14 Mai 2012
Primeiro passo para a reconstrução do campo político, o movimento Occupy revigora a ação contestatória, afirma um dos autores do livro Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas (São Paulo: Boitempo, 2012.
Mobilizações realizadas sobretudo por jovens, de forma inovadora e crítica às estruturas tradicionais da política. Assim podem ser caracterizados os movimentos de protesto que ocorreram em 2011 nos mais diversos países do mundo. E isso altera radicalmente a forma de se fazer política. Na opinião do filósofo Vladimir Safatle, a política contemporânea “tende a ir para os extremos. Não é mais uma política que se define no centro, como foi nos anos 1990 e na primeira década do século XXI. Isso acabou”.
E completa: “Penso que o Occupy é um primeiro passo para a reconstrução do campo político. Tendemos a eliminar uma compreensão processual dessas coisas. Como nada aconteceu no sentido forte do termo a partir desses movimentos, tem-se a impressão de que, na verdade, não foram efetivos. Essa é uma maneira tosca de se compreender processos políticos. Muita coisa ocorreu em função do Occupy, como a consciência de que há um caminho diferente que pode ser trilhado”.
Em seu ponto de vista, o medo é a forma como o capitalismo conduz a sociedade, e em função disso vem ocorrendo um deslocamento da discussão política para o campo da cultura. É o caso da questão da imigração na Europa: “As discussões sobre imigração, por exemplo, não são discussões econômicas. Todos sabem que, do ponto de vista econômico, a imigração nunca foi problema. Quem quebrou o sistema econômico europeu não foram os imigrantes, foram os bancos”.
A entrevista, concedida à IHU On-Line, por telefone, foi inspirada na recente publicação da coletânea Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas (São Paulo: Boitempo, 2012), da qual Safatle participa com um artigo.
Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP e em Comunicação Social, pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, Vladimir Safatle é mestre em Filosofia pela USP, e doutor em Lieux et transformations de la philosophie pela Université de Paris VIII, com a tese La passion du négatif: modes de subjectivation et dialectique dans la clinique lacanienne. Professor da USP, atualmente desenvolve pesquisas nas áreas de epistemologia da psicanálise, desdobramentos da tradição dialética hegeliana na filosofia do século XX e filosofia da música. É um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Há um traço que une as mobilizações e protestos sociais no mundo a fora em 2011?
Vladimir Safatle – Existem vários traços. O primeiro deles é que são mobilizações que não são organizadas a partir de estruturas tracionais da política, como partidos e sindicatos. São mobilizações feitas sobretudo por jovens, que se organizam de forma totalmente inovadora. Esse é um dado importante porque expõe um certo desconforto com a estrutura institucional de partidos e outras instituições representativas. Há um dado bastante positivo que é a procura de construir novos campos de organização política, com outra dinâmica e outros tipos de estratégia. Em segundo lugar, aponto a crítica à democracia parlamentar. Os manifestantes percebem um déficit muito importante de democracia no interior da estrutura parlamentar. Talvez no caso da Primavera Árabe isso não seja posto dessa forma, porque não há sequer democracia parlamentar naqueles países. Mas o que houve nesses movimentos em Nova Iorque, Santiago e Europa é um indicativo do desconforto com esse tipo de limitação, que ficou muito evidente depois da crise econômica. Isso porque ficou clara a dependência do sistema da democracia parlamentar das injunções do sistema financeiro. Trata-se da incapacidade que a democracia parlamentar tem de dar conta de uma política mais combativa contra os interesses do sistema financeiro.
As eleições que aconteceram na Grécia devem ser lidas com essa concepção. O que aconteceu foi que os partidos orgânicos da democracia parlamentar grega foram profundamente sancionados em prol de outras agremiações partidárias que, entre outras coisas, seja à direita ou à esquerda, questionam os limites da estrutura institucional da democracia.
IHU On-Line – Os indignados reivindicam um novo modelo político e tiveram forte atuação na Grécia em função da crise. Entretanto, como compreender o resultado das últimas eleições, em que partidos tradicionais perderam espaço para partidos extremistas como os neonazistas? O que isso significa?
Vladimir Safatle – Penso que a política contemporânea tende a ir para os extremos. Não é mais uma política que se define no centro, como foi nos anos 1990 e na primeira década do século XXI. Isso acabou. Daqui para frente teremos um embate cada vez mais forte entre os extremos. Veja a eleição na França. De certa maneira, isso aconteceu lá. Na França havia dois extremos: a direita e a extrema esquerda. Ambos pautaram o debate no sentido muito evidente. O partido de direita de Sarkozy organizou seu debate a partir das questões postas pela extrema direita, mas não tinha uma proposta no sentido forte do termo, não havia uma pauta estabelecida. A pauta vinha da extrema direita. Já o Partido Socialista teve que correr atrás das mobilizações populares que foram levantadas pela extrema esquerda. Assim, quem fez política nas últimas eleições francesas foram os extremos. Isso, na Grécia, ocorreu de maneira um pouco diferente. Os partidos tradicionais não tiveram a força de conseguir equacionar as demandas que vêm dos extremos, e por isso foram praticamente “limados” do centro político. Os dois juntos perfizeram 32%, enquanto o restante era todo de extrema direita ou extrema esquerda. Mas essa será a política daqui para frente, pelo menos na Europa. Talvez esse não seja o caso da América Latina, porque o sistema político latino-americano está em outro momento.
IHU On-Line – Acredita que o Occupy nos diferentes países demonstra uma revitalização da política ou trata-se de uma espécie de niilismo ativo, de contestação sem propostas efetivas?
Vladimir Safatle – Penso que o Occupy é um primeiro passo para a reconstrução do campo político. Tendemos a eliminar uma compreensão processual dessas coisas. Como nada aconteceu no sentido forte do termo a partir desses movimentos, tem-se a impressão de que, na verdade, não foram efetivos. Essa é uma maneira tosca de se compreender processos políticos. Muita coisa ocorreu em função do Occupy, como a consciência de que há um caminho diferente que pode ser trilhado. Fala-se muito da ausência de propostas desses movimentos, mas isso é completamente falso. Há propostas muito concretas e efetivas, como em Santiago do Chile, onde a proposta era claríssima: educação pública de qualidade para todos. Não consigo imaginar proposta mais concreta do que essa. Em Tel Aviv cerca de 400 mil pessoas foram às ruas reivindicar a reconstrução do estado de bem-estar social, diminuição dos aluguéis e fim da especulação imobiliária.
Acredito que a discussão sobre a efetividade desses movimentos vem de outro campo. As pessoas que hoje estão na imprensa têm, aproximadamente, de 30 a 40 anos de idade. São pessoas que, quando jovens, lá pelos 20 anos, idade da maioria dos manifestantes do Occupy, ouviram um discurso hegemônico sobre o fim das ideologias, das grandes mobilizações. Tínhamos que aprender a ser eficazes e a utilizar nossa criatividade e inventividade não para o campo da política, mas preferencialmente para um departamento de marketing ou uma agência de publicidade. Então, trata-se de uma geração que se inseriu muito rapidamente nos processos de reprodução material da vida no capitalismo avançado. Isso tudo sem muito questionamento.
A minha geração foi aquela que menos questionou. A preocupação era muito mais “comer sushi” do que discutir política. Então, para essa geração é muito importante que nada ocorra. Porque se a geração posterior disser que aquilo em que acreditamos era falso (quando na verdade ainda havia muito espaço para a política e a transformação), é a mesma coisa que se perguntassem “o que fizemos de nossas vidas?” e “por que acreditaram nesses absurdos?”. Daí vem uma espécie de resistência muito mais psicológica do que da análise concreta dos fatos.
IHU On-Line – Tomando em consideração essa conjuntura, pensa que o ano de 2011 foi bom para a esquerda? Por quê?
Vladimir Safatle – Penso que sim, porque depois de décadas passamos a ver um processo global de larga mobilização popular, coisa que não existia desde os anos 1970. Esse tipo de mobilização global é algo que não acontecia mais. Isso demonstra um descontentamento social profundo com as promessas do capitalismo avançado. Esse descontentamento é o afeto fundamental da política de esquerda. Crescemos em cima disso, do desencanto em relação às promessas de progresso que circulam hoje em dia.
IHU On-Line – Em que medida essa indignação pode se converter em revolução?
Vladimir Safatle – É difícil de prever o que vai acontecer daqui para frente. Várias coisas podem acontecer, e inclusive nada durante muito tempo. Entretanto, isso não significa que o que ocorreu não teve importância. Trata-se de uma possibilidade que foi colocada sobre a mesa. E o principal dessa possibilidade foi a insistência dos jovens em querer discutir. Isso é o que é mais bloqueado atualmente. Discutir, de maneira concreta, significa pensar sem pressupostos. Significa afirmar que, nessas situações, podemos questionar os pressupostos implícitos e tacitamente aceitos na constituição de todos os debates políticos. Essa é a primeira posição para que as possibilidades se alarguem. Como dizia Heidegger na Carta sobre o humanismo, essa distinção entre pensamento e ação é um equívoco, pois o pensamento age enquanto pensa. Ele age porque abre o espectro do possível. E é isso que os jovens estão tentando fazer. Essa é a ação política por excelência.
IHU On-Line – Salvar bancos e arrochar a população vem se tornando uma constante no capitalismo. Pensando na crise de 2008, acredita que esse sistema está à beira de um colapso?
Vladimir Safatle – É impossível falar qualquer coisa sensata a esse respeito, tanto de um lado como do outro. Eu diria que o certo é que a crença da população de que o sistema capitalista pode dar aos seus filhos uma vida melhor do que eles têm é uma crença cada vez menor. Algo muito grave está ocorrendo. Talvez não seja o caso do Brasil e alguns países da América Latina. Mas nos EUA e na Europa, pesquisas mostram resultados claros: existe um descontentamento e um desencanto muito grandes com a forma de vida que se organizou no interior das sociedades capitalistas avançadas. Daí porque a única maneira de se defender essa forma de vida não é através das promessas de benesses econômicas e sociais que pode produzir, mas pelo medo. Pelo medo de que os valores que organizam nossa forma de vida serão destruídos, assim como nossa religião e cultura. Temos, assim, um processo de um paulatino deslocamento da discussão política para a cultura. É o que ocorre na Europa hoje. As discussões sobre imigração, por exemplo, não são discussões econômicas. Todos sabem que, do ponto de vista econômico, a imigração nunca foi problema. Quem quebrou o sistema econômico europeu não foram os imigrantes, foram os bancos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Os imigrantes pobres que estavam trabalhando na Europa não quebraram a economia europeia, explorados que eram. O fato é que essa discussão não é econômica, mas cultural.
IHU On-Line – Que transformações políticas e democráticas podem surgir a partir das manifestações e propostas dos indignados? Já é possível vislumbrar alguma mudança no cenário político e econômico?
Vladimir Safatle – Penso que a mudança já ocorreu. É sobre o que conversamos no início da entrevista. Trata-se do deslocamento da política para os extremos. Na Grécia uma frente trotskista de partidos ganhou 17% dos votos. Eu não consigo me lembrar de nada semelhante. Nunca vi situação parecida na história. É algo completamente inusitado numa área de países do Euro.
IHU On-Line – Quais são os reflexos do Occupy no Brasil? Qual é a peculiaridade das manifestações em nosso país?
Vladimir Safatle – É um movimento importante porque tenta reabrir discussões políticas, sobretudo no que diz respeito à juventude. Por outro lado, penso que a situação brasileira é um tanto particular, uma vez que ainda estamos num momento de ascensão social de grande parte da população. Insisto, por isso, que a verdadeira discussão política seria mostrar quais são os limites dessa ascensão. E digo que os limites dessa ascensão vêm do modelo imposto ao Brasil nos últimos dez anos. O modelo do lulismo, por um lado, conseguiu criar uma dinâmica econômica importante para uma nova classe média, e, por outro, em função de ser caracterizado pelo consenso político, é um modelo que tem limitações processuais de reforma muito evidentes.
Isso vai ser sentido de maneira clara da seguinte maneira. Vamos analisar uma família que ganhe algo como R$3.500,00 por mês e que tenha dois ou três filhos. Essa família irá tirar imediatamente o filho da escola pública e colocá-lo numa escola privada, o que custará de R$800 a R$900, no mínimo. Em segundo lugar, irá fazer plano de saúde particular, abandonando o SUS. O valor desse serviço vai de R$400 a R$500. Assim, vai gastar quase um terço de seus rendimentos em educação privada deteriorada e em plano de saúde mafioso. A família perde um terço de seus rendimentos com serviços da pior qualidade.
Chegará, contudo, um momento em que as pessoas irão se perguntar por que o Estado não lhes garante esses serviços de qualidade. O Estado não garante porque não consegue pagar, e não consegue pagar porque, entre outras coisas, é preciso um “reacerto” social no qual seria feita uma reforma tributária, taxando os mais ricos para pagar a educação dos mais pobres. Mas nosso governo não tem condições sequer de discutir imposto sobre herança, grandes fortunas e transação bancária. Então, essa consolidação de um vasto sistema de educação pública e saúde é dificultada, e não será feita dentro desse modelo. Quando as pessoas tiverem consciência disso, uma política de esquerda poderá ser ouvida. Eu insistiria que não se trata de uma crítica generalizada à experiência dos últimos dez anos. Trata-se de dizer que ela teve sua função, mas não consegue avançar além do que ela já fez.
Por Márcia Junges
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A política contemporânea tende a ir para os extremos. Entrevista especial com Vladimir Safatle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU