas e os maias, é que o guarani sempre foi oral, nunca teve necessidade de fazer coisas ou deixar algo escrito. Até hoje, seguimos mantendo o costume de ir criando uma filosofia de acordo com os desafios e mudanças de valores, a partir de uma construção sempre vivente, com muita fortaleza. Isso faz com que as gerações, muitas vezes, entrem em conflito com o que se cria antigamente. As novas gerações são apresentadas às novas tecnologias e querem mudar, mas, por essa forma de ser guarani, voltam sempre às raízes.
IHU – Gostaria de ler um trecho do seu livro, Mbya ñe’ery. Espírito guaraní, que gostamos muito: “O mbya é um filosofo por natureza; vive o dia a dia; não expressa seus questionamentos em escritos nem conta nem mostra seus temores, mas sabe muito bem que cada ato tem suas consequências; se se equivoca ou falha, isso o levará a passar por momentos difíceis, que sofrerá em seu corpo e também em seu espírito, porque seu ser é uma totalidade”. Pode explicar a sabedoria guarani, o que é o espírito e a totalidade?
Brigido Bogado – Por isso digo que o mbya é um filósofo por natureza. Não é essa filosofia que se aprende com Descartes ou Sócrates ou outros filósofos. Entendo que a filosofia é o ato de alguém se perguntar sobre sua existência. Ou seja, de perguntar quem sou, que quero, aonde vou. É isso que o povo mbya guarani faz em suas reuniões comunitárias, onde o ancião e a anciã podem responder a esses questionamentos desde a sabedoria ancestral. Isso se confronta com o que hoje em dia é o mundo globalizado da atualidade, que traz problemas para o povo mbya guarani.
Capa do livro de Brígido Bogado (Foto: Reprodução)
O povo mbya guarani se confronta com a sabedoria antiga, com a criação e com o momento desde uma filosofia que possa dar respostas a esses desafios. Então, faz uma espécie de mistura disso para afrontar as novas situações. É isso o que faz o povo guarani diariamente; cada pessoa, mas comunitariamente também. Eu tenho tido experiência com a comunidade e vejo que isso segue sendo assim: há um ser superior, que não é que impõe a sua lei, mas simplesmente a ensina. Te diz o que é bom e o que é mau. Se aprende o bem e o faz, isso vai ter uma consequência positiva em sua vida. Mas se faz o mal, isso também vai ter uma consequência. Isso é visto e vivido.
IHU – Como você confronta a espiritualidade guarani com a fé cristã? Há similaridades entre as duas?
Brigido Bogado – Idealmente, ambas são muito parecidas. Estudei muito tempo filosofia e teologia cristã e comparando-as com o que é a sabedoria ancestral guarani, diria que é idêntico. A falha sempre está no humano, tanto no mbya quanto no humano cristão também. Só que na crença mbya, a consequência da decisão tomada não é paga depois, num outro momento. Para os cristãos, há o purgatório e o inferno. Para o mbya, se uma pessoa faz algo aqui, depois de um tempo, paga por isso. Não há necessidade de pagar depois. Eu sou humano, falhei várias vezes e tive que pagar as consequências das minhas falhas e me dei conta disso. Na crença mbya, quando uma pessoa morre, vai direto para junto do Nhanderu Tenonde [que em guarani significa Deus, o primeiro], e há uma espécie de retroalimentação nesse lugar, e depois se volta. Como dizem os povos norte-americanos, se volta à vida com outra casca.
IHU – Bartomeu Melià disse que para os guarani a língua é fundamental e que a espiritualidade e a sabedoria guarani é um caminho de belas palavras. O que são as belas palavras guarani?
Brigido Bogado – Melià disse por si mesmo que é poranguai, que literalmente significa belas palavras. Mas para Melià é a alma mesma, é a espiritualidade da alma, de onde surge tudo que é o ser.
IHU – Por que para o guarani a vida mesmo é poesia, é relação com as pessoas, os animais e a natureza? Pode explicar a cosmovisão guarani a partir dessas noções e da ideia de totalidade?
Brigido Bogado – Para o mbya não há um ser superior ou inferior. Todos somos irmãos na vida. Até quem não tem vida não é menos do que um que tem vida ou do homem que pensa e se acha superior a todos. Nós todos somos irmãos, nós todos somos iguais e devemos respeito a todos. Por isso, pessoalmente, penso que o homem que tem títulos universitários não pode ser superior ao outro que nunca teve acesso à escola. Eles são iguais. Segundo os mbya, cada um tem seu ser, sua forma e sua essência. Todos estão no mesmo nível de respeito. Não é porque eu planto uma semente que posso dizer que ela é minha ou que lhe dei a vida. Não. Na semente mesma já estava a vida e eu não tenho o poder de colocar a vida na semente, uma vez que a vida já está ali. E quem pôs a vida ali? A mãe natureza, esse ser chamado Deus, mas que para os guarani é Nhanderu Tenonde, que se manifesta em tudo.
IHU – Qual é a relação dos guarani com a terra, com o Teko Porã?
Brigido Bogado – Da terra surge tudo. A semente que se planta na terra é para ti, mas não é só para comer, mas para ter esperança de vida, para entender que ela é energia, é espiritualidade e que, ao final, o ser humano que, aparentemente, não nasceu dela, volta para ela, para a vida, para seguir alimentando-a, para seguir dando sentido, para seguir tendo espiritualidade e respeito pela terra.
IHU – Em que você tem esperança?
Brigido Bogado – Eu, pessoalmente, tenho esperança em tudo. Quando o professor Isabelino Víctor Martínez Galiano me convidou para vir [para o Brasil], não sabia aonde iria, com que tipo de pessoa iria me encontrar. Mas quando cheguei aqui, me encontrei num lugar de paz e tranquilidade. Então, a esperança é como encontrar-se em um lugar que tem que encontrar-se, com as pessoas que tem que encontrar-se. E para quê? Há pessoas que estão na mesma dimensão, na mesma direção, com muitos desejos, pensamentos positivos e há aí como que uma atração. Há um chamado de estar conectado com as outras pessoas, com as outras realidades para algo positivo. Creio que assim são as belas experiências.
IHU – Como foi sua relação com padre Melià? O que lembra da relação com ele?
Brigido Bogado – Eu não sei como foi a relação com ele (risos). Ele sabia da minha existência, sabia que eu estava bem e quando as coisas iam acontecer, aconteciam simplesmente. Nós nos sentávamos, conversávamos e assim foi: esporádico, mas muito forte. Creio que ele sempre teve a gentileza de dizer que eu lhe trazia boas energias. Ele foi meu mentor, mas eu me encontrava mais com o padre Antônio Betancourt, que queria que eu estudasse direito.
Há relações que não precisam de muito contato, mas se sente que aquela pessoa sempre está ali. Quando você empreende um trabalho ou viaja, essa pessoa sempre está contigo. Eu sempre senti – e sinto até hoje, de modo muito mais forte – a presença do padre Melià. Por isso digo sempre que ele foi e sempre será meu mentor (risos).
IHU – Como você reza? Como faz suas orações e vive a espiritualidade depois de passar por esses dois mundos?
Brigido Bogado – Essa é a primeira vez que vou contar a alguém como sou (risos). Espero que guardem segredo (risos). Me deram uma forma muito especial de oração. Os mbya são muito curiosos e captam em seguida o que é a pessoa e a essência. Uma pessoa especial, um líder religioso com quem estive durante um tempo, não sei se ele se preocupava comigo, mas me deu uma fórmula muito especial [de oração] e até hoje mantenho essa forma de oração. Ele me deu uma introdução em mbya guarani e depois utilizo as palavras Pai, Filho e Espírito Santo. E é isso.
IHU – O que se faz na Opy é algo só para os iniciados? Não é uma crença do livro, mas vivencial?
Brigido Bogado – Sim, é espontâneo. A comunicação que se tem com os deuses ou com Deus é espontânea. É uma comunhão de alma, de espírito. Há uma manifestação forte, espontânea e muito iluminadora. Passei várias vezes por essa experiência; experiência maravilhosa, que não está escrita.
IHU – Xeramoi são os que conduzem?
Brigido Bogado – Na maioria das vezes, mas isso não vem pela sabedoria que se acumula, mas por uma eleição, uma escolha. Tenho um filho de 23 anos que é um líder religioso. Há uma linguagem que se utiliza dentro da Opy, mas essa linguagem não se estuda em nenhum lugar; ela vem de uma eleição, uma escolha. Eu tentei várias vezes ir por esse caminho, mas um dos líderes religiosos me disse que nossos pais não me enviaram para isso. Me enviaram para que eu pudesse escrever as crenças – algumas delas, porque nem todas podem ser escritas – para mostrar aos outros como nós, mbya, somos. Eu, particularmente, me assombro com essa situação porque meu filho não estudou em nenhum lugar e a comunidade já o tem com grande respeito, como um ancião. Tem pessoas que vêm ao mundo com o conhecimento da irmã natureza. Nem todos têm essa capacidade, somente as pessoas escolhidas, que trazem em seu nome esses conhecimentos.
IHU – Neste mundo que vivemos hoje, de destruição da natureza e de consumo desenfreado, o que é a vida boa para os mbya? O que é o Teko Porã, o bem viver?
Brigido Bogado – Teko Porã é o costume, a crença que nunca muda e que segue, de se reconstruir no cotidiano, nos tempos, diante dos novos desafios. Se reconstruir entre o choque de gerações, entre os avós e os jovens. É nessa construção que a cultura guarani segue forte e vigente. Nisso, uma palavra segue vigente, a alma, e que haja sempre um lugar necessário para viver.
Muitas vezes me ocorre pensar que talvez não exista um lugar físico, mas muita gente crê que sim, que existe esse ideal físico, onde se pode viver em harmonia com todos. Muitos dizem que os tigres e outros animais não podem ter desaparecido. Eles existem, mas os cuidadores não os mostram porque serão exterminados. Temos que estar, mental e espiritualmente, preparados para encontrar esse lugar. Por isso digo que o bem viver e o Teko Porã significam manter a fé de que há um lugar possível. Não é como o céu dos cristãos, mas uma realidade. O homem tem que estar preparado espiritualmente para saber onde está esse lugar.
IHU – Isso é a terra sem males?
Brigido Bogado – Isso é a terra sem males.
IHU – Você escreveu sobre a história dos mbya guarani expulsos da ilha Yacyretá. Esse caso está relacionado com a construção da hidrelétrica Yacyertà nos anos 1990? Que aspectos dessa história recuperou nos escritos?
Brigido Bogado – A nossa comunidade, Pindó, é membro das famílias que foram expulsas da Ilha de Yacyertà. Os anciãos da comunidade se deram conta de que havia rumores de assentamentos milenários nesse lugar onde viviam muitas famílias mbya. Quando os governos informaram que fariam uma represa, não falaram que os mbya precisariam sair da terra, somente os camponeses e os brancos teriam que deixar a região porque a água iria subir e eles não teriam mais um bom lugar para viver. Eles estavam acostumados a crescente dos rios porque, depois de um tempo, a situação voltava à normalidade. Mas quando começaram os trabalhos, eles saíram da ilha de forma forçada. Alguns foram ajudados por camponeses, mas não tiveram auxílio do governo. Algumas poucas famílias ficaram próximo da represa, outras foram para o lado argentino e assim dispersaram-se.
A comunidade estava acostumada com aquele lugar, mas, lamentavelmente, muita gente se adonou das terras, como empresários paraguaios e investidores, que se aproveitaram para comprar terra barata vendê-la caro. Não queriam os indígenas naquele lugar. Graças a intervenção da Igreja católica, através da equipe nacional de missões, coordenada por um padre do Verbo Divino, que se interessou pela gente, uns cinco anos depois conseguiram um pedaço de terra para realocar as famílias. Recuperaram cerca de 425 hectares para o reassentamento da comunidade.
IHU – Outros projetos estão em curso no Paraguai, como mineração?
Brigido Bogado – Praticamente a mesma situação ocorreu em função da construção de Itaipu, mas não há outros projetos desse tipo atualmente. Hoje, a soja é o que está fazendo sua entrada forte por todo o país.
IHU – Como entende sua missão agora, como alguém que transita entre os dois mundos e que é poeta, pensador e escritor? O que é ser guarani em uma sociedade tão colonizadora?
Brigido Bogado – A verdade é que é um pouco difícil, mas como me disse aquele líder religioso que mencionei antes, eu estava predestinado a esse tipo de trabalho e situação, porque havia uma necessidade e os deuses já tinham previsto. Por isso mesmo, ele me disse que embora eu tenha sofrido muito – porque sofri muito quando sai da comunidade e tive que crescer com gente estranha e costumes estranhos –, os deuses já tinham me escolhido e me posto ali para contar e mostrar a realidade dos indígenas. Essa era uma missão que eu tinha que fazer. Sinto, na minha essência, na minha alma, no meu coração, que sempre estou no caminho correto.